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Como vimos nos estudos de John Blacking, a forte corporalidade do músico é uma característica marcante na performance africana, sendo que podemos estender esta consideração à maioria das culturas não ocidentais. Nesse aspecto da corporalidade, há três formas de integração corpo/música que consideramos relevantes para nosso trabalho:

• O instrumentista ligado fisicamente ao seu instrumento, sendo o instrumento tratado como uma extensão do performer.

• A ligação estreita entre a dança e a música em algumas das práticas encontradas das culturas não ocidentais.

• O aspecto da espacialidade, implícito nas práticas que envolvem a dança.

Sobre o primeiro item, vejamos o trecho abaixo, no qual um instrumentista de taiko menciona sua relação com o instrumento:

Acreditamos que o taiko para nós não é apenas um tambor: mas sim a conexão entre o tambor e o instrumentista. Dessa forma, se em um dado momento nos concentramos muito em aspectos técnicos e perdemos aquele sentimento ou espírito inerente ao fato de tocar, então o tocar se resume apenas a um tambor. Instrumentista e instrumento ficam separados. Nesse caso, o instrumentista está apenas usando o tambor no lugar de estabelecer uma relação com o instrumento.77 (WISA apud POWELL In: BRESLER, 2004, p.183)

Em relação a este depoimento, citamos mais uma vez a importância do aspectos de imersão na performance, aqui estabelecido pela profunda relação do performer com seu instrumento e seu envolvimento emocional ao tocá-lo. Na música não ocidental, os aspectos ligados ao sentimento, ao envolvimento emocional e à interação física do músico com seu instrumento parecem estar acima do aspecto técnico. A corporalidade, no caso da música não ocidental, é portanto mais um       

77 “We believe that taiko for us is not just the drum: but it’s the connection between the drum and the

player. So at a certain point if we concentrate too much on technicality and we lose that feeling or that spirit behind the playing then it becomes just the drum. They become separated. The player is just using the drum rather than creating the relationship with it.”

elemento a contribuir para um maior envolvimento do músico durante sua performance. Sobre este envolvimento do músico e seu corpo como meio ativo na prática da improvisação, Costa, no artigo A ideia do corpo na improvisação, acrescenta:

Quando falamos sobre os efeitos da performance em tempo real

no próprio corpo dos músicos e as afetividades ativadas antes e durante a performance pensamos em algo muito forte, ligado à

noção de prazer físico e lúdico que percorre, como um vetor de vital importância, toda prática de improvisação. A relação com o instrumento, neste caso, seja qual for, a gestualidade, o prazer motor, a escuta do som produzido, a possibilidade de manipulação, o prazer da enunciação, da expressão; tudo isso gera uma espécie de “gozo”. (2008,p.90)

Sobre as considerações de Costa, lembramos sobre o envolvimento impresso na prática da improvisação como uma espécie de apogeu da performance, sendo que a corporalidade do músico está bastante presente em alguns gêneros de improvisação do ocidente e do oriente. Ainda, segundo Costa78, “quando o instrumentista improvisa ele entra em contato direto, criativo e corporal com os elementos sonoros e musicais constituintes das “linguagens” em que ele atua” (2008,p.92), corroborando para nossa ideia anterior sobre o músico de “corpo inteiro” na performance, acrescida da ideia de que um improvisador tem uma relação de extremo conhecimento e fluência sob os materiais expressivos e procedimentos musicais dos quais se utiliza.

Sobre a estreita ligação da música com a dança, observamos que, em algumas das culturas não ocidentais as duas não existem separadamente. Este é o caso do ritmo Gahu, citado anteriormente; do gamelão javanês, que envolve um ensemble de música e dança; do Katak do sul da Índia, que consiste em uma dança de aspecto extremamente rítmico e que costuma ser acompanhada por instrumentos de percussão como a tabla; e o taiko japonês, no qual os percussionistas executam uma movimentação associada à dança, entre outros exemplos. Citamos ainda o aspecto da espacialidade, considerando que a dança produz o movimento no espaço, o deslocamento, e, consequentemente, novas relações com os aspectos sonoros. Sendo assim, o som de um músico em movimento, ou de um músico que toca baseado na movimentação de um bailarino, por exemplo, pode ser diferente do som emitido por       

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Embora o texto de Costa esteja mais voltado para a prática da improvisação livre, aqui estendemos suas considerações para a improvisação como um todo.

um músico que está parado ou de um músico que não toca pensando nessa associação. A emissão sonora na performance pode portanto decorrer de estímulos provindos do movimento, aspecto este que exploraremos mais adiante.

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Por mais que tenhamos abarcado diversos conceitos e materiais, podemos dizer que esta foi apenas uma pequena amostragem em relação aos procedimentos musicais encontrados na culturas não ocidentais. Ainda assim, consideramos que tratamos de aspectos fundamentais relativos à performance e à improvisação musical para, em seguida, investigar como estes foram trazidos para contextos formativos da música ocidental. Nossa intenção vai em direção a contextos híbridos, que estabelecem ambientes multiculturais e promovem conversas transculturais, além de trazer elementos para se pensar a música em sua essência e como um todo, retomando mais uma vez a ideia da epígrafe deste capítulo.

Como já nos mencionou Steve Reich no capítulo anterior, nossa intenção não é propor a reprodução de contextos e sonoridades da música não ocidental ou defender a criação de uma nova escola musical no ocidente sob padrões orientais (até porque, teríamos que decidir, entre muitos, qual o padrão a seguir...). Pensando que o contexto de formação adulta encontrado no ocidente segue, em grande parte, a tradição europeia, queremos observar como os procedimentos, conceitos e materiais da música não ocidental podem dialogar e interagir com essa realidade. Ressaltamos ainda que tal interação existe hoje tanto do oriente para o ocidente como do ocidente para o oriente, embora nosso estudo consista na abordagem da primeira situação.

Nesse contexto, nosso foco daqui em diante é o estudo da performance e da prática da improvisação em contextos formativos híbridos para o músico adulto.

CAPÍTULO 3

DESDOBRAMENTOS DOS MATERIAIS DA MÚSICA NÃO

OCIDENTAL EM CONTEXTOS FORMATIVOS DO OCIDENTE:

CORPORALIDADE, HIBRIDISMO E IMPROVISAÇÃO

“A cultura humana não é algo para ser apenas transmitido, perpetuado ou conservado, e sim algo que está sob constante reinterpretação. Como um elemento vital do processo cultural, a música é, no melhor sentido do termo, recriacional: ajudando para que nós e as nossas culturas sejam renovadas, transformadas79.”

(SW A NW ICK, 2005/1998, p.119)

      

79 “Human culture is not something to be merely transmitted, perpetuated or preserved but is constantly

being re-interpreted. As a vital element of the cultural process, music is, in the best sense of the term,

Pensando nos procedimentos e conceitos que permeiam a música de culturas não ocidentais, vamos atentar para a diversidade desses materiais e seus possíveis desdobramentos. Em uma realidade cada vez mais propícia para iniciativas multiculturais, o diálogo com os materiais, procedimentos e conceitos amostrados no capítulo anterior pode ser significativo se aplicado em contextos formativos para o músico adulto. Neste terceiro capítulo, nosso foco principal será então novamente o diálogo, a transformação e a recontextualização de elementos da música não ocidental, agora em contextos formativos do ocidente.

Começando pela ideia da corporalidade, forte marca das culturas não ocidentais, primeiramente veremos que esta pode estar associada a processos cognitivos nos estudos mais recentes sobre o conhecimento dinâmico e sua relação com o ambiente. Para relacionar a ideia da corporalidade aos estudos atuais sobre a cognição humana, traçaremos um panorama geral sobre o assunto, discorrendo sobre os conceitos de affordance, embodied mind e cognição situada. Transpondo estes conceitos para a música sob o mesmo enfoque, veremos também como alguns educadores do ocidente abordaram a ideia da corporalidade em propostas de formação musical. Após os estudos acima descritos, abordaremos contextos formativos de caráter híbrido e multicultural, observando como alguns Institutos de Artes do ocidente absorveram e continuam a absorver elementos da música não ocidental em sua grade curricular, incluindo cursos de graduação em música, cursos de especialização e iniciativas isoladas. Embora nossa proposta final se concentre na prática da improvisação, veremos como materiais e conceitos provindos da música não ocidental influenciaram contextos formativos que envolvem a performance musical e processos criativos em geral.

Ainda sob este foco, discorreremos sobre a prática da improvisação em contextos formativos em nível superior, incluindo estudos de educadores que abordaram o tema da improvisação sob diversos aspectos, defendendo, inclusive, a importância desta prática em contextos de formação musical no ocidente. Por fim, vamos consolidar o conceito da transculturalidade utilizada em contextos formativos, incluindo a ideia da criação de ambientes híbridos para a prática da improvisação.

3.1.A corporalidade associada à processos cognitivos: affordance,