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2.2 O critério material do ISSQN

2.2.4 A lista de serviços e o papel da lei complementar

A Constituição estatui a partir de seu art. 61 os procedimentos para elaboração dos veículos normativos elencados no art. 59 da Lei Maior, evidenciando que cada veículo introdutor de norma no ordenamento possui um processo de produção específico. É aqui que reside o elemento nuclear que diferencia a Lei Complementar dos demais veículos introdutores.

Na seção que trata do processo legislativo, em especial na subseção destinada às leis, optou o legislador constituinte em arrolar, conjuntamente, todas as diretrizes para elaboração desse veículo introdutor, dedicando, exclusivamente, o art. 69 da Constituição Federal à figura da Lei Complementar, que assim estatui: Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria

absoluta. Diferentemente ocorre com a espécie Lei Ordinária, que se sujeita à maioria simples.

Sendo assim, são dois os elementos conceituais da Lei Complementar:200 matéria reservada e quórum próprio. Ou seja, a Lei Complementar é veículo normativo reservado somente para

199 STF, RE 97.804/SP, Rel. Decio Miranda, j. 26/06/1984, DJ de 31/08/1984.

200 Cf. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.

determinadas matérias, definidas expressamente pela Constituição, necessitando, para sua aprovação, de quórum correspondente à maioria absoluta.

No que tange às particularidades da lei complementar, José Souto Maior Borges,201 apregoando a distinção entre esta e a lei ordinária através da diversidade do regime jurídico, conjugado por dois requisitos constitucionais – quórum especial e qualificado – mais o âmbito material da competência legislativa própria, ressalta que a especificidade da lei complementar pode ser identificada no seu regime jurídico formal (exclusivo), tendo em vista que o quórum para aprovação da lei complementar é superior ao exigido para aprovação da lei ordinária, aliado ao seu regime jurídico material, que diz respeito às matérias que constituem o seu objeto.

Ainda quanto à particularidade do papel da lei complementar em matéria tributária, estriba-se em duas razões fundamentais, de acordo com as ilações de Regina Helena Costa. 202

Em primeiro lugar, em virtude da opção do legislador constituinte de tratar a tributação de maneira detalhada. Ademais, por competir a todos os entes políticos legislar concorrentemente sobre o assunto, cabe à União, mediante lei complementar, estabelecer normas gerais em matéria tributária, que se vinculam a todas as pessoas políticas, inclusive a própria União. Logo, as matérias reservadas à lei complementar são estritamente aquelas previstas pelo constituinte,

Na qualidade de normas gerais em matéria tributária, o Código Tributário Nacional, veiculado através da Lei Ordinária nº 5.172/66, fora editado sob a égide da Constituição Federal de 1946, que não previa a lei complementar como espécie legislativa, sendo introduzida apenas com o advento da Constituição de 1967.

A lei complementar em matéria tributária, bem como aquelas que se vinculam a outros ramos do direito, subordina-se à Constituição e seus grandes postulados, devendo imperar, em sua edição, os padrões que disciplinam a feitura das normas infraconstitucionais, em geral. Conforme preconiza Roque Antonio Carrazza, “[...] ela só poderá irradiar efeitos se e enquanto estiver contida, na pirâmide jurídica, em cuja cúspide encontram-se as normas constitucionais [...]”.203

De acordo com a dicção do art. 146 da Constituição Federal, a Lei Complementar apresenta três funções em matéria tributária: dispor sobre conflito de competência, regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria tributária.

201 Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 19-29. 202 Cf. COSTA, Regina Helena. Curso..., cit., p. 162.

De acordo com apontamento interessante de Sacha Calmon Navarro Coêlho, 204 o que de fato é protegido pela lei complementar em matéria tributária não é exatamente conflito de competência, dada a rigidez constitucional apresentada pela Lei Maior, mas invasões de competência em razão da insuficiência intelectiva dos relatos constitucionais pelas pessoas políticas destinatárias das regras de competência relativamente aos fatos geradores de seus tributos.

Significa dizer que a pessoa política interpreta erroneamente o comando constitucional e passa a exercer a tributação de maneira mais ampla que a prevista na Constituição. Questões dessa natureza são submetidas ao Judiciário, deixando claro que tal possibilidade realmente existe.

Por derradeiro, vale pontuar que, a título de solver conflito de competência, não pode o legislador complementar alterar a Constituição, pois, conforme ensinamentos de Roque Antonio Carrazza, 205 a Constituição não conferiu ao legislador complementar um cheque em branco, pois entendimento diverso ensejaria a atribuição de poder contribuinte à lei complementar.

Vale registrar o pensamento Regina Helena Costa.206 Em síntese, a autora elenca quatro funções da lei complementar em matéria tributária: 1) veicular normas gerais nesse âmbito, dispondo sobre conflitos de competência e regulando as limitações constitucionais ao poder de tributar; 2) instituir tributos em relação aos quais é expressamente exigida; 3) conferir uniformidade ao regramento de certos impostos dos Estados e Municípios (ITCMD, ICMS e ISS); e 4) estabelecer critérios especiais de tributação, destinados à prevenção de desequilíbrios da concorrência (art. 146-A).

Trazendo tais ilações ao estudo do ISSQN, ressaltamos que, instituído pela Emenda Constitucional nº 18/65, a tributação intitulada por serviços de qualquer natureza passou por diversas transformações ao longo dos anos, seja em razão das sucessivas Constituições surgidas, seja até mesmo em decorrência das emendas constitucionais na vigência da Carta hodierna.

Diante dessas modificações, houve uma ligeira mitigação da competência constitucional atribuída aos Municípios, principalmente quando da análise advinda das últimas Emendas Constitucionais, culminando na atual dicção do art. 156, III, da Constituição Federal.

204 Curso..., cit., p. 84. 205 Curso..., cit., p. 1047. 206 Curso..., cit., p. 41.

Quando da promulgação da Constituição de 1988, estava sob vigência Decreto-Lei 406/68, abarcando as diretrizes basilares do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, cuja recepção pelo novel sistema constitucional restou consignada pelo § 5º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, consagrando expressamente o princípio da recepção das leis, levando-se em consideração, para tanto, o conteúdo material de suas prescrições. Assim sendo, o Decreto-Lei nº 406/68 foi recepcionado pela Lei Maior de 1988 com força de lei complementar “material”. 207

A carta constitucional hodierna, já em sua redação original, como bem sublinha Kiyoshi Harada,208 estabelecia algumas “limitações específicas” aos Municípios, denominando dessa forma a outorga de uma competência “sublimitada”, a saber:

• Serviços de qualquer natureza não compreendidos na esfera impositiva dos Estados (art. 156, IV).

• Definição de serviços tributáveis por lei complementar (art. 156, IV, in fine). • Fixação por lei complementar de alíquotas máximas do imposto (§ 4º do art. 156).

Frise-se que, hodiernamente, com a supressão do texto constitucional da figura dos impostos sobre vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, o ISSQN passou a integrar o inciso III do art. 156, mantendo-se a exigência de definição de serviços por lei complementar, não obstante a novel redação advinda da Emenda Constitucional nº 3/93.

Dessa maneira, por expressa disposição constitucional, como se depreende da leitura do inciso III do art. 156 da Lei Maior, ao estatuir que à municipalidade compete instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, é inequívoco que os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação estão fora do alcance de atuação dos Municípios, adstritos exclusivamente ao poder impositivo dos Estados-membros.

Conclui-se, desse modo, que, em relação aos “serviços de transportes”, há restrição parcial ao exercício da competência tributária impositiva pelos Municípios, limitando-se aos serviços de natureza intramunicipal, já que os serviços de transportes interestadual e intermunicipal são de competência dos Estados-membros e dos Municípios. Diversamente ocorre com os serviços de

207 Cf. BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., cit., p. 225.

comunicação, descabendo aqui falar em qualquer resquício de competência tributária a ser exercida pelos Municípios, sendo que tal exigência estará adstrita somente à faixa de competência Estados-membros e Distrito Federal.

Nesse diapasão, a temática suscita diversas manifestações conflitantes sobre o papel da Lei Complementar em matéria de ISSQN, as quais não poderíamos deixar de dedicar alguns parágrafos, sobretudo no que atina a eventuais limites a serem obedecidos por esse veículo normativo no cenário jurídico-positivo. É que passaremos a abordar no próximo tópico.