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4 NA LINHA DE FRENTE: CONTEXTOS DO TRÁFICO DE

4.3 Organização da firma

4.3.1 A malandragem é viver

O Trabalhador do tráfico de drogas 1, no momento da entrevista, tinha pouco mais de 30 anos, era o mais velho entre os entrevistados e, por quase 15 anos, esteve associado ao tráfico de drogas varejista. Esse tempo foi dividido entre a atuação na rua e os períodos de encarceramento. Quando entrou para o tráfico, no meio de sua adolescência, ainda não existia uma estrutura forte de domínio da área. Seu primeiro patrão foi o responsável por iniciar um ponto de vendas de drogas no local. O bairro, na época, estava começando um processo habitacional, portanto, ainda com características pouco urbanas. A população recém-chegada vinha de um desalojamento inicial de outra área em prol de melhorias nas condições de vida.

O patrão era um antigo comerciante de pombos. A atividade no comércio permitiu a ele a constituição de uma ampla rede de contatos, sobretudo no que se refere a produtos contrabandeados. Quando ele chegou ao local, verificou um ambiente propício para a criação de uma boca de fumo. O bairro era afastado da área mais central da cidade, não contava com nenhuma outra boca por perto e era composto por uma área extensa de mato, o que facilitava o estoque da droga de forma mais camuflada. No início conciliava as duas atividades, o comércio de pombos e a venda de drogas. Com o passar do tempo, o bairro passou por um momento de crescimento com a construção de moradias populares. A boca acompanhou o crescimento do bairro e, assim, foi preciso recrutar trabalhadores para conseguir atender à demanda.

Nesse momento, o Trabalhador do tráfico de drogas 1 iniciou sua atuação na venda de drogas ilícitas. Como vapor, sua função era o repasse do produto diretamente para o cliente. No início só vendia maconha. O patrão passava para ele, diariamente, dez buchas de maconha, das quais o valor referente a sete deveria ser pago ao patrão no final do dia; as outras três ficavam para ele. Cabia a ele decidir entre fazer uso do produto ou vender.

O aumento gradativo nas vendas trouxe maiores riscos. O contato com a polícia passou a ser constante nas subidas semanais ao local para negociar a continuidade do funcionamento da firma e a liberdade dos vapores em troca de uma quantia monetária. Segundo ele, a polícia, sobretudo a polícia civil, era 99% corrupta. O que dificultava muitas vezes a negociação era o alto valor que sempre lhes era solicitado.

Com o tempo começou a reivindicar ao patrão um valor maior nesse repasse e, diante das constantes negativas, resolveu sair do negócio. Nesse momento, seu primo estava retornando ao bairro, após um longo período encarcerado. Na ocasião em que esteve

preso, o primo conseguiu contatos de bons fornecedores de drogas e o convidou para montarem uma boca juntos, na sua casa. Ele aproveitou a oportunidade. Como a casa ficava no caminho para a boca do antigo patrão, rapidamente a venda cresceu. Mas o negócio não durou muito, o antigo patrão não aceitou a perda de domínio de uma parte do território e deu ordens para matá-los. A boca acabou e eles tiveram que fugir da área.

No momento em que realizamos as entrevistas, ele havia passado recentemente pela prisão, mais uma vez de uma série constante de idas e vindas. Durante o tempo em que esteve encarcerado e o entrevistamos, era muito presente um discurso pautado na ideia de que a atuação no tráfico de drogas não valia a pena. Já na entrevista em liberdade, o que se tornou notório não era necessariamente descrença, mas a percepção de que ele estava completamente enredado nas malhas do tráfico, ainda que diante de uma tentativa de se manter fora dele.

Ao relembrar situações vivenciadas em uma história passada e todo o seu percurso no tráfico, o tom que imperava era de um certo cansaço. Sua mãe estava apresentando uma série de problemas de saúde que a impediam de trabalhar. Morando só os dois em um pequeno cômodo, no qual improvisaram uma divisão que permitia a existência de um banheiro e uma cozinha, ele precisava se responsabilizar pelo sustento da casa. Tinha também dois filhos que residiam com sua ex-mulher em um local proibido a ele, pois estava jurado de morte por um traficante da região. Aliados a isso, os problemas de relacionamento com a ex-mulher lhe trouxeram uma enorme dificuldade para manter contatos com os filhos.

Naquele momento da entrevista, sua preocupação era não trazer novos desgostos à mãe. Não gostaria de estar encarcerado caso sua mãe viesse a falecer; por isso, mas

também em função desse “acúmulo” prisional, estava se dedicando à busca de empregos lícitos. Ao mesmo tempo parecia haver uma sensação de dívida com a firma local, pois, nos momentos em que esteve preso e a mãe precisou de alguma medicação ou mesmo de dinheiro para comprar alimentos, ela recebeu auxílios dessa firma. Mesmo após sua soltura, durante uma crise em que ela necessitou ser encaminhada ao hospital, foi o patrão da firma quem disponibilizou um carro para levá-la.

Para ele, nitidamente em grande contraste com o Trabalhador do tráfico de drogas 2, não parecia haver grande contentamento com o trabalho no tráfico, os inúmeros riscos eram sempre pautados em sua fala. Assim, de fato, não valia a pena, por conta do tráfico, a prisão nem uma constante fuga para se manter em vida – a malandragem é viver, dizia ele. Ao mesmo tempo era no tráfico de drogas que ele podia sanar a urgência do dinheiro, sempre em mãos, que podia comprar os remédios quando se faziam necessários, que podia alimentar o corpo, mas que também comprava não só a sua liberdade de uma instituição total, mas a manutenção de sua vida diante de tantas ameaças de morte.