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1.3 O ATIVISMO DOS POVOS TRADICIONAIS NO SISTEMA INTERAMERICANO DE

1.3.1 A litigância da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni no SIDH

O Povo Indígena Awas Tingni, da etnia Mayagna ou Sumo, formado por mais de seiscentas pessoas, está assentado na Costa Atlântica Caribenha da Nicarágua, Região Autônoma do Atlântico Norte (RAAN). Organizam-se através de uma estrutura de liderança tradicional, com uma Junta Diretiva eleita por uma assembleia constituída por todos os membros adultos, que responde diretamente a esta assembleia, com subsistência na agricultura familiar e comunal, na plantação de frutas e plantas medicinais, na caça e na pesca, realizando essas atividades dentro de um determinado espaço territorial, de acordo com seu sistema tradicional de posse de terras vinculado à sua organização sociopolítica73 e sem o título real de

propriedade desse território74.

Em outubro de 1995, o povo indígena Mayagna de Awas Tingni apresentou uma demanda perante à CIDH contra o Estado do Nicarágua por outorgar uma concessão de suas terras, sem o devido consentimento, à Companhia “Sol del Caribe S.A.” (SOLCARSA), para realizar a construção de estradas e a extração de madeira. Dois meses depois, a CIDH recebeu um pedido de solicitação de medidas cautelares por parte dos peticionários75.

No ano seguinte, outras comunidades indígenas da RAAN aderiram a este pleito. Os peticionários informaram à CIDH sobre o avanço dessa concessão e enviaram-lhes um Projeto de Memorando de Entendimento, com o objetivo de chegar a uma solução amistosa. A CIDH realizou duas reuniões entre as partes a fim de apresentar o memorando e conciliar a demanda, o que não ocorreu. Na

72 GAMBOA, Jorge F. Calderon. La evolución de la “reparación integral” en la jurisprudencia de

la Corte Interamericana de Derechos Humanos. México: Comisión Nacional de los Derechos Humanos, 2013. p. 50.

73 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas de 31 de agosto de 2001. p. 103.

74 Ibid., p. 103, f. 75 Ibid., p. 6-7.

terceira reunião, os peticionários solicitaram ao Estado que não outorgasse mais concessões no território e que iniciasse o processo de demarcação das terras das comunidades e as diferenciasse das terras estatais. O Estado anunciou a criação da Comissão Nacional de Demarcação e os convidou a participar76.

Em 1997, diante da ameaça do início das operações florestais no território indígena, os peticionários reiteraram o pedido de medidas cautelares à CIDH. Além disso, informaram que a concessão não havia sido suspensa e que a Corte Suprema de Justiça da Nicarágua declarara a sua inconstitucionalidade porque o Estado não tivera a aprovação do Conselho Regional da RAAN para fazê-la. Por causa dessa sentença e prometendo cumpri-la, o Estado pediu à CIDH que cancelasse as medidas cautelares77.

No mesmo ano, a CIDH realizou uma audiência em que os peticionários afirmaram que as operações florestais em seu território ainda continuavam e requereu a sua visita in loco, mas esta acabou não se realizando, porque o Estado informou que estava preparando um relatório final sobre a situação, o que a tornava desnecessária. Tempos depois, a CIDH solicitou que a Nicarágua adotasse as medidas cautelares. O Estado pediu o encerramento do caso, pois o Conselho Regional da RAAN78 havia aprovado a concessão que a tornava legítima79.

Os peticionários se manifestaram dizendo que esse conselho faz parte da organização administrativa do Estado e que atuara sem levar em consideração o direito à territorialidade da comunidade indígena, e que o ponto central dessa demanda se referia à falta de proteção na Nicarágua dos Direitos Humanos do Povo Indígena sobre seus territórios80. O Estado argumentou que os peticionários

solicitaram a execução da sentença da Corte Suprema de Justiça, motivo pelo qual não teriam esgotado os recursos internos81.

A CIDH, em março de 1998, expediu um relatório reconhecendo que o Estado da Nicarágua não cumprira com as obrigações dispostas na CADH; não demarcara

76 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas de 31 de agosto de 2001. p. 03.

77 Ibid., p. 4.

78 A organização administrativa do RAAN se encontra constituída por um Conselho Regional,

autoridades municipais e outros órgãos correspondentes a subdivisão administrativa dos municípios.

79 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas de 31 de agosto de 2001. p. 4.

80 Id. 81 Id.

as ‘terras comunais’ do Povo Mayagna; não adotara medidas efetivas que assegurassem os direitos de propriedade da comunidade em suas terras; e não garantira um recurso efetivo para responder ao pleito da comunidade indígena. Recomendou, então, que o Estado adotasse em seu ordenamento um procedimento de demarcação e titulação de território indígena aceitável pelos povos envolvidos; suspendesse toda a atividade relativa à concessão outorgada à SOLCARSA; e iniciasse um diálogo com os peticionários para fins de conciliação no prazo de um mês82. Como o Estado não cumpriu com a recomendação, a CIDH apresentou o

caso à CorteIDH em junho de 199883.

Esta demanda, por trazer a temática do direito à territorialidade dos Povos Indígenas no âmbito da CorteIDH, despertou o interesse de outros atores sociais, que se prontificaram a atuar perante o tribunal interamericano como amicus curiae em favor dos peticionários84.

A CorteIDH, em agosto de 2001, condenou o Estado da Nicarágua pela violação ao direito à proteção judicial (artigo 25 da CADH) e o direito à propriedade (artigo 21), em conexão com a obrigação de respeitar os direitos previstos na CADH e o dever de adotar disposições de direito interno (artigos 1.1 e 2 da CADH).

Em relação ao artigo 25 da CADH, a CorteIDH entende que a proteção judicial requer não só a existência formal de meios judiciais, mas que estes sejam efetivos85, por isso reconheceu a violação desse artigo a partir de dois parâmetros:

(1) o primeiro, porque na Nicarágua não existe um procedimento efetivo para delimitar, demarcar e titular os territórios indígenas, tanto que desde 1990 não houve qualquer titulação envolvendo Povos Indígenas em todo o Estado86; e (2) o segundo,

que trata da ausência de legislação específica para o exercício dos direitos dos Povos Indígenas, o que inviabilizou a adoção de recurso judicial efetivo para as comunidades questionarem o Estado por ter disposto de seus territórios, sem o seu

82 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Informe Nº 27/98. Washington D.C., 1998. p. 141-143.

83 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas de 31 de agosto de 2001. p. 6.

84 Foram eles: Organización de Síndicos Indígenas del Caribe Nicaraguense (OSICAN); Assembly of

First Nations (AFN) do Canadá; International Human Rights Law Group; National Congress of American Indians (NCAI) e o escritório Hutchins, Soroka & Dionne da Nicarágua.

85 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas de 31 de agosto de 2001. p. 66.

consentimento, em um contrato de concessão para que a SOLCARSA os explorasse87.

A CorteIDH interpretou esse artigo em conjunto com a obrigação geral de adequar o direito interno à CADH (artigos 1.1 e 2 da CADH), entendendo que a Nicarágua não adotara medidas adequadas para demarcar o território indígena e não concedera prazo razoável para os recursos judiciais interpostos pelos representantes do Povo Mayagna. Por isso, considerou imprescindível tornar efetivos os direitos reconhecidos na Constituição Política e na legislação nicaraguense em conformidade com a CADH, e adotar em seu direito interno as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outro caráter que sejam necessárias para criar um mecanismo efetivo de delimitação, demarcação e titulação do território desse Povo, de acordo com seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes88.

Quanto à violação do artigo 21, relativo ao direito à propriedade, a CorteIDH, utilizando uma “interpretação evolutiva” e não restritiva da CADH, considera que esse artigo protege o direito à propriedade em um sentido que compreende os direitos dos membros das comunidades indígenas no marco da propriedade comunal que é reconhecida pela Constituição Política da Nicarágua89.

A CorteIDH considera que, conforme estabelecido nessa Constituição Política, os membros da Comunidade Awas Tingni têm um direito à propriedade comunal sobre as terras que atualmente ocupam. Além disso, a legislação interna da Nicarágua dispõe que a propriedade comunal compreende as terras, águas e bosques que têm pertencido tradicionalmente às Comunidades da Costa Atlântica, sendo inalienáveis, impenhoráveis, não podendo ser doadas, vendidas, embargadas e nem objeto de tributação. Os membros das Comunidades têm direito de cultivar e usufruir dos bens gerados pelo trabalho realizado na propriedade comunal. Mas, apesar desse reconhecimento, a Nicarágua não tem regulado um procedimento específico para materializá-lo90.

A CorteIDH importou esse conceito da constituição nicaraguense, sem fazer uma distinção ou uma aproximação com o direito à territorialidade dos Povos

87 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas de 31 de agosto de 2001. p. 70.

88 Ibid., p. 73. 89 Ibid., p. 78. 90 Id

Indígenas, e sem observar se no âmbito internacional já existia algum outro tratado internacional que normatizasse esse direito, como faz a Convenção 169 da OIT.

Além disso, não houve uma justificativa por parte do tribunal do porquê da utilização do instituto da propriedade comunal para interpretar a CADH. Apenas explicou que entre os Povos Indígenas existe uma tradição comunitária sobre a propriedade coletiva da terra, pertencendo não ao indivíduo, mas ao grupo e sua comunidade; que há uma estreita relação entre os Indígenas e o seu território, que deve ser reconhecida e compreendida como base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sobrevivência econômica, pois essa relação não ser meramente uma questão de posse e produção, mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras91.

Diante disso, a CorteIDH concluiu que houve a violação do artigo 21 da CADH por se tratar de um direito à propriedade comunal que foi desrespeitado em prejuízo do Povo Mayagna, devendo o Estado delimitar, demarcar e titular o território desse Povo, abstendo-se de realizar atos, por meio dos seus agentes ou de terceiros que atuem com sua aquiescência, que afetem a existência, valor, uso e gozo dos recursos localizados na zona geográfica onde os membros habitam e realizam suas atividades92.