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4. O Estado no contexto de desigualdades do Riachão

4.2. A luta de Dália por uma ambulância para o marido

Era terça-feira quando encontrei Dália (participante da pesquisa) na frente do posto de saúde, pela manhã. Fui cumprimentá-la e perguntei – como de costume – se estava tudo bem. Ela respondeu que, mais ou menos e me contou que seu marido tinha se acidentado na fábrica onde trabalha em Valiosa. Quebrou três dedos do pé, fez cirurgia e está com a perna imobilizada. Na próxima segunda-feira, ele deveria ir ao HE em Salvador, para revisão da cirurgia. Dália estava no posto pedindo à gerente uma ambulância para levá-lo, porque a perna precisava ficar levantada para cima. Quando nos encontramos ela tinha contado do acidente. Neste ínterim, a gerente do posto chegou e disse a ela, que não podia conseguir a ambulância, que somente Dália ou o próprio paciente, deveriam ir até Visconde, fazer uma requisição para a ambulância. Disse à Dália que deveria ter dito com antecedência, assim já estaria reservado. Dália explicou que só havia confirmado a consulta no dia anterior.

Então a gerente disse: “Eu sei, meu amor! Ai amiga, queria muito poder te ajudar, mas não está na minha alçada, sabe!?! […] Você vai lá amanhã pra Visconde e faz a requisição”. Dália: “tá certo”. A gerente: “Você quer ligar lá daqui?” Dália: “Não precisa não, obrigada”.

Dália foi embora e me convidou para uma visita. No dia seguinte, pela noite, troquei a capoeira pela visita. Fui até a casa dela e ela me convidou para entrar. Foi a primeira vez que entrei na sua casa. Seu marido chama-se Luciano. Estava com a perna esticada no sofá. Apresentei-me a ele e perguntei sobre o acidente. Ele contou que a empresa prestou socorro e teve que ir ao HE em Salvador. Conversamos um pouco e logo então Pedrinho chegou. Pedrinho era primo de Dália e o vereador de Riachão em mandato. Ele se sentou no sofá e começou a dizer da reunião que teve na prefeitura. Que foi muito boa, porque “lavaram a roupa suja”. Disse que estava tudo resolvido: a lancha levaria Luciano para Valiosa e a ambulância o levaria até Salvador. Que se alguém não quisesse levá-los, que mandassem falar com ele, que eles tinham que fazer isso “de um jeito ou de outro”. Então comentou que ele é uma autoridade na vila e precisava ser respeitado:

“Não é querendo me gabar não, que todo mundo sabe que eu sou humilde com isso, mas eu sou uma autoridade aqui e eles precisa mearrespeitar. Eu disse ao prefeito, olhe, o Senhor, num precisa de oposição. Quem faz a oposição pro senhor são seus soldado. Ta geral, uma insatisfação. É geral na ilha. Mas quem faz isso são seu soldado. É

gente sua. É gente dele! (disse voltando o olhar para nós). Olha, não pode isso! A gente que faz política não pode ser assim. Tem que cair no gosto da população. Tem que trabalhar para o bem da sua comunidade, trabalhar pra sua comunidade, porque se eles gosta de você, você não sai mais. Mas eu disse a ele, olhe, eu to aqui, não fiz campanha pro senhô, mas to aqui trabalhando pro senhô, pra prefeitura. Tô aqui defendendo o senhô. Quero fazer as coisa, pra população gostar desse governo. Não é ele não Dália, é gente que trabalha com ele!”

Ao falar da “gente que trabalha com o prefeito”, Pedrinho se refere às pessoas contratadas em seu governo, que são alinhadas politicamente com esta gestão. Geralmente foram contratados exatamente por isso, por apoiarem a candidatura e o governo atual, como exemplo da gerente do posto de saúde. Para ele, o prefeito perderia todos os votos da comunidade se continuasse a tratar os moradores de lá deste modo. Dizia-nos que, embora não fosse da mesma linha política, queria o melhor para a sua comunidade, sabia que o prefeito não estava ajudando as pessoas de lá e que as pessoas estariam chateadas e desgostosas com as atitudes da prefeitura.

Diante da falta de consideração que o prefeito demonstrava à comunidade do Riachão, muitas pessoas declaravam que não dariam seus votos a ele novamente. Certo dia, uma senhora, em uma viagem de barco à Valiosa me declarou emocionada sobre o prefeito: “Ele é meu irmão em cristo, mas está fazendo muita coisa errada. Tá deixando o povo todo de lado. Não tá se comportando direito não. Suas atitudes não tão certas”.

Pedrinho continuou à Dália: “Eles vão levar e vão trazer de volta. Se der problema manda falar comigo. Não era melhor fazer as coisa numa boa, na boa vontade? Agora se não quiser fazer, vai fazer amarrado. É direito das pessoa. Tem que respeitar e fazer o que é o certo. Não tem esse negócio de ah, não pode... não pode o quê?”

Dália comentou da conversa que teve com a gerente do posto, que eu presenciei. Depois mencionou o caso de outro senhor que foi atropelado por um trator e também disseram que não podiam levá-lo. Pedrinho contou que quando o prefeito ficou sabendo ficou muito bravo! “Ele vai, conversa com todos os secretários pra resolver todas as coisas... e tem que ser assim... tem que resolver essas coisa que tá errada. Tem que trabalhar duro, quando tá na política! Se não quiser levar, vai ter que falar isso pra mim. Esse pessoal tem que me arrespeitar que eu sou uma autoridade aqui” (NC).

Quando Pedrinho foi embora Dália me explicou que quando Luciano se machucou, na hora de voltar do hospital para Riachão, não quiseram levá-la. Dália disse que apenas respondeu à gerente que iria para Visconde porque sabia que não iria. Já tinha “tomado as

providências dela”, através de Pedrinho. “No fim das conta, tem que correr atrás das coisas do nosso jeito mesmo”, me disse. Por fim, Luciano foi à Salvador com Dália, junto com Dona Paulina e Amália, que continuava seu tratamento na época.

Aqui vemos como burocracias formam barreiras aos mais pobres para acessar serviços. Relações de hierarquia que impedem resolutividade nas instituições, sobretudo destinada aos pobres. Ademais, formas como profissionais das instituições tratam pessoas do Riachão, ilustradas tanto no caso de Dália como a história de D. Paulina, também nos sugerem que suas práticas e comportamentos estão fundamentados naquele ideário resultante da suposta dicotomia tradicional/moderno, atraso/avanço, pobre/rico, ignorante/esclarecido. Aqui, Dália seria aquela que não sabe percorrer os trâmites devidamente para acessar o serviço. Observa-se com esta história como que, na medida em que um direto lhes é dificultado, as pessoas recorrem aos seus próprios subterfúgios para alcançarem. Dália percebe a dificuldade do acesso ao serviço e recorre ao “nosso jeito”. Pedrinho, a quem Dália recorreu, ao mesmo tempo em que sinalizava que se tratava de um direito dela, também reivindicava sua autoridade como meio de garantir à Dália o serviço. Este personalismo, tão presente nas relações sociais do Riachão, longe de ser uma expressão cultural de convívio harmonioso entre desiguais (HOLSTON, 2013), acaba contribuindo para perpetuar as hierarquias e desigualdades.