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Da descoberta ao “deixar”: contracepção, interrupção e aceitação da gravidez

6. A gestação: “A barriga” e suas implicações

6.1. Da descoberta ao “deixar”: contracepção, interrupção e aceitação da gravidez

Mesmo sendo os homens que fazem os filhos, algumas mulheres participantes da pesquisa disseram que são elas, as mulheres, as principais responsáveis em evitar a gravidez, porque acontece no corpo delas, e porque os métodos anticoncepcionais são voltados ao corpo feminino e não ao corpo masculino. Uma recorrente descrença perpassa o uso de preservativos, pelo risco de estourar. Segundo Eduarda em uma conversa, “para ela (a mulher) tem várias formas de prevenir e para o homem só tem a camisinha, e pode estourar”. Assim, todos os outros métodos incidem no corpo feminino – com exceção da vasectomia,

muito raramente feita57. Também é importante sublinhar aqui que, mesmo na unidade de saúde, os programas ofertados para o Planejamento Familiar são exclusivamente voltados às mulheres, o que resulta no reforço desta concepção que responsabiliza principalmente as mulheres acerca da ocorrência da gravidez. Por um momento pude observar mulheres irem em busca de contracepção no posto de saúde. As duas mulheres que estavam lá já tinham filhos, e estavam com o remédio para que a enfermeira aplicasse, pois era injetável. Diziam: “Eu não posso mais parir porque cato siri. Bolsa Família tá pouca e não tem mais cheque.”; “Quero remédio pra evitar e não é por causa de homem não. É porque eu não quero mesmo.” Iara, jovem branca de dezoito anos e marisqueira, estava grávida de seu segundo filho. Casada com Donovan, descobriu sua gravidez com cinco meses. Donovan e Iara não queriam ter filho. Iara contou que tomava injeção para evitar a gravidez, mas mesmo assim “Deus mandou”. Então ela me explicou que mesmo sendo o homem que faz o filho, quem é responsável pela gravidez é a mulher. Que se ela mesma tivesse se cuidado mais, ela não estaria grávida. Donovan disse a mesma coisa. Responsabilizou Iara pela gravidez, contando que disse muitas vezes a ela que não queria filho. Contou que comprava todos os remédios para a parceira tomar e que se ela engravidou, não foi ele quem quis. Donovan também falou sobre o (não) uso da camisinha, apontando outras explicações sobre o porquê de não usar o preservativo. Sua fala não reflete o medo que Eduarda apresentou sobre a possibilidade da camisinha estourar:

“Veja só a situação, analise bem: eu compro tudo, compro remédio, ciclo 21 e injeção. Eu quero engravidar?? Aí as pessoas dizem que o culpado sou eu, porque eu devia usar camisinha, mas eu vou usar camisinha com minha mulher de casa? Vai parecer o quê? Que ela é mulher de rua, que é uma quenga? Ela ta na minha casa. É até um desrespeito, parece que eu to desconfiando dela... Eduarda que estava comigo, concordou neste

momento. E ele continuou: Eu falei tanto pra ela. Quando tava com uns

dois meses ela me disse assim, tem alguma coisa mexendo na minha barriga. E eu que sou muito brincalhão falei, que ela tava com verme. Depois eu refleti, e disse, olhe pode ser mioma, mas você é muito nova pra ter mioma, com tua idade você deve estar grávida, você tá prenha! Aí quando eu vi isso eu disse: mas Iara você me enganou?? Você me enganou, mulher?” (NC).

Com o depoimento de Donovan, fica claro que as pessoas entendem que a responsabilidade pela contracepção é feminina. Notam-se ainda as diversas concepções que as pessoas possuem acerca do uso da camisinha: desde uma desconfiança na sua eficácia, até o 57 Vale mencionar aqui que não tive conhecimento de alguém que tivesse realizado este procedimento no

possível significado de infidelidade e desconfiança conjugal que o uso pode carregar.

Susan, minha amiga, também explicou de um modo parecido. Segundo ela, “pra prevenir um filho, a responsabilidade é da mulher, claro! É ela que tem que se cuidar, não o homem. O homem não tá preocupado. Camisinha, ele usa com a mulher de fora, com a mulher de casa não”. Em outra conversa com as mulheres do catador, uma delas me disse: “O homem fica bravo quando a mulher tá grávida, porque não tem noção. Não pensa. Só quer satisfazer seu instinto. A mulher que pensa, ela que tem que se cuidar”.

A maioria das mulheres participantes não planejou engravidar. Ainda assim, poucas foram aquelas que relataram a possibilidade de interrupção. Nina, marisqueira, negra, já era mãe de três filhos e tinha 25 anos quando engravidou novamente. Disse que não queria ter mais filhos, mas engravidou e começou a desconfiar depois de dois meses. Então contou os métodos dos quais se utilizou para a interrupção:

“Nunca tomei remédio não, mas tomei um bucado de chá pra matar: cidreira, pulga do campo, sonrisal com coca cola, alumã, alumã com cravo, cravo, garrafada, com um bucado de folha, pau de resposta... tudo que me davam eu tomava. Tudo que dizia que era bom pra mata eu tomava... Depois foi ficando grande aí fui ficando com medo de fazer mal pro bebê ou pra mim aí eu parei e deixei” (NC).

Ao ser questionada sobre as razões de querer interromper a gravidez, Nina respondeu: “Queria tirar porque a vida não é boa. É muito difícil. Situação financeira, criar filho sem pai...” Nina se considera negra. Catava marisco desde os 12 anos de idade e recebia Bolsa Família. Sua mãe cria um de seus filhos e os outros dois ela mesma quem cria. Estava com seu parceiro, o futuro pai do bebê, mas se referia às dificuldades de criar filhos sozinha, pois já experimentava aquela condição. Além de Nina, Rosa também não aceitou sua gravidez com tranqüilidade.

“[…] fiz meus exames, ai deu certo, deu positivo. Só que eu não aceitava, não queria, não gostava da situação que eu ia ter um filho... Ai foi muita coisa... Ai eu deixei passar um pouco. Esqueci que estava com um filho dentro de mim e resolvi contar para a minha família quando já estava com quatro meses. Escondi, com quatro meses resolvi contar”.

Ao ser questionada sobre cogitar a possibilidade de interrupção Rosa comentou que sim. “Pensei muito. Eu tentei, mas não consegui. Depois de todas as tentativas, eu não consegui, aí eu resolvi contar.” (NC) As outras mulheres não mencionaram sobre a

interrupção. Algumas disseram que não queriam, que pensaram na possibilidade, mas uma vez grávida não tentaram interromper. Importa mencionar que não tive conhecimento de casos de aborto durante o trabalho de campo, mas conheci mulheres maiores de trinta anos que relataram ter recorrido à interrupção quando de alguma gravidez no passado ou mesmo que passaram por abortamentos involuntários.

Para algumas participantes, ainda que não tivessem planejado a gravidez, a descoberta e aceitação não se deram em grandes conflitos. Mesmo assim, observa-se a importância do apoio das pessoas mais próximas no processo de aceitação da gravidez – sobretudo a centralidade da figura masculina. Para Jussara foi tranqüilo pelo imprescindível apoio de seu parceiro: “No primeiro mês, eu já sabia que estava grávida porque a menstruação não desceu mais... Pra mim foi tranqüilo porque meu namorado disse que ia assumir, ai eu fiquei tranqüila”.

Com a descoberta da gravidez, algumas mulheres aceitaram com mais facilidade e assimilaram sem conflitos todas as implicações de uma gestação. Outras revelaram uma resistência maior, como foram os casos de Nina e Rosa, por exemplo. Eduarda, ao contar de sua experiência, nos revela ainda que “a barriga” vem a partir do momento em que a gravidez é aceita e assumida. Eduarda engravidou de uma relação que não era legitimada publicamente, de uma relação casual. Seu parceiro, Gonçalo, não morava na ilha. Em uma das vezes que Gonçalo esteve no Riachão, se relacionou com Eduarda, quando a engravidou.

“Eu pensei em tirar, mas só que disse a Gonçalo. Querer eu não quero, mas eu não tenho querer, não posso fazer nada então, vou ter que fazer o que tenho que fazer... Aí eu deixei e a barriga veio. […] Não gostei não

(dos nove meses de gestação), me sentia feia. Não queria. Não gostava

da barriga, não tinha apoio de ninguém.” (NC).

Com freqüência as mulheres sinalizavam a importância e centralidade de redes de pessoas que servem como apoio social para a condução deste processo. Vale pontuar que embora Eduarda tenha dito que não teve apoio de ninguém durante a aceitação da gravidez, mencionou mais tarde a família de sua comadre, como descrito anteriormente. Susan comentou uma vez sobre o caso de Eduarda, sublinhando a importância do apoio que a jovem recebia pela família da comadre. “Eduarda não tinha nada, e quem ajudou foi Dalila”. Dalila é mãe de Amanda, a comadre de Eduarda – que ainda é dependente financeiramente de sua mãe (NC). Observa-se assim que “a barriga” vem quando as mulheres “deixam” e a gravidez “sair pra rua”. O processo de deixar a gravidez “sair pra rua” envolve a aceitação e toda

negociação implicada nesta. Deixar a gravidez no Riachão é um processo consoante aos achados por Bustamante (2009: 209), quando sinaliza a existência de um processo de aceitação da gravidez e deixar a barriga crescer. Além disso, este processo significa assumir todos os desdobramentos de torná-la pública.