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TIPOS DE ARTE CARACTERÍSTICOS DE CADA PERÍODO

2.3 Trajetória e Funções da Música

2.3.1 A Música no Período Ditatorial Brasileiro

O início da Ditadura Militar brasileira se deu por meio de um golpe civil-militar contra o então presidente João Goulart, o qual começou em 31 de março de 1964 e teve apoio político e civil. Durante o regime militar, o Brasil foi governado por cinco presidentes militares, foram eles: Humberto Castello Branco (1964 – 1967), Artur Costa e Silva (1967 – 1969), Emílio Médici (1969 – 1974), Ernesto Geisel (1974 – 1979) e João Figueiredo (1979 – 1985); eleitos de forma indireta, ou seja, sem a participação da população.

Nomear cada um desses militares governantes de “presidente” foi a maneira encontrada para passar aos brasileiros um “ar de naturalidade”, que nada havia mudado, pois o intuito era transmitir a sensação que no comando do país estava um presidente, não um ditador. Essa “normalidade” era apenas uma fachada para esconder a realidade de um regime autoritário e violento.

Conforme Araujo, Silva e Santos (2013), a Ditadura Militar foi um período de perseguição a todas as pessoas que supostamente ameaçavam a segurança nacional, no qual houve prisões arbitrárias, sequestros, cassações, invasões de propriedade, tortura, assassinatos de cidadãos, sumiços de cadáveres e até atentados à bomba que foram realizados pelo Estado, sempre com a justificativa de combate aos subversivos. Um método bastante utilizado para perseguir e combater os opositores foi a tortura, tanto física, quando psicológica.

Estima-se que 20 mil pessoas foram torturadas pelo regime militar, sendo principalmente presos políticos e filhos desses presos, os quais eram torturados com a finalidade de fazer com que seus pais denunciassem seus aliados. Além desses tipos de violência, as autoras afirmam que milhares de brasileiros foram exilados, sendo obrigados a viver em outro país, por se posicionarem contra o Regime Militar.

Durante esses quase vinte e um anos de Ditadura Militar, medidas foram estabelecidas para legalizar e legitimar as ações militares, como também para controlar a população através de Atos Institucionais (AI). Dentre os dezessete Atos Institucionais, o de número cinco (AI-5), registrado em 13 de dezembro de 1968, foi o mais rígido e autoritário, responsável por decretar censura aos meios de comunicação e limitar a liberdade de expressão dos cidadãos brasileiros (ARAUJO; SILVA; SANTOS, 2013).

Assim, de acordo com as autoras, a Ditadura Militar foi um período de repressão dos direitos civis e políticos da população e de concentração de poder nas mãos dos militares. Nessa época, o livre pensar foi reprimido, sendo proibida a publicação e circulação de alguns livros, havia o monitoramento das universidades, através de alunos infiltrados para acompanhar o que era falado nesses locais, bem como o movimento estudantil foi perseguido.

Diante dessa censura à liberdade de expressão, as produções artísticas dessa época (atividades culturais e de entretenimento, como programas de televisão, novelas, festivais de música, letras das músicas etc.) passavam por uma análise realizada pelos censores do governo (pessoas destinadas a essa função) para saber se estavam adequadas às normas vigentes ou se seriam censuradas por transgredirem as regras militares.

Apesar de toda a violência do governo militar, eles enfrentaram uma forte oposição, através da política, do esporte, da arte etc., e em decorrência disso, muitos foram os casos de músicas censuradas e de compositores perseguidos, presos e exilados. Frente a isso, esses artistas se expressavam através de metáforas e jogos de palavras nas letras de suas músicas para conseguirem que elas fossem aprovadas pelo sistema de censura (BEZERRA, 2020).

Mediante esse cenário, Pinheiro (2019) aponta que algumas músicas que conhecemos hoje foram inicialmente vetadas, com diversas justificativas, que iam

desde o uso de palavrões, até a “falta de gosto” presente nas letras, e algumas delas serão apontadas a seguir como exemplos: “Cálice”, “Tiro ao Álvaro”, “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar” e “Hoje É Dia de El-Rey”.

A Música “Cálice” foi composta por Gilberto Gil e Chico Buarque (1978) no ano de 1973, mas sua liberação só ocorreu após cinco anos. Na primeira estrofe vê- se uma letra com teor religioso, mas, ao darmos continuidade à leitura, é possível perceber que se trata de uma crítica à censura, na qual o interlocutor anseia pela liberdade de falar o que pensa e fazer o que deseja.

Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel

Me embriagar até que alguém me esqueça.

A segunda música que trazemos como exemplo é “Tiro ao Álvaro”, que foi composta por Adoniran Barbosa e Oswaldo Molles (1975) em 1960 (antes do período da ditatura militar), lançada nesse mesmo ano por Adoniran e censurada no ano de 1973. Após a instituição do AI-5, Adoniran teve medo de lançar músicas novas, então resolveu lançar um disco com regravações de músicas suas já lançadas, como uma espécie de disco com os grandes sucessos, mas cincos faixas deste foram censuradas, dentre elas a música “Tiro ao Álvaro”. O argumento utilizado para a censura dela é que seria uma letra de “mal gosto”, por possuir palavras pronunciadas gramaticalmente erradas (“táuba” “automórve” “frechada” e “revorve”), mas que faziam parte do cotidiano e da realidade de seu compositor.

De tanto levar frechada do teu olhar Meu peito até parece sabe o quê? Táubua de tiro ao Álvaro

Não tem mais onde furar (Não tem mais)

De tanto levar frechada do teu olhar Meu peito até parece sabe o quê?

Táubua de tiro ao Álvaro Não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que bala de carabina Que veneno estriquinina

Que peixeira de baiano

Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver Mata mais que bala de revórver

[...]

O terceiro exemplo é a música “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, composta por Geraldo Vandré (1979) no ano de 1968 e apresentada pela primeira vez no III Festival da Canção da TV Globo ocorrido no mesmo ano. Apesar dessa música ter sido ovacionada pelo público do festival, por orientação da censura, Geraldo não ficou em primeiro lugar na competição. A letra da música fala sobre repressão, faz crítica à agressão com que a população era tratada e exalta a iniciativa do povo em se opor ao regime vigente. Sendo assim, é considerada o hino brasileiro de resistência política.

A primeira gravação dessa música foi liberada apenas em 1978, na voz de Simone, cantora de MPB (música popular brasileira), que é um gênero musical surgido na segunda metade da década de 1960 na cidade do Rio de Janeiro e que se caracteriza pela fidelidade à música de raiz brasileira.

Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais, braços dados ou não. Nas escolas, nas ruas, campos, construções, Caminhando e cantando e seguindo a canção.

[Refrão]

Vem, vamos embora que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. (2x)

Pelos campos há fome em grandes plantações, Pelas ruas marchando indecisos cordões.

Ainda fazem da flor seu mais forte refrão E acreditam nas flores vencendo o canhão.

[Repete Refrão]

Há soldados armados, amados ou não Quase todos perdidos de armas na mão Nos quarteis lhe ensinam uma antiga lição De morrer pela pátria e viver sem razão.

[Repete Refrão]

Nas escolas, nas ruas, campos, construções Somos todos soldados armados ou não Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais braços dados ou não.

Os amores na mente as flores no chão A certeza na frente a história na mão

Caminhando e cantando e seguindo a canção Aprendendo e ensinando uma nova lição.

[Repete Refrão]

O quarto exemplo é a música “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, do compositor goiano Odair José (1995), que foi censurada em 1972 por se tratar de uma canção que conta uma história de amor por uma prostituta. Diante disso, os censores julgaram que ela ia contra a moral e os bons costumes daquela época.

Olha, a primeira vez que eu estive aqui Foi só pra me distrair

Eu vim em busca do amor

Olha, foi então que eu lhe conheci Naquela noite fria, em seus braços Meus problemas esqueci

Olha, a segunda vez que eu estive aqui Já não foi pra distrair

Eu senti saudades de você

Olha, eu precisei do seu carinho Pois eu me sentia tão sozinho E já não podia mais lhe esquecer

Eu vou tirar você desse lugar Eu vou levar você pra ficar comigo

E não me interessa o que os outros vão pensar

Eu sei que você tem medo de não dar certo Pensa que o passado vai estar sempre perto E que um dia eu posso me arrepender

Eu quero que você não pense em nada triste Pois quando o amor existe

Não existe tempo pra sofrer.

A quinta e última música que trazemos como exemplo é “Hoje É Dia de El- Rey”, composta em 1973 por Milton Nascimento e Márcio Borges (1973), que seria gravada por Milton Nascimento e Dorival Caymmi, mas a censura vetou a composição argumentando que ela possuía nitidamente um conteúdo político. A canção consiste em um diálogo entre pai e filho. Após ser vetada, a versão lançada no disco de Milton, ainda no ano de 1973, sofreu algumas alterações em sua letra. Abaixo encontram-se a letra da versão do disco e ao lado estão as frases da versão original que foram alteradas.

Filho - Não pode o noivo mais ser feliz não pode viver em paz com seu amor não pode o justo sobreviver

se hoje esqueceu o que é bem-querer Rufai os tambores saudando El Rey

nosso amo senhor e dono da lei soai clarins pois o dia do ódio e o dia do não são por El Rey

Pai - Filho meu, ódio você tem,

mas El Rey quer viver só de amor (mas alguém quer provar o seu amor)

sem clarins sem mais tambor

vá dizer: nosso dia é de amor (nenhum rei vai mudar a velha dor)

Filho - Juntai as muitas mentiras jogai os soldados na rua

nada sabeis desta terra hoje é o dia da lua

Pai - Filho meu, cadê o teu amor nosso Rey está sofrendo a sua dor

Filho - Leva daqui tuas armas então cantar poderia

mas nos teus campos de guerra hoje morreu poesia

Ambos - El Rey virá salvar...

Pai - Meu filho, você tem razão mas acho que não é tudo

se o mundo fosse o que pensa (se a gente fosse o que pensa) estava tudo no mesmo lugar (estava em outro lugar)

pai você não tinha agora (medo ninguém tinha agora) e hoje pior ia estar (e tudo podia mudar)

Filho - Matai o amor, pouco importa mas outro haverá de surgir

o mundo é pra frente que anda mas tudo está como está hoje então e agora pior não podia ficar

Ambos - Largue o seu dono e procure nova alegria (largue o seu dono, viaje noutra poesia)

se hoje é triste e saudade pode matar (se hoje é triste e coragem pode matar)

vem, amizade não pode ser com maldade se hoje é triste a verdade

procure nova poesia (empurre a porta sombria) procure nova alegria (encontre nova alegria) para amanhã.

Segundo Araujo, Silva e Santos (2013) a partir do governo de Ernesto Geizel, começou uma tentativa de abrandar a Ditadura Militar, realizando um processo de abertura política no Brasil, com a finalidade da população sentir que havia democracia, ao mesmo tempo em que os militares a controlava. Após a oposição dos militares que não concordavam com esse processo e a empolgação da população na luta por um regime de fato democrático, em 13 de outubro de 1978 foi publicada a Emenda Constitucional de nº 11, que em seu Artigo 3º revogou todos os Atos Institucionais.

Sendo assim, as autoras afirmam que com a revogação do AI-5 foi decretada a Lei da Anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979, a qual perdoava todos os crimes políticos cometidos durante o período da Ditadura Militar até o referido ano. Nesse momento, puderam retornar ao Brasil as pessoas que estavam exiladas, dentre elas alguns artistas e familiares de artistas.

Em síntese, podemos perceber que durante a Ditadura Militar no Brasil, mesmo diante de todas as dificuldades políticas, a música foi utilizada como um instrumento de luta contra a repressão e um meio de expressar emoções, sentimentos e pensamentos de compositores, músicos e diversos artistas dessa época, bem como do público que a consumia como forma de transmitir sua indignação e o sentimento de esperança de que chegassem dias melhores.

Após essa breve explanação de exemplos de músicas que foram censuradas na época da Ditadura Militar, podemos perceber nas letras das músicas atuais que houve uma mudança no que se refere à liberdade de expressão, pois os compositores podem escrever explicitamente, nas mais diferentes formas de

linguagem, sobre conteúdos políticos, econômicos, culturais, sociais, religiosos, eróticos, de dor, de amor e de tudo mais que o ser humano deseja expressar. Apesar disso, é importante salientar que essas produções estão sujeitas à crítica social, pois podem gerar reações contrárias e possíveis retratações.

Dando continuidade à discussão sobre a importância da música em nossas vidas, a seguir, será explanado brevemente acerca da função social da música.

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