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A Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho: o leitor de caráter popular

De 1955 a 1959, sob direção de Afrânio Coutinho, foi publicada A Literatura no Brasil385, uma coletânea de textos sobre a história literária do país, dividida por estilos de época. Nesse momento, a historiografia literária passava a ser redigida por especialistas, que

384 Id. Ibid., p.202.

385 COUTINHO, Afrânio (org.). A Literatura no Brasil, vol. III. Estilos de Época: era Romântica. São Paulo:

170 provinham do âmbito universitário, o que resultava na busca por métodos de análise que se mostrassem confiáveis e seguros na investigação do objeto literário e que prescindissem da pessoalidade e limitassem a interpretação de viés histórico386. De acordo com Eduardo Coutinho,

Nessa campanha, Afrânio advogava veementemente um tipo de crítica intrínseco ao próprio fato literário, que partisse do texto enquanto tal, reconhecendo e respeitando sua autonomia, e que o enfocasse à luz de pressupostos de ordem fundamentalmente estética. Era a derrocada do historicismo em seu sentido tradicional, que abordava a obra literária sempre por um movimento do contexto para o texto, e o abandono ao impressionismo crítico – ao “achismo”, como ele costumava dizer – em nome de um labor científico, técnico e meticuloso, que colocava a crítica brasileira ao lado das grandes correntes que se vinham desenvolvendo, havia já algumas décadas, na Europa e nos Estados Unidos387.

Essa “primazia do texto literário” – na expressão de Eduardo Coutinho – determinou a divisão de A Literatura no Brasil em “estilos de época”. Afrânio Coutinho justificou essa separação declarando que “a periodização literária ideal obedecerá a critério puramente literário, a partir da noção de que a literatura se desenvolve como literatura”388. Restringindo o papel das delimitações cronológica e histórica, sem prescindir totalmente desses dois fatores, a orientação que propôs para A Literatura no Brasil era a de que:

Ocupa o centro das épocas ou períodos uma idéia do homem ou o conjunto de concepções que o homem faz de seu destino, de si próprio, da vida futura

386 COUTINHO, Eduardo F. “A contribuição de Afrânio Coutinho para os estudos literários no Brasil” in Crítica e Literatura. FIGUEIREDO, Carmen Lúcia Negreiros de; HOLANDA, Sílvio Augusto de Oliveira; AUGUSTI, Valéria (orgs.). Rio de Janeiro: De Letras, 2011.

387

COUTINHO, Eduardo F. “A contribuição de Afrânio Coutinho para os estudos literários no Brasil” in Id. ibid., p. 186.

388 COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1976,

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e de Deus, da melhor maneira de dar representação simbólica a essas concepções e de gravar em um estilo a sua visão estética da realidade389.

Essa nova metodologia, proposta por Coutinho, teria inovado na forma de abordar a obra e o leitor de José de Alencar? Não se pode perder de vista que A Literatura no Brasil é uma obra coletiva e, como tal, aliada aos propósitos do organizador, aparece uma pluralidade de visões e concepções sobre o julgamento e a análise literária em voga no momento.

No volume destinado à “Era Romântica”, consta o texto de Heron de Alencar, que empreendeu a análise da ficção romântica, inclusive a de José de Alencar. Apesar de o capítulo pretensamente tratar de todos os romancistas do período, Heron de Alencar evidenciou, já no título, a predominância de Alencar na sua exposição: “José de Alencar e a ficção romântica”390

. A respeito da trajetória percorrida pela obra de Alencar, o estudioso declarou que:

Machado de Assis disse uma vez a Alencar, publicamente, que contra a conspiração do silêncio o ilustre escritor teria por si, um dia, a conspiração da posteridade. E ainda nisso foi profético o autor de Brás Cubas, o nome e a obra de Alencar pertencem indiscutivelmente à posteridade, mas a posteridade precisou e ainda precisa de conspirar para valorizá-los. Deixando de lado a crítica contemporânea do romancista, ou a que lhe foi imediatamente posterior, “de todo ininteligente, acaso por ser de todo malévola” como percebeu Veríssimo, basta ver a posição que Alencar ocupa nos quadros da nossa literatura em relação à crítica e ao público391.

Segundo Heron de Alencar, a posteridade acolheu Alencar. Para tanto, o leitor teve que enfrentar objeções para apreciar a obra de Alencar, talvez numa referência à crítica

389

Id. Ibid., p. 23.

390 ALENCAR, Heron de. “José de Alencar e a ficção romântica” in COUTINHO, Afrânio. COUTINHO,

Afrânio (org.). A Literatura no Brasil, vol. III. Estilos de Época: era Romântica. São Paulo: Global, 2002.

172 antirromântica, que tentou interromper a apreciação das obras do escritor pelos leitores. Na concepção de Heron de Alencar, essa preferência do leitor posterior à primeira circulação estaria associada a um maior valor estético da obra de Alencar? Tentar compreender o perfil desse leitor exposto pelo crítico pode favorecer a compreensão desse aspecto:

Dois fatos tornam essa posição bastante singular: primeiro, o de continuar sendo um dos autores mais lidos em todo o país, o que pode ser facilmente comprovado pelo número de edições dos seus romances e, também, pelas estatísticas de bibliotecas, notadamente as circulantes, segundo o fato de a este prestígio permanente, de caráter popular, não corresponder nem mesmo o simples interesse da grande maioria dos nossos intelectuais392.

O trecho revela que o critério estético não predominou na avaliação que Heron de Alencar empreendeu a respeito da obra de Alencar. Para ele, deve preocupar o crítico “a estimação dos valores estéticos e até mesmo dos fatos históricos” 393. Aqui o autor levou em consideração o contexto histórico ao referir-se a dados sobre a recepção das obras do escritor.

A imagem que pode ser depreendida do leitor não contemporâneo a Alencar, nesse trecho, é a de um leitor popular, que aparece em contraposição a um leitor culto, que não prestigia a sua leitura. A preferência de caráter popular pelas obras do escritor e o pouco interesse do leitor culto pelos seus romances eram consequências, segundo Heron de Alencar, da forma como a sua obra era lida pelos críticos, que evidenciavam o aspecto romanesco e sentimental, resultante da falta de profundidade artística do romancista. Mas, para Heron de Alencar, ao contrário de ingênuo e irrefletido, Alencar tinha erudição e consciência do fazer literário. A despeito das considerações de Veríssimo, que desqualificou o leitor Alencar,

392 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p.p. 250-251. 393 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p. 252.

173 Heron de Alencar reconhecia nos escritos do romancista o resultado de reflexão e muito estudo:

... Alencar, longe de ser um instintivo, foi vocação que se apurou e se disciplinou graças ao estudo paciente e continuado. Estudo (...) da forma literária que elegeu como preferencial, feito através dos tratados de retórica e da leitura dos numerosos romancistas, e estudo do processo histórico brasileiro, graças ao que lhe foi possível realizar não apenas um romance de boa estrutura técnica mas igualmente representativo da então nascente nacionalidade394.

Heron de Alencar inovou na forma como percebeu o gênero romance e a sua importância para a formação dos escritores no Brasil e do aprimoramento estético de suas obras, ao não desprestigiar a imagem de Alencar enquanto leitor dessas obras. Romero não levou em consideração o romance na concepção original de sua história, Veríssimo desqualificou alguns romances lidos por Alencar; no entanto, Heron de Alencar reconheceu a relevância do gênero no contexto histórico em que ganhou ampla veiculação:

...o Romantismo permaneceu sempre ligado às lutas políticas, não obstante sua tendência à embriaguez metafísica, e fez dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, sua inspiração e seu motivo. Surgia, assim, uma nova temática para a literatura; as camadas, que os movimentos revolucionários haviam trazido para a realidade social, emergiriam, também, para as páginas dos romances e para os versos dos poemas. Seria nas primeiras, sobretudo, que elas encontrariam sua melhor expressão. O romance, mais do que a poesia e o teatro, era o meio adequado à difusão das ideias românticas, pelo menos daquelas tendências mais profundas e universais395.

394 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p. 256. 395 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p. 232.

174 O romance era o gênero que melhor traduzia o momento. Alencar, tendo identificado “o romance como a nova forma de poesia capaz de atender às exigências de nossa literatura em formação”396, dialogava com essas tendências universais, presentes, como Heron de Alencar indicou, no romance romântico europeu e nas diversas literaturas nacionais. Alencar seria, portanto, um leitor eficiente, tendo refletido nas suas obras o resultado de suas leituras, que as favoreceram esteticamente. A leitura de romances empreendida por Alencar, desprestigiada por Veríssimo e entendida como responsável pela porção piegas e ingênua de Alencar, foi considerada por Heron de Alencar relevante para o seu processo de conscientização da forma desse gênero. Dessa maneira, Alencar mostrava-se “um romancista senhor do seu ofício, dono de uma técnica que não fora antes revelada e, mesmo depois, só seria ultrapassada por Machado de Assis” 397. A partir da sistematização que Alencar estabeleceu para a sua obra romanesca e da classificação que os críticos elaboraram para ela, Heron de Alencar julgou pertinente dividi-la em três grupos: romance histórico; romance urbano e romance regionalista.

A respeito do romance histórico, apesar da idealização e poetização dos fatos e episódios narrados, “o romance indianista de Alencar não deixaria de ser, como é, legítimo romance histórico” 398. Segundo o autor, respondendo a uma necessidade de afirmação da autonomia política e cultural, “Alencar criou, com base mais lendária do que histórica, o mundo poético e heroico de nossas origens, para afirmar a nossa nacionalidade, para provar a

396 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p. 253, (grifo do autor). 397 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p. 254.

175 existência de nossas raízes legitimamente americanas” 399. Sobre o romance urbano, Heron de Alencar dialogou com a declaração de Alencar em “Benção Paterna”, em que o romancista abordou a influência da cultura estrangeira na constituição da sociedade brasileira. Para o estudioso, na verdade, essa influência estrangeira nos romances de Alencar se daria mais na escolha do assunto e da forma do que na sua interferência no viver do brasileiro, resultando que “apesar das aproximações, se confirma o poderoso e original romancista da vida brasileira nos meados do século XIX, cujo conjunto de obra, sem dúvida, representa a sólida base em que havia de fundamentar toda a nossa novelística” 400. O romance regionalista revelaria o cuidado de Alencar com a observação, o que resultaria no realismo dessas narrativas: “Esse cuidado do romancista representa, para a época, um passo bastante significativo, inclusive porque evidencia – da concepção à execução das obras – um predomínio da tendência realista já manifestada no romance histórico e urbano” 401. Heron de Alencar fez uma análise positiva da obra de Alencar, opondo-se aos conceitos que os críticos e mesmo Veríssimo expuseram, ao afirmarem que Alencar era um intuitivo, que copiava os modelos estrangeiros, cujo excesso de imaginação o impedia de observar e de dotar seus romances de realismo.

O leitor do futuro reconheceria o valor dessa obra e o consagraria. A representação de leitor de Alencar, na perspectiva de Heron de Alencar, era, portanto, a de um leitor extemporâneo de caráter popular, que apreciava e lia com voracidade os romances do escritor, segundo a sua indicação de sucessivas edições e do fácil acesso aos livros em bibliotecas.

399 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p. 259. 400 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p. 261. 401 ALENCAR, Heron. “José de Alencar e a ficção romântica” in Id. Ibid. p.p. 262-263.

176 Ainda que fizesse parte de uma história literária que seguia um novo padrão crítico, Heron de Alencar não obedeceu a ele e desenvolveu a sua análise levando em consideração o leitor da obra de Alencar, o contexto de elaboração dessa obra e a sua repercussão na posteridade.

3.4. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, de Antonio Candido: os três