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A música de outras culturas e sua recontextualização

Em nosso primeiro capítulo, quando analisamos o trabalho de alguns compositores do século XX e suas relações particulares com a música não ocidental, nosso principal foco de estudo foi a interação estabelecida a partir do contato com outras culturas e materiais musicais. Nessa abordagem, vimos de que forma alguns compositores estabeleceram uma conversa com essa “outra” música e como elaboraram e transformaram seu trabalho a partir desse contato. Aqui seguimos nesse mesmo caminho, agora pensando no músico performer.

Neste segundo capítulo de nosso trabalho, concentramo-nos na possível ampliação de possibilidades no campo de ação de um músico performer quando se depara com fazeres musicais advindos de outras culturas. Para esse estudo específico, baseamos nossa pesquisa nos relatos de músicos e etnomusicólogos como Huib Schippers, Bruno Nettl, John Blacking (1928-1990) e Derek Bailey, que se preocuparam com as relações multiculturais na música, especialmente na performance, na improvisação e no aspecto formativo do músico da atualidade.

Para melhor compreensão de nosso estudo, vamos estabelecer alguns conceitos de acordo com as definições propostas por Schippers (2010, p.30-31), acrescentando alguns elementos que julgamos pertinentes para nosso trabalho:

• Tradição: Schippers menciona que a tradição pode ser tratada tanto de forma mais estática quanto de forma mais dinâmica, especialmente em se tratando de tradições musicais. O autor cita o exemplo do termo “música clássica”, emprestado do classicismo grego, no qual “clássico” está ligado a uma expressão que traduz um padrão estético de beleza, de natureza estática e imutável, e, portanto, traduz uma tradição musical de caráter semelhante. Em outros fazeres musicais ligados às tradições musicais, como o maqam árabe e o raga indiano, apesar de representarem tradições milenares profundamente enraizadas, estes possuem uma natureza mais fluida, como veremos adiante neste mesmo capítulo. A princípio, Schippers considera tradição tudo que foi criado pelo homem e pode ser passado de uma geração para outra, independente da forma como isto é feito. Nessa interpretação, a tradição pode ser abordada de uma forma mais dinâmica e pode se adaptar à novos contextos.

• Contexto: conjunto que insere uma atividade dentro de sua cultura e seu território de origem. O termo pode se referir também a ambientes criados especificamente para um determinado aprendizado, como o contexto acadêmico de formação em música.

• Recontextualização: uma atividade realizada fora de seu território original, trazida para outros ambientes por motivos diversos (como o estudo de uma determinada prática musical fora de seu território de origem em um contexto acadêmico).

• Multicultural: termo referente à existência de várias culturas ao mesmo tempo, mas não necessariamente em relações de interação. Uma realidade multicultural na música é aquela em que constatamos a existência de vários fazeres musicais provindos de culturas diversas.

• Transcultural: Troca e intercâmbio de informações em um aspecto profundo. Em música, as relações transculturais implicam em estudos e práticas envolvendo diferentes procedimentos musicais sem nenhum aspecto hierárquico, nas quais todas as manifestações musicais são tratadas com igual importância para se discutir a música como um todo.

• Hibridismo: está relacionado a um “terceiro espaço” formado pelas relações transculturais, no qual cria-se algo novo. Em música, os ambientes híbridos podem ser criados a partir de uma profunda interação entre fazeres musicais de culturas, gêneros e procedimentos diversos.

Neste segundo capítulo, seguimos utilizando o termo música não ocidental33, com a ressalva de que nosso foco principal é a constatação da       

33 Em relação ao termo, Schippers cita a dificuldade de tratar a diversidade cultural em termos como

world music, música indiana, música africana, música oriental e música não ocidental. O autor

menciona por exemplo que, quando falamos de música indiana, estamos em geral referindo-nos à música tradicional do norte da Índia, enquanto existe a música mais ligada à religião feita no sul e a música popular dos filmes que hoje figuram no circuito chamado de Bollywood music. Quando nos referimos à música africana, alguns estudiosos podem desaprovar o termo, considerando as diferentes regiões da África e suas peculiaridades musicais, como a música do Marrocos, da Gâmbia e da Tanzânia. O termo música oriental é mais aplicado para referências à música da Arábia e da Ásia, também relacionadas à uma qualidade exótica, carregada de um certo olhar de estranhamento, como se a música do Ocidente fosse normal e a do Oriente fosse diferente. Sobre o termo música não ocidental, Schippers cita um colega indiano que chamou a música de Mozart de “não indiana”, chamando a atenção para os diferentes pontos de vista que estes termos podem suscitar. Referindo-se ao termo

world music, o autor observa que este termo determina em geral a música de uma outra região ou

cultura que não aquele da qual se faz parte, ou seja, na África, a música que se faz na França é considerada world music e vice-versa. O autor menciona ainda a utilização do termo world musics,

diversidade cultural e musical na qual nos encontramos hoje. A partir dessa diversidade, vamos estudar formas de nos relacionarmos com outras músicas, sob a perspectiva do performer com formação musical nos moldes da tradição europeia.

Antes de apresentarmos este estudo, queremos ressaltar que tanto a música proveniente da escola europeia quanto a música não ocidental são terrenos amplos e em constante transformação. Neste último ponto é comum pensarmos a música não ocidental como uma música mais estática, relacionada à preservação de uma tradição quase sempre transmitida de forma oral, mas tal ideia não reflete o que se encontra hoje na música não ocidental. Na verdade, verifica-se que transformação e a recontextualização das práticas relacionadas às tradições da música não ocidental, mesmo em seu contexto de origem, acontecem com muito mais frequência do que se imagina.

Muitos estudiosos estiveram predominantemente interessados nas tradições como sistemas relativamente estáticos [...] Entretanto, tradições que seguem mudando de acordo com as exigências dos novos tempos, de uma maneira orgânica, ou em um esforço consciente de manter sua relevância para seus ouvintes são provavelmente mais uma regra do que uma exceção 34 . (SCHIPPERS, 2010, p.45)

Em relação à recontextualização da música não ocidental, Schippers observa, por exemplo, que a música do gamelão javanês ou a percussão africana não são apenas encontradas em cortes da Indonésia e vilarejos da África, mas também em escolas e institutos de artes da Inglaterra e dos Estados Unidos (2010, p.13).

Frente ao crescente desenvolvimento tecnológico dos últimos cinquenta anos, o músico performer passou a ter largo acesso aos fazeres musicais em nível global, diferentemente da situação do músico do início do século XX, cujo acesso era mais restrito. No passado, a migração entre os continentes era lenta e limitada e seus habitantes eram pessoas extremamente ligadas aos traços culturais de origem, sendo a música ligada em grande parte à sua tradição. Sendo assim, um músico da época de Debussy ouviu muito menos música e entrou em contato com muito menos possibilidades em relação ao fazer musical de outras culturas do que o músico de        

atentando para a diversidade cultural existente na atualidade. (Schippers, 2010, p. 17-27).

34 “Many scholars have been predominantly interested in traditions as relatively static phenomena [...]

However, traditions that keep changing with the demands of the times, in an organic way, or in a conscious effort to retain relevance to their audiences are probably rule rather than exception.”

hoje. Por isso mesmo, a consciência de uma realidade multicultural e os diálogos transculturais tendem a ser cada vez mais prolíficos para a criação de territórios híbridos em contextos musicais formativos e na performance musical como um todo.

2.2.O contato com outras culturas e seus reflexos na performance