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O sistema do direito como sistema da liberdade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADE

MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA

O sistema do direito como sistema da liberdade

RENATA DE FREITAS CHAVES

FORTALEZA-CEARÁ

2011

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2

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ RENATA DE FREITAS CHAVES

O sistema do direito como sistema da liberdade

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia no Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientadora: Profa. Dra. Marly Carvalho Soares.

FORTALEZA-CEARÁ

2011

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3 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA

Título da dissertação: O sistema do direito como sistema da liberdade. Autora: Renata de Freitas Chaves

Professora- orientadora: Profa. Dra. Marly Carvalho Soares Exame de Qualificação:

Defesa pública em: 22/12/2012

Nota: 9,0

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Marly Carvalho Soares, Dra. (UECE) Presidente da Banca

___________________________________________________

Prof. Eduardo Ferreira Chagas, Dr. 1º Examinador

___________________________________________________

Prof. João Emiliano Fortaleza de Aquino 2º Examinador

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4 À memória de Raimundinha, que hoje se encontra ao lado de Deus, por ter rezado acreditado sempre em mim.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, pela compreensão e apoio durante a elaboração desta pesquisa. Às minhas amigas Thaís e Cristina;

Ao meu amor, Jean, pelo carinho, incentivo e paciência;

Aos meus amigos e companheiros da XI turma do mestrado: Daniele, Eronaldo, Evaniele, Cláudio e Geovane.

À professora Marly Carvalho Soares, pela incansável paciência e incentivo durante minha vida acadêmica;

Aos examinadores, Prof. Emiliano e Prof. Eduardo Chagas; À CAPES, pelo financiamento desta pesquisa.

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6

RESUMO

Objetiva-se, com esta dissertação, demonstrar como o sistema do direito representa o sistema da liberdade. Seguindo metodologicamente os Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, articulamos o direito como momento de concretização e efetivação da liberdade da vontade. Para tanto, inicia-se apresentando as relações da vontade imediata no Direito Abstrato, seguindo pelas determinações morais da vontade subjetiva na Moralidade e por fim a compreensão da vontade ética na Eticidade. Na Eticidade, a vontade efetiva a sua liberdade por meio das instituições, pois elas viabilizam a concretude da vida ética. A exposição de cada instituição nas minúcias de seu desenvolvimento, a Família, a Sociedade Civil e o Estado, será abordada segundo sua importância como instituição necessária para a efetivação da liberdade. No entanto, chega-se à compreensão de que somente no Estado a vontade concretiza verdadeiramente a sua liberdade. O Estado ético concilia o reino das necessidades com o reino da liberdade, ou seja, concilia a liberdade individual e coletiva. Sendo assim, a conciliação passa a ser tida como a determinação plena da efetivação da liberdade e da vontade.

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ABSTRACT

The objective of this dissertation is to demonstrate how the system of right represents the system of freedom. Methodologically based on the work Elements of the Philosophy of Right by Hegel, we articulated the right as the moment of achievement and fulfillment of the freedom of will. It starts presenting the relations of the immediate will in the abstract right, followed by the moral bearings of the subjective will in morality, and at last by the understanding of the ethical will in ethics. In ethics, the will fulfills its freedom by institutions, since they enable the achievement of the ethical life. The presentation of each institution and every detail of its development, the Family, the Civic Society and the State, will be dealt with according to its importance as a vital institution to the fulfillment of freedom. However, it comes to the understanding that only in the state the will truly fulfills its freedom. The state as ethical reconciles the needs and the freedom, that is, it reconciles individual and public freedom. Thus this reconciliation is taken as the full determination of the fulfillment of the freedom and of the will.

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C512s Chaves, Renata de Freitas

O sistema do direito como sistema da liberdade/ Renata de Freitas Chaves. – 2011.

111 f., enc.; 30 cm.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia,Fortaleza,2011. Área de concentração: Ética.

Orientação: Profª. Drª. Marly Carvalho Soares.

1. Vontade 2. Direito 3. Liberdade. I. Título.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

1. CONCEITO DE VONTADE ... 17

2. O DIREITO DE TER: EXTERIORIZAÇÃO DO DIREITO ... 27

2.1.A liberdade da pessoa na propriedade: o direito abstrato ... 27

2.1.1. O objeto da vontade como pessoa ... 27

2.1.2. O mediador da relação entre pessoas ... 33

2.1.3. Os limites do direito abstrato: a passagem para a moralidade ... 35

3. O DIREITO DE SER: INTERIORIZAÇÃO DO DIREITO ... 42

3.1.A liberdade do sujeito na esfera do convívio moral: a moralidade ... 42

3.1.1. As metas da Vontade como sujeito ... 42

3.1.2. A análise da ação moral ... 44

3.1.3. O Bem como meta e a certeza do sujeito que realiza o que é bom em si e para si ... 51

4. O DIREITO DE TER E SER: O CONCEITO DE DIREITO ... 55

4.1. A liberdade no amor e na confiança: a família ... 59

4.2. A liberdade no egoísmo: a sociedade civil-burguesa ... 64

4.3. A liberdade efetiva na comunidade ética: o Estado ... 81

4.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 100

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10

INTRODUÇÃO

O desafio da problemática do direito filosófico justifica-se pela necessidade de efetivação da liberdade. O fio condutor dessa efetivação é a ideia filosófica do direito, que se desenvolve a partir das questões da realidade propriamente humana, na qual a reflexão da lógica especulativa precede e fundamenta o pensamento sociopolítico. Sem intenção de retomar a gênese do direito positivo, histórico e filosoficamente, pretendemos, através dos elementos da própria filosofia de Hegel, expor o porquê do direito filosófico é ético e o modo como ele busca efetivar a liberdade verdadeiramente, para além das determinações da positividade.

Adotamos como referencial teórico a Enciclopédia das Ciências Filosóficas e a Filosofia do Direito. Este último especificamente porque é o momento de efetivação do Espírito Objetivo, no qual Hegel desenvolve minuciosamente as relações na comunidade. A articulação entre o individual e o coletivo, a particularidade e a universalidade, conceito e história, lógico e político, é um problema abordado por Hegel nesta obra, que segue uma discussão fundamentada no conhecimento filosófico, enquanto ciência filosófica. Segundo Paulo Meneses, “Ciência (Wissenschaft) para ele, significava o saber filosófico, em sua abrangência e sistematização, não o saber científico tal com hoje se entende, e que para Hegel era um saber inferior, que chamava ciências do entendimento1”. Assim, somente pelo método científico seria adequado falar filosoficamente.

Hegel defende a filosofia como ciência, uma ciência filosófica, pois é através dela que o “conteúdo encontra-se essencialmente ligado à forma2”. Esta ligação, ou seja, esta identidade entre forma e conteúdo é determinante para compreendermos o pensamento hegeliano, bem como o dorso da Filosofia do Direito, pois na filosofia hegeliana a forma não se separa do conteúdo, da mesma maneira que, na obra em questão, “a forma racional do direito é idêntica ao seu conteúdo real, e é isso que confere ao direito o estatuto de ciência filosófica do direito3”. Por esse motivo, Hegel,

1

MENESES, Paulo. Abordagens Hegelianas. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2006, p.13.

2 HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino, São Paulo, Martins

Fontes, 2003. Prefácio XXV.

3 SOUSA, Roberta Bandeira de. O itinerário da liberdade na Ciência filosófica do direito. Dissertação

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11 nas primeiras linhas da Introdução, expressa qual o objeto de estudo dessa ciência: “a ciência filosófica do direito tem por objeto a ideia do direito, o conceito do direito e sua efetivação4”.

A ciência do direito, como momento constituinte do sistema filosófico, tem seu ponto de partida determinado e sua ação visa suprassumir um momento anteriormente posto. O conteúdo determinado, porém não arbitrariamente, constitui-se como resultado de um processo que almeja efetivar-se verdadeiramente, a vontade.

No curso da Introdução, Hegel não desenvolve completamente o conteúdo da ciência filosófica do direito, apenas situa o ponto de partida da mesma e demonstra como esse conteúdo determinado resulta do desenvolvimento anterior do sistema5. Deste modo, o domínio do direito tem a vontade, que é livre, como ponto de partida determinado, e sua efetivação faz surgir um conteúdo essencial, ou seja, a liberdade.

A atividade da vontade, em seu processo de determinação de si mesma, parte da vontade potencialmente livre e em como objeto a vontade livre efetivamente. Através dela, o mundo do direito se constitui como reino da liberdade produzido como segunda natureza6. O direito, na atividade da vontade livre, exterioriza-se e tem em si a

4 HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Paulo Meneses, Agemir Bavaresco,

Alfredo Morais, Danilo Vaz-Curado, Greice Ane Barbieri e Paulo Konzen. Rio Grande do Sul: Editora UNISINOS, 2010, §1.

5 Na medida, porém, em que a Filosofia do Direito é ciência filosófica, além de desenvolver na sua esfera

própria as determinações da racionalidade imanente ao seu objeto, ela tem, também, de justificar esse objeto e o seu ponto de partida a partir da gênese imanente no interior do sistema enciclopédico. Nessa perspectiva, a função da Introdução é a de rememorar e reconstituir resumidamente a gênese sistemática, remota e próxima, do objeto da ciência filosófica do direito, a fim de mostrar que o seu “ponto de partida determinado”, enquanto ciência parcial, não é um “pressuposto infundado”, meramente aceito ou definido arbitrariamente, mas, justificado e demonstrado a partir do percurso enciclopédico que a precede. A Introdução, assim, recupera e apresenta de maneira condensada, no seu surgimento conceitual, os principais pressupostos sistemáticos do objeto da ciência filosófica do direito, de sorte que essa gênese mediata e imediata do conceito equivale à “demonstração” ou “dedução” (ibid) do seu objeto e do seu ponto de partida (HEGEL. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do Estado em Compêndio (Introdução). Tradução de Muller, Marcos Lutz.(Apresentação). 2ª ed. São Paulo: IFCH/ UNICAMP, 2005, p.6).

6 A segunda natureza mencionada por Hegel é tudo aquilo que o espírito objetivo, enquanto homem, põe

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12 universalidade por objeto e fim que é princípio de sua auto-objetivação. Ou seja, a ideia do direito é o processo de objetivação da vontade que quer ser livre efetivamente. Segundo Müller (1998):

a ideia do direito, enquanto objeto de ciência filosófica do direito, não é senão o processo da objetivação dessa vontade racional e autônoma, que se sabe e se quer na universalidade como livre, vontade que quer a vontade livre (FD§27), denominada também de “espírito livre” ( E§481; FD §27). Como determinação suprema do espírito subjetivo, ela está no cerne do conceito de direito no sentido amplo, e a sua objetivação circunscreve a esfera do direito7. Contudo, a esfera do direito a que Hegel se refere não pode limitar-se a ser concebido juridicamente, pois ele representa o conjunto de determinações da liberdade que aparecem na figura da vontade livre. Hegel não desconsidera o direito jurídico, apenas considera que este seja animado segundo uma totalidade ética, que faça surgir diante das contingências e barbáries produzidas por ele, a conscientização da comunidade humana do processo de totalização ética, que não limita ao campo formal, mas que fundamentalmente pertence ao real8.

O direito para Hegel, portanto, possui um caráter ético, que não está sujeito às arbitrariedades e nem se impõe arbitrariamente às vontades dos indivíduos. Do contrário, é ele reconhecido e querido por todos de forma a efetivar a liberdade. Assim, natureza física, estática, mas do Espírito ativo que busca seu aperfeiçoamento no tempo (SOUSA, Roberta Bandeira de. Aproximações entre os conceitos de segunda natureza em Hegel e Pascal. Fortaleza: Polymatheia, vol. IV, nº 5, 2008.

7 HEGEL. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do Estado em Compêndio (Introdução). Tradução de Muller, Marcos Lutz. (Apresentação) 2 ed. São Paulo: IFCH/ UNICAMP, 2005. Apresentação, Muller, p. 7.

8

“A questão que preocupa Hegel é de apreender a lógica imanente de qualquer conteúdo político. Assim, a filosofia não tem como função dar a um povo um código positivo de leis, o que não significa que ela se desinteressa dessas leis. Ela deve estar atenta à ciência positiva do direito que tenha se tornado inconsciente da racionalidade de seus próprios princípios. O que está em questão é a produção de uma positividade reflexiva, na qual a lógica formal do entendimento esteja de acordo com a racionalidade de seu conteúdo, onde o código positivo de leis possa ser continuamente animado por uma totalidade ética sempre outra na sua igualdade consigo. A ciência filosófica do direito sistematiza então as figuras e determinações produzidas pelo conceito da liberdade que procura tornar a comunidade humana consciente do processo de totalização de seu próprio fundamento, de tal modo que ela possa escutar e ver o que está por vir. A diferença entre os princípios gerais e suas formas particulares, históricas e geográficas, de concreção é não somente conservada neste movimento, mas pertence á estrutura própria do real” (ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.33).

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13 o sistema do direito expõe os momentos da vontade rumo à efetivação da liberdade. O direito demonstra deste a liberdade formal alcançada no direito abstrato, por meio da propriedade, seguindo pela moralidade na qual a vontade é querer livre e efetiva-se na eticidade na qual a vontade consciente de si sabe e quer algo que seja universalmente válido para todos. É nesta esfera que as normas éticas têm como fim a efetivação da liberdade de todos, ou seja, de um povo.

Deste modo, pretendemos articular o desenvolvimento do direito como parte do todo do sistema hegeliano, que efetiva a liberdade na objetividade. Sendo assim, no primeiro capítulo apresentaremos o conceito de vontade livre como fundamento do direito ético. A vontade é o conceito que se torna efetivo na objetividade. Ela põe-se como atividade prática do espírito subjetivo, que ganhará objetividade quando a vontade realizar seu processo de efetivação da liberdade, na esfera da objetividade, ou seja, nas instituições. A exposição da vontade livre demonstra o desenvolvimento da vontade especulativa do direito. Assim, entra-se propriamente nas discussões do interior da obra, o qual será discutido aqui no segundo capítulo.

Em referido capítulo, abordaremos a vontade em sua forma mais abstrata no direito abstrato. Analisaremos a vontade que tem o direito de ter, ou seja, direito que é fundamental à manutenção da vida e à realização dos desejos particulares. A posse das coisas exteriores representa a exteriorização da vontade, bem como uma necessidade da vida humana. O direito abstrato é momento imediato do processo de efetivação da liberdade, do qual o indivíduo é livre, embora abstratamente, ao exteriorizar sua vontade por meio da posse. O direito abstrato é propriamente o direito jurídico, que defende e garante a posse da coisa à pessoa.

Como primeiro momento da liberdade, o direito abstrato é universal e ao mesmo tempo particular. É universal, porque expressa o direito de todos serem agraciados com as “coisas exteriores” que lhes são essenciais à vida, e particular porque a relação de posse, imediata, representa os desejos e as inclinações da particularidade se exteriorizando.

O âmbito das relações do direito abstrato, por serem mediadas pelas coisas exteriores, confere as pessoas envolvidas nesta relação a possibilidade de se reconhecerem somente por intermédio da coisa exterior, e o respeito entre eles existe

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14 mediante o reconhecimento de que o outro detém igualmente o direito de posse. Nesta primeira determinação da vontade, a liberdade ainda é imediata e revela a pura indeterminação do ser, pois expressa as formas abstratas do direito longe de uma mediação social, por permanecerem no âmbito das relações propriamente jurídicas. Tais relações por sua vez são passíveis de violação, e é justamente aqui quando se encerra o direito abstrato que a moralidade aparece, uma vez que a vontade passa a refletir sobre suas ações e reivindica sua subjetividade livre e põe o seu eu quero como um dever.

Deste modo, no terceiro capítulo desenvolveremos o tema “moralidade”, que corresponde propriamente à interiorização do direito pela vontade livre. A vontade regressa a si e torna-se subjetiva, distanciando-se da imediaticidade a qual se encontrava no direito abstrato. Porém, isso não implica que a pessoa jurídica deixe de existir, ela apenas é suprassumida pelo sujeito, enquanto determinação mais elevada da liberdade.

As determinações da moralidade são essenciais para o processo de efetivação do direito ético, ou seja, da liberdade, exatamente pelo regresso que a vontade faz de si. O momento de interiorização da vontade implica a conscientização de si e de seu poder de autodeterminação, bem como a reflexividade sobre a exterioridade de seu querer, a saber, de sua ação.

Hegel, na moralidade, discute as responsabilidades do sujeito perante suas ações e o modo de conduta social, visto que, ao agir, a vontade subjetiva interfere diretamente nas ações das outras vontades. A vontade precisa ter consciência das consequências de suas ações e de suas implicações na ordem social. A moralidade constitui-se como reflexividade constante da vontade subjetiva sobre as instituições sociais da qual faz parte, visto que estas atuam como poder de legitimação e efetivação das particularidades, que podem ou não criar condições de realização da autonomia, ou melhor, da liberdade subjetiva.

Por isso, a moralidade é o segundo momento do direito, momento em que a liberdade da vontade expressa a “modernidade como fruto do processo de maturação da

(15)

15 ideia de liberdade subjetiva. É um momento especulativamente mais rico do que o direito abstrato, pois a liberdade subjetiva é elevada ao fundamento da ação humana9”.

Porém, a vontade no âmbito da moralidade ainda não consegue estabelecer normas de convivência social, visto que pode ocorrer de cada sujeito querer realizar somente o que lhe for conveniente, negando, assim, a liberdade dos outros. Portando, tem-se a necessidade de um direito que garanta a realização da liberdade de todos, um direito que efetive a vontade verdadeiramente.

Será então no quarto capítulo que abordaremos a vontade universalmente concreta, através da articulação dos momentos precedentes na totalidade ética. As determinações do direito abstrato e da moralidade serão suprassumidas, ao efetivar-se verdadeiramente em si e para si, isto é, quando o direito de ter e ser se configurar como direito ético.

Na eticidade, a vontade efetiva a sua liberdade, por meio das instituições, pois elas viabilizam a concretude da vida ética. A exposição de cada instituição nas minúcias de seu desenvolvimento, a Família, a Sociedade Civil e o Estado, serão abordadas segundo sua importância como instituição necessária para a efetivação da liberdade.

A Família, primeira substância ética, é fundamentada no sentimento, na ideia de que o amor semeia em seus membros noções éticas que lhes possibilitam viver em comunidade. Unidos naturalmente por esse sentimento, ainda não são verdadeiramente livres, nem concretizam a plenitude da vida ética, porém o elemento ético que nela existe está associado ao objetivo da família enquanto comunidade, ou seja, garantir o bem e a liberdade de seus membros. Assim, sabe-se que compete à família a educação de seus membros, a fim de que sejam conscientes e de que reconheçam que somente no Estado ele se efetiva.

No progresso de conscientização, o membro rompe com o núcleo familiar original e expande suas relações numa instituição maior, a sociedade civil-burguesa.

9 SOUSA, Roberta Bandeira de. O itinerário da liberdade na Ciência filosófica do direito. Dissertação

(Mestrado) Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. 2009. Introdução, p.14.

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16 Esta é o palco da liberdade do egoísmo, uma vez que, dissolvido o núcleo familiar, os indivíduos expandem suas relações ao meio social, no qual os mesmos são autônomos e diferentes entre si. Na relação social, o outro é um fim capaz de satisfazer os interesses e as carências particulares das vontades. Estas carências constantes promovem um sistema de dependência recíproca que tem como base o fim egoísta de cada um, que através da mediação com o outro se satisfaz. Desde modo, o particular se relaciona com o universal, considerando-o como meio e não como fim, estabelecendo uma aparente relação ética.

A análise da sociedade civil representa a moderna sociedade na qual as carências, o mundo do trabalho e da produção, os conflitos e as contradições existem. O fundamento antagônico da vida na sociedade compreende o elemento ético de forma aparente, pois nele prevalece o particular em detrimento do universal, sendo rompida a verdadeira realização do ético nas relações sociais.

Sendo assim, a relação aparente estabelecida na sociedade civil se reconstitui, segundo Hegel, no Estado. A conciliação entre o universal e o particular, resgata o elemento ético, ao equacionar as necessidades com liberdade. As necessidades e interesses particulares se conciliam com o universal, por reconhecê-lo como o seu fim imanente. Hegel expõe o Estado como ele é e não como deve ser.

Assim, as estruturas internas do Estado possibilitam a efetivação da liberdade universal, por meio de uma investigação científico-filosófica, da qual a liberdade da vontade progride especulativamente. Portanto, é no pensamento hegeliano que buscamos um caminho racional e filosófico para a problemática do Direito, pois em Hegel a relação entre indivíduo e sociedade constitui uma relação essencialmente ética.

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17

1. CONCEITO DE VONTADE LIVRE

A exposição filosófica de Hegel na Filosofia do Direito articula os momentos da vontade livre que busca efetivar-se plenamente. A vontade, em seu processo de efetivação, parte da vontade potencialmente livre e tem como objeto a vontade livre efetivamente. Este processo da vontade constitui um movimento de autodeterminação, que é um movimento de “avançar”, como diz Rosenfield. Acrescente-se que “o ato de avançar pressupõe que a vontade crie condições de tomar-se como tomar-seu próprio objeto neste processo fundamental de dissolução e de produção de si10”.

Em vista disso, Hegel, na Introdução, expõe o conceito de vontade livre em seu processo de determinação, bem como expõe que ela é “ponto de partida” para o entendimento e articulação do objeto da ciência filosófica do direito, do qual o direito se configura enquanto espírito objetivo:

A Introdução à Filosofia do Direito tem por função, antes de tudo, reconstituir sucintamente a gênese do conteúdo que será objeto do desenvolvimento específico dessa obra, enquanto ciência filosófica parcial, destacada da Enciclopédia para uma abordagem mais extensa e aprofundada do seu projeto, que é o direito enquanto espírito objetivo11.

Hegel demonstra que sua obra desenvolverá a ideia do direito a partir do conceito de direito. O objeto da ciência filosófica, portanto é a ideia do direito: “a ciência filosófica do direito tem por objeto a ideia do direito, o conceito do direito e sua efetivação12”. Neste enunciado, reside todo o fundamento da filosofia hegeliana, pois o que trata a filosofia é de ideias, por isso o conceito que nela atua não é o que mesmo do qual habitualmente entendemos, como algo que define13 e qualifica, mas pura efetividade, no qual ele mesmo se assume e se dá esta efetividade. Portanto, o conceito é “o que unicamente tem efetividade e que a tem de modo tal, que ele mesmo se dá esta efetividade14”. Sendo assim, a ciência filosófica do direito demonstra o processo de

10 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.52.

11 HEGEL. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do Estado em Compêndio (Introdução). Tr.: Muller, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo: IFCH/ UNICAMP, 2005. Apresentação, p. 6.

12 FD, §1. 13 FD, Nota, §2 14 FD, Nota, §1.

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18 efetivação do conceito de direito e, por conseguinte, a efetivação da ideia, pois esta é a efetividade verdadeira posta pelo conceito15.

Tomando as palavras de Carla Gallego, “isso significa que o objeto da Filosofia do Direito implica duas coisas: ‘o conceito de direito’, que são as estruturas da razão que o pensamento ético ocidental comporta, e ‘a efetivação desse conceito’ no mundo social, isto é, as normas éticas e suas instituições que fazem com que o mundo social se apresente como uma estrutura da liberdade16”. A articulação da ciência filosófica do direito, deste modo, compreende a racionalidade dos sistemas sociais e políticos que se configuram na realidade, enquanto real e efetivo.

A ciência filosófica do direito, portanto, desenvolve as determinações da racionalidade imanente ao seu objeto, como também demonstra que seu ponto de partida não é um pressuposto arbitrário; do contrário, faz parte do percurso enciclopédico de seu sistema:

A ciência do direito faz parte da filosofia. O seu objeto é, por conseguinte, desenvolver, a partir do conceito, a Ideia, porquanto esta é a razão do objeto, ou, o que é o mesmo, observar a evolução imanente própria da matéria. Como parte da filosofia, tem um ponto de partida definido que é o resultado e a verdade do que precede e do qual constitui aquilo a que se chama prova. Quando à gênese, o conceito do direito encontra-se, portanto, fora da ciência do direito. A sua dedução está aqui suposta e terá de ser aceita como dado17. A demonstração da vontade livre, para Hegel, só pode ser realizada enquanto estabelece relação com o todo. No direito, a vontade põe-se como atividade prática do espírito subjetivo, exposta na Psicologia, já que se acredita que é que no

15

Essa efetividade verdadeira é alcançada na ideia ética, que, por sua vez, culmina na ideia de Estado. A ideia do direito, desse modo, compreende em si mesma as determinações progressivas do desenvolvimento desse conceito, que igualmente se projetam na exterioridade imediata como configurações efetivas da auto-objetivação da vontade livre enquanto ideia: a pessoa, a propriedade, o contrato, as diferentes formas do injusto, o sujeito moral, o bem, o dever, a família, a sociedade civil, a economia, a administração pública, o Estado, a história mundial, são alguns dos graus ou estágios dessa determinação e dessa efetivação do conceito abrangente de direito. HEGEL. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do Estado em Compêndio (Introdução). Tradução de Müller, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo: IFCH/ UNICAMP, 2005. Apresentação, p.6.

16 GALLEGO, Carla. O conceito de vontade na Introdução da Filosofia do Direito de Hegel.

Dissertatio [27-28], 89 – 104 inverno/verão de 2008.

(19)

19 espírito objetivo que se direciona a efetividade no mundo. Enquanto atividade prática do espírito subjetivo, a vontade é o conceito que se torna efetivo na objetividade. O espírito subjetivo ganhará objetividade quando a vontade realizar seu processo de efetivação na esfera da objetividade, ou seja, nas instituições.

Esta passagem do espírito subjetivo à objetividade configura a vontade como essencialmente livre. O itinerário empreendido pela vontade expõe os momentos de sua efetivação até configurar-se a ideia da liberdade, ou seja, a ideia do direito. A ideia do direito, portanto, é o processo de efetivação da vontade livre, que almeja ser livre efetivamente enquanto espírito livre:

O destino absoluto ou, se se quiser, o instinto absoluto do espírito livre, que é o de ter a sua liberdade como objeto (objetividade dupla pois será o sistema racional de si mesma e, simultaneamente, realidade imediata) (§26º), a fim de ser para si, como idéia, o que a vontade em si – uma palavra, o conceito abstrato da ideia da vontade – é, em geral, a vontade livre que quer a vontade livre18.

Sendo assim, a liberdade pretendida pela vontade na objetividade constitui a substância do direito, pois o direito é autodeterminação da vontade que racionalmente age enquanto livre. A vontade é livre ao se determinar pelo direito, portanto o sistema do direito é o reino da liberdade, que expõe o itinerário percorrido pela vontade para atingir a liberdade:

O domínio do direito é o espírito em geral: aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e de tal modo que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo19.

Neste parágrafo, Hegel esclarece que a liberdade da vontade se constitui no mundo objetivo, sendo a vontade a atividade do espírito objetivo que se produz como segunda natureza. Ou seja, a vontade livre, através do seu desenvolvimento livre é que constitui o direito racional e sua realização, e, embora o direito seja o efetivador da liberdade da vontade, não é ele que a constitui, pois é a própria vontade que põe o direito e suas determinações.

18 FD, §27. 19 FD, §4.

(20)

20 Para Hegel, deste modo, o “domínio do direito” é o espiritual, pois o espírito produz a si mesmo, ou seja, o sistema do direito se constitui como segunda natureza, o reino direito criado pela vontade, a fim de efetivar sua liberdade. Eis que, para compreendermos o processo de efetivação da liberdade da vontade, Hegel expõe o conceito especulativo de vontade livre (§§5-7), a partir da lógica do conceito especulativo de conceito, de forma que se articulam os três momentos, a saber: a universalidade, a particularidade e a singularidade para a formação do conceito especulativo de vontade livre20:

Teremos como suposto o conhecimento, que pertence à Lógica, daquele método segundo o qual, na ciência, o conceito se desenvolve a partir de si mesmo, progride e produz as suas determinações de maneira imanente, em vez de se enriquecer pela gratuita afirmação de que há outros aspectos e pela aplicação da categoria do universal21.

Porém, os momentos especulativos empreendidos pela vontade diferem dos momentos da Lógica, pois estes se articulam no plano do pensar, e a vontade, sendo uma manifestação da liberdade, articula-se no plano da concretude, enquanto ela expõe o itinerário da ideia do direito. Segundo Müller (1998):

a vontade livre só é e vem a ser o que é na atividade de sua autodeterminação do universal, um universal que pela sua relação negativa a si se determina e se particulariza e que, na reflexão sobre esta determinação particular por ele posta, na sua particularização, se encadeia consigo mesmo, emergindo daí como singularidade22.

A vontade livre, então, passa por três momentos para efetivar-se verdadeiramente. No primeiro momento, a atividade da vontade é sem barreiras, é pura indeterminação, que passa a determinar-se nas coisas exteriores, é o âmbito das possibilidades, é a vontade, é universal. No segundo momento, a vontade se decide por

20 Se, por um lado, esta estrutura do conceito especulativo de conceito atua como matriz da formação do

conceito especulativo de vontade livre, em contrapartida, reciprocamente, a vontade livre que se determina a partir de si mesma e por si mesma, a liberdade enquanto autodeterminação oferece o modelo fenomenológico para a elaboração da lógica do conceito especulativo (HEGEL. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do Estado em Compêndio (Introdução). Tr.: Muller, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo: IFCH/ UNICAMP, 2005. Apresentação, p.10).

21 FD, §31.

22 HEGEL. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do Estado em Compêndio (Introdução). Tr.: Muller, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo: IFCH/ UNICAMP, 2005. Apresentação, p.10.

(21)

21 um conteúdo determinado, determina seus desejos segundo a reflexão de si e de sua relação com as outras vontades, a saber, é a vontade particular. Já no terceiro momento, a vontade é singular e se constitui propriamente como livre ao conciliar os momentos anteriores, ou seja, é a vontade que, refletida sobre si mesma, põe-se na exterioridade.

Primeiramente, a vontade livre é pura indeterminação, configura-se como liberdade absoluta que não se determina por nada a não ser por si mesmo, não se percebe em relação com o mundo objetivo. No entanto, o seu desenvolvimento a faz perceber o mundo objetivo, uma vez que se sabe que, através dele, efetiva-se sua liberdade. Neste sentido, a própria indeterminação “indica que sua interioridade dispõe-se a suprimir os limites de um puro pensamento de si e abre-dispõe-se, assim, à exterioridade do mundo23”.

A vontade indeterminada, ao se determinar na objetividade do mundo, tem suas determinidades situadas no âmbito da universalidade abstrata. A vontade, portanto, ainda é formal e precisa atingir sua verdadeira universalidade. Ela encontra-se em potência de determinação, ou melhor, de efetivação da liberdade. Mas, antes de ter suas determinidades fixadas, ela determina a si mesmo, segundo “o elemento da pura indeterminidade24”, que consiste na absoluta abstração de todo conteúdo e objeto:

O elemento da pura indeterminação ou da pura reflexão do eu em si mesmo, e nela se evanesce toda a limitação, todo o conteúdo fornecido e determinado ou imediatamente pela natureza, as carências, os desejos e os instintos, ou por qualquer intermediário; infinitude ilimitada da abstração e da generalidade absolutas, o puro pensamento de si mesmo25.

Enquanto indeterminada, a vontade é pura negatividade, pois nega ser determinada por algo, por sua vez, nega o que lhes são naturais, a saber: seus desejos e impulsos que devem ser satisfeitos:

Esta vontade inicialmente é pura negatividade, mas por tender a uma liberdade objetiva, irá determinar-se por sua exteriorização nas coisas. A vontade passa então a fixar suas determinidades na objetividade, mas ainda é

23 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 36. 24 FD, §5.

(22)

22 imediata, pois não faz uma reflexão apurada de si e de suas determinidades objetivas26.

No desenvolvimento que segue, a vontade, em seu segundo momento, determina-se por meio da reflexão subjetiva das relações que estabelece com a objetividade do mundo. A vontade, enquanto vontade particular de um sujeito, é um “eu” desejante que busca satisfação de seus desejos no mundo objetivo; em contrapartida, esta satisfação é pautada nas escolhas da vontade, pois, enquanto racional, decide quais desejos serão satisfeitos, ou seja, não os satisfaz por instinto, mas segundo sua racionalidade.

Segundo Hegel, “a reflexão do Eu, aquele conteúdo é apenas um possível, suscetível de se tornar ou não meu, e o Eu é a possibilidade de me determinar tal ou tal, de escolher entre tais determinações que, deste ponto de vista formal, lhe são exteriores.”27 Portanto, a liberdade da vontade é livre arbítrio. Neste momento, a vontade é capaz de refletir e decidir como agir, “pela decisão, afirma-se a vontade como vontade de um indivíduo determinado e como se diferenciando fora dele em relação a outrem28”. Assim, a vontade que antes se determinava pela relação com as coisas, enquanto vontade objetiva, agora se determina pela relação com outras vontades, enquanto subjetiva:

Ao mesmo tempo, o Eu é a passagem da indeterminação indiferenciada à diferenciação, a delimitação e posição de uma determinação específica que passa a caracterizar um conteúdo e um objeto. Pode este conteúdo ser dado pela natureza ou produzido a partir do conceito do espírito. Com esta afirmação de si mesmo como determinado, o Eu entra na existência em geral: é o momento absoluto do finito e do particular no Eu29.

Na vontade particular, o eu não apenas quer, mas quer algo, e diferentemente do momento anterior, pois, ao refletir sobre suas escolhas, decide como agir. Enquanto que na vontade universal existia a “indeterminação tanto do sujeito desejante quanto do conteúdo da vontade30”, na vontade particular o sujeito se

26 SOUSA, Roberta Bandeira de. O itinerário da liberdade na Ciência filosófica do direito. Dissertação

(Mestrado) Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. 2009, p. 72.

27

FD, §14.

28 FD, §13. 29 FD, §6

30 GALLEGO, Carla. O conceito de vontade na Introdução da Filosofia do Direito de Hegel.

(23)

23 determina, é um “eu” que quer algo determinado. Por esse motivo, a vontade particular é compreendida como negação do momento anterior, visto que a vontade não é simplesmente uma objetividade imediata, mas uma reflexão de si mesma, pois esta reflexão nega a imediatez da vontade.

Este momento de negação da vontade constitui a “vontade enquanto contradição31”, pois, embora Hegel pretenda mostrar que a escolha da ação pautada na reflexão é momento constitutivo da vontade livre, ela ainda é insuficiente para efetivar a liberdade da vontade, ela não é, segundo o filósofo referido:

“ainda a verdade, pois ela ainda não se tem a si mesma como fim e como conteúdo e o aspecto subjetivo ainda é diferente do aspecto material. O conteúdo desta determinação ainda está, por conseguinte, simplesmente limitado; longe de construir a vontade em sua verdade32”.

Assim, a contradição existente no conceito de vontade refere-se à exteriorização da vontade nas coisas que se contradiz e volta-se para si mesma, percebendo a sua relação na objetividade com as outras vontades.

O terceiro momento da vontade se constitui pela unidade da vontade universal com a vontade particular33, ou seja, é a união da vontade imediata com a vontade refletida, que agora efetiva a vontade livre verdadeiramente:

A vontade é a unidade desses dois momentos: a particularidade refletida sobre si e que assim se ergue ao universal, quer dizer, a individualidade. A autodeterminação do Eu consiste em situar-se a si mesmo num estado que é a negação do Seu, pois que determinado o limitado, e não deixar de ser ele mesmo, isto é, deixar de estar na sua identidade consigo e na sua universalidade, enfim, em não estar ligado senão a si mesmo na determinação. O eu determina-se enquanto é relação de negatividade consigo mesmo, e é o próprio caráter de tal relação que o torna indiferente a essa determinação específica, pois sabe que é sua e ideal. Concebe-se como pura virtualidade à qual não se prende, mas onde se encontra porque ele mesmo lá

31 FD, §15. 32 FD, nota, §15.

33 O terceiro momento da vontade é a união da vontade imediata (objetiva) com a vontade refletida

(subjetiva). A primeira é a vontade universal, porque visa à fixação universal das leis objetivas que projetam o direito às coisas; a segunda é a vontade particular, pois reflete estas leis no âmbito do particular, no âmbito da subjetividade. A união das duas, ou seja, a união da universalidade abstrata e da particularidade, dá a liberdade efetiva da vontade (SOUSA, Roberta Bandeira de. O itinerário da liberdade na Ciência filosófica do direito. Dissertação (Mestrado) Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. 2009, p.73).

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24 se colocou. Tal é a liberdade que constitui o conceito ou substância ou, por assim dizer, a gravidade da vontade, pois do mesmo modo a gravidade constitui a substância dos corpos34.

A unidade dos dois momentos anteriores da vontade realiza o conceito de vontade, ela é vontade em si e para si:

A vontade que existe em si é verdadeiramente infinita porque é ela própria o seu objeto e não constitui, portanto, para si nem um outro nem um limite mas, antes, um regresso a si. Ela não é, pois pura possibilidade, disposição, potencia (potentia), mas o infinito atual (infinitvm actv), porque a existência do conceito ou o seu objeto exterior é a própria interioridade35.

A vontade, portanto realiza o conceito de vontade, a assim este se torna ideia livre em si e para si, pois “ na vontade livre o verdadeiramente infinito tem efetividade e presença, - ela mesma é esta ideia presente dentro de si”36, a vontade livre, sendo assim passa a ser entendida como:

(...) a universalidade concreta em si mesma e, por conseguinte, existente para si é a substância, o gênero imanente ou a ideia da consciência de si, é o conceito da vontade livre como universal que vai além do seu objeto e, ao percorrer as determinações deste, nela é idêntico a si. O universal em si e para si é aquilo a que se chama o racional e só pode ser concebido de um modo especulativo37.

Por isso, Hegel afirma que “no sentido mais especulativo, o modo de existência de um conflito e a sua determinação constituem uma e a mesma coisa38”. No seu processo de autodeterminação, a vontade apreende a unidade das determinações, suprassume sua imediaticidade e passa à concretude de sua efetivação. No movimento especulativo, os momentos da vontade, enquanto resultado, são “uma forma ulteriormente determinada, precedem-no no desenvolvimento científico da ideia39”, pois “a ideia tem, sempre de determinar-se ulteriormente, já que ela no começo é somente, primeiro, conceito abstrato. Mas este conceito abstrato inicial nunca é abandonado, ao

34 FD, §7. 35 FD, §22. 36 FD, Nota, §22. 37 FD, Nota, §24. 38 FD, Nota, §32. 39FD, Nota, §32.

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25 contrário, ele se torna sempre mais rico dentro de si, e a última determinação é, portanto, a mais rica40”.

Sendo assim, o itinerário empreendido pela vontade para alcançar sua esfera mais rica, a saber, a sua efetivação, será abordada na filosofia do direito, enquanto atividade objetiva do espírito livre, que através do sistema de direito efetivará sua liberdade, pois o Direito, segundo Hegel, é a liberdade em geral, a ideia41.

A vontade universal será articulada no momento do direito abstrato, pois a vontade abstrata tem sua existência empírica em algo exterior, onde as determinidades deste momento serão articuladas por Hegel na figura da pessoa. Na relação com o mundo das coisas, a vontade exteriorizada retorna a si, reflete sobre sua exteriorização e sobre a relação com outras vontades. É a vontade se particularizando e constituindo a individualidade subjetiva, correspondente ao momento da moralidade. No entanto, somente na união desses dois momentos é que a vontade é livre verdadeiramente, ou seja, a eticidade expõe a conciliação de tais momentos e constitui a liberdade efetiva.

Segundo as fases do desenvolvimento da ideia da vontade livre em si e para si, a vontade é: a) imediata. O seu conceito é, portanto, abstrato: a personalidade; e a sua existência empírica é uma coisa exterior imediata, é o domínio do direito abstrato ou formal: b) a vontade que da existência exterior regressa a si é aquela determinada como individualidade subjetiva em face do universal (sendo este parte, como bem, interior, e em partem cimo mundo dado, exterior), sendo estes dois aspectos da ideia obtidos apenas um por intermédio do outro; é a ideia dividida na sua existência particular, o direito da vontade subjetiva em face do direito do universo e do direito da ideia que só em si existe ainda, é o domínio da moralidade subjetiva: c) unidade e verdade destes dois fatores abstratos: a pensada ideia do Bem realizada na vontade refletida sobre si e no mundo exterior, embora a liberdade como substância exista não só como real e necessária, mas ainda como vontade subjetiva. É a ideia na sua existência universal em si e para si, é a moralidade objetiva (eticidade)42.

Na eticidade, a vontade, que é espírito objetivo e efetivo, é mundo da liberdade que pela integralidade das suas figuras reais da família, da sociedade civil- burguesa e do Estado a efetiva plenamente. Sendo assim, o Estado é a expressão máxima da liberdade, ou seja, é o ápice do mundo ético. Hegel deixa claro que “o Estado, como algo ético, como compenetração do substancial e do particular, implica

40 FD, Adendo, §32. 41FD, §30.

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26 que minha obrigação para com o substancial seja, simultaneamente, o ser-aí da minha liberdade particular, isto é, que, nele, obrigação e direito estejam unidos numa mesma relação43”.

Portanto, o caráter ético do Estado, na compreensão de Müller, justifica-se por ser o Estado a esfera pública da cidadania, que, como universal concreto, abarca e fundamenta o universal formal no nexo social, constituído na interseção dos interesses privados, regidos pela universalidade igualmente formal do direito. Desde modo, o Estado é compreendido como espaço de efetivação da liberdade, no qual só é possível pensar em uma comunidade humana livre com a existência dele.

Assim, compreende-se que, para Hegel, a vontade livre é fundamento do direito ético, pois é a vontade que constitui as determinações do direito a fim de realizar-se enquanto vontade livre. Portanto, “o que está em jogo para a vontade é a criação das formas concretas de sua realização44”. A exposição do conceito de vontade é o alicerce para a compreensão do interior da obra, já que, nela, Hegel desenvolve minuciosamente o itinerário da ideia de liberdade empreendido pela vontade nos momentos do direito abstrato, na moralidade e na eticidade:

A ideia do direito, desse modo, compreende em si mesma as determinações progressivas do desenvolvimento desse conceito, que igualmente se projetam na exterioridade imediata como configurações efetivas da auto-objetivação da vontade livre enquanto ideia: a pessoa, a propriedade, o contrato, as diferentes formas do injusto, o sujeito moral, o bem, o dever, a família, sociedade civil, a economia, a administração pública, o Estado, a história mundial, são alguns dos graus de estágios dessa determinação e dessa efetivação do conceito abrangente de direito45.

43

FD, §261.

44 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.56.

45 HEGEL. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do Estado em Compêndio (Introdução). Tr.: Muller, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo: IFCH/ UNICAMP, 2005. Apresentação, p. 9.

(27)

27

2. O DIREITO DE TER: EXTERIORIZAÇÃO DO DIREITO 2.1. A liberdade da pessoa na propriedade: o direito abstrato 2.1.1. O objeto da Vontade como pessoa.

Neste capítulo, discutiremos o direito abstrato, primeiro momento da Filosofia do Direito que trata do direito de ter, ou seja, do momento em que a vontade tem realidade no mundo. Para Hegel, “o direito começa por ser a existência imediata que a si se dá a liberdade46”. O ser-aí imediato é o mundo exterior, do qual a vontade se realiza. Neste momento a vontade se concretiza na figura da personalidade (pessoa), que tem consciência de si e de seus direitos e deveres perante os outros. Por isso, Hegel define que o imperativo do direito abstrato é “sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas47”.

O reconhecimento entre as pessoas acontece quando elas entram em uma relação jurídica, ou seja, em uma relação mediada pela propriedade. Segundo Hegel, a propriedade é o domínio exterior, que a pessoa dá a sua liberdade a fim de ser enquanto ideia, portanto, a pessoa concretiza na esfera exterior a sua vontade livre48.

Nos parágrafos §§ 44 e 45, Hegel pontua que a pessoa tem direito de colocar sua vontade sobre as coisas, de forma que a coisa adquire como seu fim substancial, o que ela em si não tem, a vontade própria da pessoa. Somente a pessoa possui este direito, ou seja, o direito de apropriação sobre todas as coisas, sendo assim, as coisas do mundo adquirem realidade e verdade quando submetidas à vontade da pessoa.

Há alguma coisa que o Eu tem submetida ao seu poder exterior. Isso constitui a posse; e o que constitui o interesse particular dela reside nisso de o Eu se apoderar de algumas coisas para a satisfação das suas exigências, dos seus desejos e do seu livre-arbítrio. Mas é aquele aspecto pelo qual o Eu, como vontade livre, me torno objetivo para mim mesmo na posse e, portanto, pela primeira vez real, é esse aspecto que constitui o que há naquilo de verídico e jurídico, a definição da propriedade49.

A propriedade, por ser domínio exterior, pela qual as pessoas jurídicas se relacionam entre si e com as demais, depara-se com conflitos que serão mediados pela

46 FD, §40. 47 FD, §36. 48 FD, §41. 49 FD,§45.

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28 ordem jurídica, pois cabe à ordem jurídica as determinações de que, em tal relação, as pessoas envolvidas se respeitem e se reconheçam mutuamente, ao preservar sua propriedade sem ferir ou lesar a propriedade do outro.

O direito à propriedade, segundo Rosenfield, é o direito ao direito50. A propriedade se configura pelos bens que a pessoa possui, são eles que constituem o que é próprio de cada um. Por isso, as pessoas se sentem tão atingidas quando sua propriedade é violada, pois sua privacidade foi desrespeitada. Noutras palavras, a propriedade é algo próprio da pessoa, um valor que, quando violado, faz retirar da pessoa que o possui o direito ao direito, direito de possuir coisas materiais essenciais à vida.

A relação que a pessoa estabelece com a propriedade, enquanto material, refere-se à satisfação das coisas que são vitalmente necessárias a vida, portanto o acúmulo de bens, sua quantidade e qualidade provêm do acidental. Segundo Hegel, o racional é que se possua propriedade, enquanto esta é de direito, porém neste momento a propriedade ainda não é idêntica à liberdade, mas é constituinte da liberdade efetiva. Por isso, que Hegel coloca ao nível do jurídico as determinações e as mediações desses acúmulos de bens.

O que há de racional na relação com as coisas exteriores é que eu possuo uma propriedade; o aspecto particular abrange os fins subjetivos, as carências, a fantasia, o talento, as circunstâncias exteriores (§45). Só disso depende a posse. Mas neste aspecto particular ainda não é, neste domínio da personalidade abstrata, idêntica, à liberdade. É, PIS contingente, do ponto de vista jurídico, a natureza e a quantidade do que possuo51.

O importante é ter o essencial à manutenção da vida, o acúmulo de bens provém do querer que ultrapassa as necessidades da pessoa, portanto é mediante as relações da vontade com a coisa, isto é, as maneiras como a vontade se relacionam com o mundo exterior, que Hegel define as determinações da propriedade, da qual a ordem jurídica atua. Tais relações são: tomada de posse, uso da coisa e alienação.

A tomada de possessão é o primeiro momento de exteriorização da vontade livre, porém imediata. Ao tomar posse das coisas do mundo, a pessoa visa à satisfação individual. Neste tocante, a propriedade ainda não é atividade livre que exterioriza sua

50 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.72. 51 FD, §49.

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29 vontade. Noutras palavras, a propriedade expressa a consciência da vontade ao exteriorizar-se em uma realidade fora dela.

Portanto, a propriedade é o determinante nesse processo, do qual a possessão marca a efetivação da liberdade da pessoa52. Todavia, esse movimento de exteriorização não se limita à simples satisfação dos anseios particulares53; embora também cumpra essa função, ela representa “a expressão do processo de determinação do conceito54”.

Hegel inicialmente põe a liberdade como relação da vontade consigo mesma na tomada de posse, porém a vontade necessita ser reconhecida por outras vontades, sem o qual ficaria na pura abstração. A simples posse precisa ser objetiva também para os outros, pois só enquanto reconhecida é a que a posse torna-se propriedade da pessoa.

Assim, a objetividade da possessão e o seu reconhecimento, Hegel desenvolve nos momentos do ato corporal, do fabrico, e da assinatura55. O ato corporal56 é a expressão da vontade particular que se faz presente na apropriação da coisa, embora sujeito temporal e espacialmente aos limites dela.

Nos limites do tempo e do espaço, a possessão pelo ato corporal se manifesta insuficiente; logo, é necessária uma forma mais perfeita, da qual se apresentará pela forma do fabrico57. No fabrico está implícita a presença da vontade de uma pessoa sem que ela esteja presente corporalmente. Distinto do que aparece no ato corporal, o fabrico resiste ao tempo e ao espaço, a relação entre a vontade e a coisa é

52 ROSENFIELD, Denis L. Introdução ao pensamento político de Hegel. São Paulo: Ática, 1983, p. 72. 53 A propriedade é “exteriorização” mesma da vontade, é tomar posse das coisas do mundo não só por

uma satisfação individual, mas para firmação universal da vontade livre da pessoa que tem na objetividade a expressão da sua atividade livre. A propriedade é, portanto ápice do processo de possessão, é a expressão da efetivação da liberdade da pessoa (SOUSA, Roberta Bandeira de. O itinerário da liberdade na Ciência filosófica do direito. Dissertação (Mestrado) Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. 2009, p.77).

54 ROSENFIELD, Denis L. Introdução ao pensamento político de Hegel. São Paulo: Ática, 1983, p.72. 55 FD, §54.

56 FD, §55. 57 FD, §56.

(30)

30 ativa, expressa capacidade de a pessoa transformar o objeto natural, pelo seu trabalho, de forma a tomar posse de sua objetividade e modificá-lo em seu favor.

Essa transformação do objeto natural dá-se segundo a vontade do saber e do querer de uma pessoa, assim diz Hegel, “pelo dar forma (fabrico), a determinação segundo a qual é o meu recebe uma exterioridade subsistente para si e deixa de ser delimitada à minha presença nesse espaço e nesse tempo e à presença de meu saber e de meu querer58”. E ainda acrescenta: “o dar forma, é nessa medida a tomada de posse mais adequada à ideia, porque ela reúne em si o subjetivo e o objetivo59”, ou seja, pelo fabrico a pessoa coloca no objeto algo de si e nele permanece enquanto existir como coisa externa.

E, por fim, Hegel pontua o terceiro momento da possessão, a assinatura, porém, a este ponto faz uma pequena explanação no §58, no qual diz:

c) a possessão que não é efetiva para si, mas constitui simplesmente um representação para a minha vontade, é um sinal que está sobre a coisa, um sinal que significa que nela eu pus a minha vontade. Tal possessão varia infinitamente em extensão e significação reais60.

Embora Hegel tenha colocado o fabrico como uma expressão mais próxima da ideia, no que consiste a identidade entre o subjetivo e o objetivo, ressalta que este terceiro momento da possessão, a assinatura, é ainda mais próximo do que aquele, pois no ato corporal e no fabrico a coisa e a pessoa mantinham uma relação direta. Já na possessão pela assinatura, a coisa é reconhecida por outras pessoas independente da presença da pessoa que a produziu.

Na compreensão de Rosenfield, a assinatura61 é a expressão mais perfeita da possessão. A assinatura perpassará o tempo e lugar em que ela esteja e, por ela o produtor será reconhecido sem estar em uma relação direta com a coisa. É perfeita justamente por ser a identidade dos dois momentos anteriores, o ato corporal e o

58

FD, §56.

59 FD, Nota, §56. 60 FD, §58.

61Rosenfield denomina a assinatura de ‘marcação’ ou ‘signo distintivo’ ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.77

(31)

31 fabrico, pois a vontade tomou posse da coisa, a transformou e afirmou sua vontade, mesmo quando não detém mais a posse, nem está junto dela.

Se a posse confere à pessoa que a coisa lhe pertença e que ela possa ser transformada conforme o querer da pessoa, cabe a ela também consumi-la e utilizá-la segundo esse mesmo querer. Assim, o uso da coisa, segundo Hegel, é “esta satisfação da minha exigência por meio da modificação, destruição, consumo da coisa, que nisso manifesta a sua estranheza dependente e assim cumpre o seu destino, é o que constitui o uso62”.

O uso da coisa concretiza a possessão da vontade, pois somente quando a coisa tem utilidade é que no processo de apropriação a coisa tem sentido para a vontade. Na leitura de Rosenfield, “uma apropriação que não satisfizesse os carecimentos e os desejos da pessoa seria algo morto ou, pelo menos, afastado da atividade cotidiana dos homens63”.

Para Hegel, o uso confere à pessoa o direito de posse, por conseguinte é a pessoa proprietária da coisa: “desde o momento em que o seu uso me pertença, eu sou proprietário da coisa, fora da sua integral utilização, nada existe que possa ser propriedade de outrem64”. Portanto, a coisa é propriedade enquanto a pessoa tem o uso integral da mesma.

Assim, a relação da vontade com a coisa, além de ser determinada pela posse e pelo uso, é também determinada pela alienação da coisa, terceiro momento de efetivação da liberdade. Hegel acresce que é próprio da pessoa dispor da coisa no sentido de poder desfazer-se dela, abandoná-la ou ainda doá-la para outro.

A alienação a que Hegel se refere traduz propriamente a relação com as coisas materiais e não com relação a pessoas. Hegel critica veemente as formas de alienação da personalidade, na medida em que retira da pessoa o direito de personalidade e a torna submissa à vontade de outra. Somente as coisas exteriores

62 FD, §59.

63 ROSENFIELD, Denis L. Introdução ao pensamento político de Hegel. São Paulo: Ática, 1983, p.78. 64 FD, §61.

(32)

32 podem ser alienadas, a pessoa é livre e, não pode ser objeto de submissão e de posse de outro65.

Hegel ainda discute outra maneira de alienação, muito presente de organicidade da sociedade moderna, o trabalho. Este é compreendido como momento da liberdade, na medida em que, alienado parcialmente, ou seja, a pessoa aliena apenas uma parte de sua produção, como diz o próprio filósofo no §67:

Posso ceder a outrem que seja produto isolado das capacidades e faculdades particulares da minha atividade corporal e mental ou emprego delas por um tempo limitado, pois esta limitação confere-lhe uma relação de extrinsecidade com a minha totalidade e universalidade. Mas se eu alienasse todo o meu tempo de trabalho e a totalidade da minha produção, daria a outrem a propriedade daquilo que tenho de substancial, de toda a minha atividade e realidade, da minha personalidade.

Para Hegel, o trabalho enquanto força exteriorizada, só pode ser alienada por tempo limitado, pois do contrário abandonaria toda a atividade e realidade da personalidade. A noção de trabalho, exposta por Hegel, justifica a divisão de trabalho existente na sociedade-civil e o trabalho assalariado, questões que são recorrentes das relações econômicas.

A defesa da divisão do trabalho e, por conseguinte o trabalho assalariado decorre das grandes transformações ocorridas na época de Hegel, das quais as revoluções e as modificações econômicas se tornaram determinantes da sociedade. A vontade se exterioriza no mundo através do trabalho, ou seja, da atividade de transformação das coisas exteriores conforme a capacidade de serem alienadas. Porém, a realidade da época molda a ação da vontade, na qual esta responde aos anseios vigentes confrontando-se com uma realidade de exploração e extensas jornadas de trabalho.

O determinante que Hegel pontua na alienação é a capacidade da pessoa alienar as coisas que lhe pertence, assim como o trabalho, enquanto momento da liberdade, pois a pessoa neste processo afirma ser senhora de si mesmo e, tem a possibilidade de dispor efetivamente do que lhe é externo, sem que este elemento exterior o domine.

(33)

33 Deste modo, o trabalho assalariado não fere a determinação da liberdade e nem é sinônimo de exploração social, salvo se a pessoa ceder toda essência livre da vontade. A disposição de ceder à outra parte do trabalho marca a divisão do trabalho, enquanto as coisas são transformadas e trocadas por dinheiro. Ainda nesta relação, o que se aliena são coisas exteriores, coisas produzidas pela vontade por meio de seu trabalho, logo não atinge a vontade enquanto tal. Segundo Hegel, a divisão do trabalho e o trabalho assalariado não são relações de exploração e sim manifestações da liberdade da pessoa.

Os homens são livres, e as determinações de trabalho desenvolvidas por Hegel afirmam esta liberdade. O trabalho liberta, contribui para o processo de conscientização do homem, por isso a oposição dada à escravatura, visto que nela toda capacidade produtiva de uma pessoa está nas mãos de outro, que não lhe oferece nada em troca e impede de se dispor livremente de sua propriedade.

Segue-se que as determinações da relação da vontade com a coisa exterior definem as diferentes manifestações de apropriação da vontade no mundo das coisas. Esta relação, por sua vez, exige que as pessoas envolvidas sejam reconhecidas enquanto pessoas particulares, isto é, personalidades livres. Na exigência deste reconhecimento, a pessoa deixa de relacionar-se consigo mesma, estabelece relação com outra pessoa, que igualmente almeja ser reconhecida. Esta relação necessita de uma mediação, o contrato, que permita aos proprietários se reconhecer mutuamente enquanto tal.

2.1.2. O mediador da relação entre pessoas: o contrato

O contrato, enquanto mediação das personalidades livres, afirma o querer de cada uma perante o outro na propriedade. “É neste processo que surge e se resolve, na medida em que se renuncia à propriedade, a antítese de ser proprietário para si mesmo e de excluir os outros66”. Portanto, o contrato expressa tanto a vontade das particularidades, numa relação de exclusão, pois visa somente a particularidade em si, o querer imediato da mesma, como também se torna mediação que permite as particularidades se reconhecerem enquanto proprietários.

(34)

34 Embora na relação contratual cada vontade permaneça para si como vontade própria, as diferenças e as características de cada uma precisam ser superadas, a fim de que se reconheçam como vontades livres e iguais entre si.

Esta necessidade do conceito é real na unidade das vontades diferentes e distintas. Esta identidade de vontades também, porém, implica (neste grau) que cada uma delas não seja idêntica a outra e para si persista como uma vontade própria67.

No contrato, portanto, as vontades são idênticas entre si somente enquanto são proprietários, isso implica que cada um “por vontade própria ou pela de um outro, deixe de ser, continue a ser ou venha a ser proprietário68”. Assim, no contrato, as pessoas se portam uma perante a outra como independentes e imediatas, por conseguinte o contrato configura-se como “produto do livre-arbítrio69”. A vontade comum afirmada na relação contratual tem como objeto a coisa exterior e particular que pode ser submetido ao querer da vontade de aliená-lo.

Deste modo, para Hegel, o contrato é inadequado para reger as relações humanas, pois permanece na particularidade de cada vontade e “não está conceitualmente ligada a uma determinação comum70”. O que existe em comum entre elas é o querer de ser reconhecido como proprietário de uma coisa exterior.

Por isso, a função do contrato é insuficiente para fundamentar uma comunidade, o contrato “é racionalmente inadequado à realização do objetivo71”. Assim, a base da comunidade no contrato afirma ser o direito privado um direito público, e toda comunidade estaria ligada a uma vontade particular, subjetiva72. Portanto, a organicidade de uma comunidade, ou seja, o Estado não deve ser fundado

67 FD, §73. 68 FD, §74. 69 FD, §75

70 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.85. 71 BOBBIO. Norberto. Estudos sobre Hegel: Direito, Sociedade Civil, Estado. Ed. Brasiliense, p.34. 72

Hegel não desconhece a categoria do contrato, mas só lhe reconhece validade na esfera do direito privado: a teoria do contrato social é uma indébita transposição de um instituto próprio do direito privado para a esfera do direito público (transposição que, para Hegel, é um dos erros característicos de toda a tradição do direito natural). BOBBIO. Norberto. Estudos sobre Hegel: Direito, Sociedade Civil, Estado. Ed. Brasiliense, p. 34.

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