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História da Literatura Brasileira, de José Veríssimo: o leitor e o cânone

Seguindo o pressuposto de que “literatura é arte literária”, Veríssimo, na elaboração de sua História da Literatura Brasileira, levou em consideração os fatores que estavam em torno da apreciação dessa arte: “uma literatura (...) só existe pelas obras que vivem, pelo livro lido, de valor efetivo e permanente e não momentâneo e contingente”374. O seu critério de seleção de obras para a composição da sua História levou em consideração aquelas que “sobrevive[m] na nossa memória coletiva de nação. Não cabe nela os nomes que não lograram viver além do seu tempo”375. O coletivo apareceu aqui em oposição ao individual expresso por Romero. Percebe-se, portanto, a relevância do público e da repercussão de uma obra no julgamento que Veríssimo empreendeu e na seleção do cânone que estabeleceu para a sua História. Tanto que, para ele,

Não é escritor senão o que tem alguma coisa interessante do domínio das idéias a exprimir e sabe exprimi-la por escrito, de modo a lhes aumentar o interesse, a torná-lo permanente e a dar aos leitores o prazer intelectual que a obra literária deve produzir376.

374 VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908).

Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963, p. 14. Cf. ZILBERMAN, Regina. “Entre duas histórias: de Sílvio Romero a José Veríssimo” in ROCHA, João Cezar de Castro (org.) Op. Cit., p.p. 873-881.

375 Id. Ibid., p. 15. 376 Id. Ibid., p. 16.

166 Veríssimo situou Alencar entre esses escritores e o destacou como um dos fundadores da literatura no país. Enquanto prosador, o historiador afirmou que “é ele cronologicamente o primeiro que por virtudes de ideação e dons de expressão mereça o nome de escritor”377. Dois critérios pontuaram a composição dessa História: o valor estético da obra e a repercussão alcançada por ela. Um ou outro se sobressaía na argumentação de Veríssimo, com o objetivo de reforçar seus julgamentos em relação ao tipo de prestígio que atribuiu aos escritores. Ainda que enaltecesse o valor estético das obras de Alencar, Veríssimo não reconheceu a importância das leituras feitas pelo romancista cearense para a sua formação enquanto romancista:

Como a maioria dos literatos brasileiros, a formação literária de Alencar era, sobre deficiente, defeituosa. (...) Confessa José de Alencar, aliás em páginas bem insignificantes, que após estudos clássicos mal feitos, como foram sempre os nossos dos chamados preparatórios, os livros que leu foram os romances franceses, Amanda e Oscar e Saint Clair das ilhas, Celestina e quejandos em ruins traduções portuguesas. Leu-os e os releu e, reconhece ele próprio, foi essa leitura que lhe influiu a imaginação, cuja herança atribui à mãe, para se fazer romancista. Mais tarde, já estudante de um curso superior, mas ainda entendendo mal o francês, leu no original e desordenadamente Balzac, Vigny, Dumas, além de Chateaubriand e Victor Hugo378.

Veríssimo elencou as leituras feitas por Alencar, considerando algumas delas desprestigiosas, como Amanda e Oscar, Saint Clair das ilhas e Celestina. Essas obras – de recorrente leitura no período –, de acordo o historiador, foram prejudiciais para a formação literária de Alencar. A referência à mãe de Alencar como responsável por algumas das leituras do escritor reforçava essa imagem de desprestígio, pelo seu caráter feminil. Já os romances

377 Id. Ibid., p. 196. 378 Id. Ibid., p.201.

167 que representavam bons exemplos do gênero teriam sido mal lidos e mal interpretados pelo escritor. Essa visão do leitor Alencar refletiu no leitor de Alencar:

Daquelas primeiras leituras de romances traduzidos na intenção das damas sentimentais, lhe ficaria sempre o conceito – que foi aliás de toda a nossa romântica até o naturalismo – que o romance é uma história puramente sentimental, cujos lances devem pela idealização e romanesco nos afastar das feias realidades da vida e servir de divertimento e ensino. É uma história principalmente escrita em vista das senhoras. O romanesco, frequentemente de uma invenção pueril e de uma sentimentalidade que frisa à pieguice, foi com Alencar, com Macedo, com Bernardo Guimarães e ainda com Taunay, sem falar em menores, a feição predominante – feição que no-lo torna hoje geralmente despiciendo – do romance brasileiro até o naturalismo ou melhor até Machado de Assis que ainda em antes deste se libertara desse vezo379.

Considerando-se que havia romances que constituíam “uma história (...) escrita em vista das senhoras” e que essa foi, segundo o historiador, a tópica seguida pelos romancistas do período, nota-se que Veríssimo nivelou os leitores desse tipo de romance ao representá-los como ingênuos, feminis, sentimentais e afeitos a uma leitura de simples entretenimento, sem a elevação que Veríssimo esperava que uma obra literária pudesse proporcionar ao leitor, conforme expôs na introdução, citando Lanson:

“A literatura destina-se a nos causar um prazer intelectual, conjunto ao exercício de nossas faculdades intelectuais, e do qual lucrem estas mais força, ductibilidade e riqueza. É assim a literatura um instrumento de cultura interior; tal o seu verdadeiro ofício. Possui a superior excelência de habituar- nos a tomar gosto pelas idéias. Faz que encontremos num emprego do nosso pensamento, simultaneamente um prazer, um repouso, uma renovação. Descansa das tarefas profissionais e sobreleva o espírito aos conhecimentos, aos interesses, aos preconceitos de ofício; ela ‘humaniza’ os especialistas. Mais do que nunca precisam hoje os espíritos de têmpera filosófica; os estudos técnicos de filosofia, porém, nem a todos são acessíveis. É a literatura, no mais nobre sentido do termo, uma vulgarização da filosofia:

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mediante ela são as nossas sociedades atravessadas por todas as grandes correntes filosóficas determinantes do progresso ou ao menos das mudanças sociais; é ela quem mantém nas almas, sem isso deprimida pela necessidade de viver e afogadas nas preocupações materiais, a ânsia das altas questões que dominam a vida e lhe dão um sentido ou um alvo. Para muitos dos nossos contemporâneos sumiu-se-lhes a religião, anda longe a ciência; da literatura somente lhes advêm os estímulos que os arrancam ao egoísmo estreito ou ao mister embrutecedor”. Não se poderia definir com mais cabal justeza, nem com mais elegante simplicidade, a literatura e sua importância380.

A importância da literatura, portanto, estava associada à elevação do leitor, por despertar-lhe o amadurecimento intelectual. No entanto, quando se referia aos romances produzidos no Brasil, “num meio como o nosso, mal educado”, definia o seu leitor como pueril e piegas. Para ele, foi nesse molde romanesco, em atenção a esse perfil de público do país no período, que Alencar escreveu o que chamou de “o romance da nossa vida civilizada e mundana e ainda um vago esboço do que viria a chamar-se de romance psicológico”381.

Em relação a O Guarani, Veríssimo afirmou que “as obras primas (...) fazem-nas também o tempo, e o tempo não faltou com esta sua virtude ao romance de Alencar”382 e que, no conjunto da sua produção ficcional, há “três ou quatro romances porventura destinados a perdurar”383. Veríssimo dividiu a obra de Alencar em duas fases, considerando as obras assinadas por Sênio pertencentes à fase de declínio, enquanto que as suas melhores produções estariam entre as produzidas anteriormente. Os aspectos que prejudicariam a qualidade das obras de Alencar seriam a idealização e a falta de observação, características atribuídas aos romances da primeira fase e aos publicados na década de 1870:

380 Id. Ibid., p.p. 12-13. 381 Id. Ibid., p. 201. 382 Id. Ibid., p. 198. 383 Id. Ibid., p. 205.

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No Gaúcho (1870), no Tronco do Ipê (1871), no Til (1875), no Sertanejo (1876), essa vida é recontada não conforme uma visão natural das coisas, mas segundo o conceito que já fora confessadamente o do Guarani, “um ideal que o escritor intenta poetizar” e cuja prática o arrasta, como em todos eles, a frioleiras ou monstruosidades de imaginação e de estética. Não obsta que não haja também nesses livros a realidade superior que a mesma poesia cria384.

A obra de Alencar apresenta caráter dúbio, pois ao mesmo tempo em que corresponderia com um critério romanesco, portanto ideal e irreal, também revelaria, através da poetização, uma “realidade superior”. Para além da boa receptividade entre o público do período, como se viu, ingênuo, pueril e romanesco, essa combinação, com a presença de um fator que apresentaria o real, seria responsável pela permanência de algumas de suas obras, como declarou, já que o leitor posterior à primeira circulação, representado como de opinião mais esclarecida, consagrou Alencar, a quem essas obras atenderiam. As mesmas obras apresentavam, portanto, elementos que as desprestigiavam e que estavam em sintonia com o leitor de seu tempo e elementos que as valorizavam, reconhecidos pelo leitor do futuro.