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O PAPEL DOS INTELECTUAIS EM FRANÇA E EM PORTUGAL: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

I. ENGAGEMENT, POLÍTICA E SOCIEDADE EM FRANÇA

7. A literatura engagée

A par da esquerda intelectual do pós-guerra, em França coexistia um outro grupo, o da direita maurrassiana, que saiu da clandestinidade e recomeçou a fazer-se ouvir. Eram antigos colaboradores e colaboracionistas do regime de Vichy e apoiantes de Pétain que trouxeram a público a revista mensal Les Écrits de Paris, em janeiro de 1947, e cujo sucesso permitiu o lançamento em 1951 do semanário Rivarol.

Paralelamente, mas situando-se na ala oposta, a da esquerda comunista, Georges Albertini, camarada de Léon Blum, também membro do CVIA, em 1949 lançou um boletim de informação sobre o comunismo e a URSS, conjuntamente com Boris Souvarine, fundou o Instituto de História Social, importantíssimo centro de documentação sobre o comunismo.

A Academia Francesa permaneceria o polo da direita de Maurras e seus seguidores. Já Jean Paulhan, fundador de Lettres Françaises, continuou a sua obra graças ao seu caráter inconformista e resistente. Na sua ótica, os escritores tinham de assumir as suas responsabilidades, mas também os seus atos porque não eram magistrados, o que inflamava os ânimos entre alguns intelectuais, nomeadamente Aragon, Breton e mesmo Benda. Este último, aliás, referindo-se a Paulhan, disse em diversos artigos publicados em 1946 e 1947 que ««le talent littéraire – ou ce qu’on croit tel – donne droit à l’imposture intelectuelle, c’est ce que toute une classe de […] concitoyens admettent depuis longtemps […] le talent littéraire donne droit à la tahison.».36

Por seu turno, Paulhan afirmava a sua raiva pelo facto do patriotismo dos comunistas ser, muitas vezes, carregado de antipatriotismo. Em 1946 o mesmo Paulhan

fundou Les Cahiers de la Pléiade, na Gallimard, como se do renascimento da N.R.F. se tratasse, ao lado de nomes como Malraux, Gide, Benda e outros.

Paulhan atacava Aragon, Eluard, entre outros, e a literatura deu lugar a novas guerras políticas. A luta entre intelectuais fazia lembrar o Affaire Dreyfus, de tal maneira, no início dos anos cinquenta, o domínio evidente dos intelectuais de esquerda centrava as suas atenções em dois pontos contestatários: Paulhan e a sua tentativa de restaurar a NRF e o dos hussards, oriundos da direita, que permaneceram em silêncio até à guerra na Argélia.

François Mauriac era quem conseguia mover-se entre um e outro campo. Conceituado romancista católico, opunha-se à hegemonia comunista e à influência de Sartre. Frequentava o grupo dos Petits Canards de La Table Ronde, que tinha como objetivo reunir escritores da direita à esquerda, ainda que tal não chegasse a evidenciar-se.

Por outro lado, aquando do ataque das tropas da Coreia do Norte, sob domínio soviético, à Coreia do Sul, sob o domínio dos EUA, em junho de 1950, Aron alertou para o facto de este ataque simbolizar um ataque soviético aos americanos e ser necessário tomar uma atitude: ou intervir ou sofrer a humilhação desencorajadora dos países aliados, deixando espaço de manobra ao agressor.

Esta guerra durou três anos e as lutas ideológicas que se intensificaram a nível mundial, foram particularmente marcantes em França.

Para os comunistas e camaradas de luta não era discutível a tese que defendia o ataque premeditado à Coreia do Sul. Desde março 1950, todas as bases comunistas foram mobilizadas para engager o maior número possível de pessoas ao Apelo de Estocolmo que visava a completa proibição do uso da bomba atómica.

A linguagem da paz tornou-se o idioma dos comunistas, apenas ameaçados pelo poder americano. Na realidade, o que os intelectuais de esquerda ou de direita pretendiam era expor as suas ideias em órgãos de comunicação social como viria a acontecer em publicações como o jornal Le Monde, as revistas Esprit, Les Temps Modernes e

L’Observateur.

Ao longo das décadas e acompanhando os diferentes acontecimentos da História em França, as revistas e jornais franceses de publicação diária ou semanal foram também, indubitavelmente, veículos importantes de divulgação das ideais de intelectuais e grupos de esquerda e de direita.

A 1 de fevereiro de 1909 saiu a primeira publicação de vulto: a NRF, pela mão de André Gide e da qual fazia parte, em termos diretivos, Jean Schlumberger, Jacques Copeau, André Ruyters e o próprio Gide.

A importância desta revista ficou a dever-se ao facto de se mostrar aberta às novas tendências literárias contemporâneas e pretender a defesa e ilustração da língua francesa, segundo o programa de Du Bellay.

Para além disso, ainda que Gide quisesse manter-se distante do nacionalismo literário, os artigos publicados aproximavam-se de sentimentos patrióticos, o que, sem dúvida, agradava à Action Française.

Antes da Iª Guerra era, pois, uma revista de grande qualidade e tida como «moderada», no tocante às ideologias políticas. Foi exatamente este acontecimento histórico que dispersou os colaboradores da NRF e fez com que as publicações fossem interrompidas até ao seu reaparecimento, a 1 de junho de 1919, sob a edição da Livraria Gallimard e com princípios iguais aos de 1909: constituir um espaço propício à criação, alimentada por uma inteligência permanente.

Em junho de 1940 a sua publicação foi outra vez suspensa, sendo retomada em dezembro do mesmo ano, sob a direção de Pierre Drieu la Rochelle37 e sem a colaboração dos autores judeus e comunistas, tal como acordado com as autoridades nazis. Tal situação durou até 1943. Após a Libertação foi proibida e acusada de colaboracionismo. Jean Paulhan e Marcel Arland recolocaram-na em público, em 1953, ainda que sem a influência que exercia antigamente. (É atualmente uma revista de publicação trimestral).

Em 1919, surgiu Clarté, revista comunista, com Barbusse e Lefebvre, mais tarde transformada em jornal. Esta pretendeu ser uma reação contra a guerra, através da constituição de uma Internacional dos Intelectuais. Era seu objetivo agrupar as elites do mundo inteiro, homens «de boa fé» que estavam contra a guerra, sem distinção de tendências. Esta publicação anunciava o fim da cultura burguesa que Barrès simbolizava e, via Barbusse, atraiu personalidades como Anatole France, Einstein, Mann, entre outros.

Por seu turno, Esprit, revista intelectual francesa, nasceu em 1932 através de Mounier, cujas orientações personalistas se definiram em correlação com o grupo Ordre

Nouveau. Era seu objetivo fazer sentir o engagement à margem dos movimentos então

37 (Paris, 3/01/1893 – 15/03/ 1945). Escritor e jornalista, foi comabatente durante a Iª Guerra Mundial. Nos

vigentes. Em torno desta revista criou-se uma rede nacional e internacional que difundiria as suas ideias.

Depois da assinatura do Armistício, Esprit foi relançada com Mounier, em Lyon, na zona livre, e publicada até 1941, data da sua proibição, uma vez que criticava o regime de Vichy. Aquando da Libertação, Mounier voltou a relançar a revista que participou ativamente nos debates do pós-guerra, revelando até algumas tendências pró-comunistas (até 1949).

Esprit funcionava como meio de apresentação de algumas opiniões dos intelectuais

de esquerda, uma vez que, dirigida por católicos, tinha colaboradores que não o eram. Era um sinal dos tempos, onde coexistiam ideias vindas de diferentes quadrantes. Pluralismo era a palavra de ordem.

O engagement preconizado por Sartre, Mounier e outros, pretendia, em suma, continuar a luta em nome dos ideais da Resistência e de todos os que perderam a vida neste combate. Não se tratava de aderir ao comunismo, antes de desafiar o regime capitalista e burguês. Dada a pluralidade de membros que o partido conseguiu reunir, Esprit deveria considerar os comunistas como aliados.

Jean Lacroix, no número de relançamento da revista Esprit, diz mesmo: «Présentement, les communistes acceptent de se soumettre à la discipline nationale et de participer, à leur rang, à l’effort de tous pour la victoire et la reconstruction française.»38

Ora, temos de concluir que também esta conciliação de Esprit com o PC tinha outros objetivos em mente, para além da necessidade de pacificar o momento então vivido. Eram estes a vontade de não se afastar do proletariado, o interesse intelectual pelo marxismo e a aliança política pela revolução, transmitida e trazida pelas forças carregadas de esperança da Resistência.

Todavia, as publicações de 1945 a 1947 foram de tal modo pouco convincentes, que Henri Denis, num artigo, em maio de 1947, defendeu um engagement revolucionário do cristão em conjunto com outras organizações revolucionárias do PCF. Ou seja, a abertura a novas atitudes deveria fazer parte do comportamento de todos os intelectuais fosse qual fosse o seu quadrante.

Outra publicação a destacar: L’Observateur, lançado a 13 de abril de 1950 e pode ser considerado um satélite da imprensa comunista.

Jornal de intelectuais para intelectuais, limitou o seu campo de influência e ação, mas também concentrou a sua eficácia. Impôs-se como órgão do socialismo intelectual marxista e hostil à SFIO.

Os seus fundadores foram antigos resistentes: Gilles Martinet da Action Française, Roger Stéphane, Claude Bourdet e Hector de Galard de Combat.

Era, pois, o espírito da resistência que caraterizava a primeira equipa deste jornal que depressa se tornou uma espécie de lugar de encontro da esquerda não comunista, dos marxistas aos cristãos de esquerda.

A partir de 1954, passou a chamar-se France-Observateur e os seus artigos a dar relevo à defesa dos direitos humanos, referenciando os indivíduos maltratados pela sociedade e pelo poder.

As guerras na Indochina e na Argélia foram motivo de fortes denúncias e críticas nesta publicação, considerando as preocupações dos seus mentores.

A partir de novembro de 1964, tendo em conta, novamente, algumas alterações, o jornal passou a designar-se Le Nouvel Observateur.

Pelo conjunto de publicações elencadas, pode concluir-se que a década de 50 em França, teve um forte domínio e influência da esquerda no poder, o que levou também a esquerda intelectual a endurecer a sua crítica face aos acontecimentos. Destes destacam-se as consequências nefastas que a guerra na Argélia deixou quer para os franceses, quer para o povo argelino, bem como a necessidade de defender os direitos humanos e dizer não aos conflitos armados.

Intelectuais como Mauriac, Sartre, Claude Roy, Camus integravam o grupo daqueles que se insurgiam contra a guerra na Argélia e contra as torturas praticadas pelos franceses durante este conflito. Como sucedera no Affaire Dreyfus, os intelectuais pretendiam defender a verdade e a justiça, ainda que em 1958, a esquerda francesa não conseguisse revelar uma sinergia tão intensa quanto os dreyfusards haviam conseguido em 1899.

Unidos para denunciar a violação dos direitos humanos, conseguiram unir alguns nomes improváveis como foi o caso de Malraux e Mauriac.

Verifica-se, pois, que aquando dos principais acontecimentos que marcaram a vida dos franceses, da própria Europa e até do mundo, como foi o caso da Iª e da IIª Guerra

Mundial e mesmo aquando da Guerra Fria, é inquestionável a importância que os intelectuais sempre tiveram.

É notória a sua luta pela verdade e pela paz, a sua oposição ao fascismo totalitário e opressor que anula o ser humano e o reduz a um indivíduo inquieto mas submisso às leis de um ditador.

É, portanto, evidente que, ao longo da História da França, foram muitas as circunstâncias que comprovam que a ala dos intelectuais mais à direita foi notoriamente mais conservadora e nacionalista, defendendo ideais dogmáticos e fascisantes. Ao invés, a ala esquerda, de cariz mais progressista, mostrou-se sempre bem mais defensora dos direitos humanos e dos trabalhadores, lutando por uma maior hegemonia de classes.

Reitere-se que quando falamos de intelectuais e da sua forma de atuação engagée nesta luta pela igualdade, pela justiça e pela verdade, estamos, sem dúvida, e em primeira instância, a falar da França. Foi este o país, berço de homens de ideais audazes e sociologicamente evoluídos para o ser humano em geral, que contagiaram muitos outros, atravessando as fronteiras geográficas francesas. Foram os intelectuais franceses que tornaram viável a muitos outros, nomeadamente aos intelectuais portugueses, a abertura de caminhos, razões e coragem inabaláveis para desencadearem também formas de luta que conduzissem à liberdade e ao respeito pelos direitos dos cidadãos portugueses.