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3 O PERCURSO METODOLÓGICO

3.4 Dificuldades e tensões da pesquisa

3.4.1 Desafios éticos

Durante o trabalho de pesquisa, vários dilemas nos impulsionaram a fortes tomadas de decisões. Um desses dilemas concerniu à passagem do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP). Como se sabe, atualmente no Brasil, todo projeto de pesquisa que tenha seres humanos como principal fonte de informações necessita de aprovação do COEP. Conforme redação dada pela Resolução 466, de 12 de dezembro de 201225, cabe a essa instituição emitir parecer consubstanciado sobre o cumprimento dos padrões éticos pelos projetos, zelando pela integridade e dignidade dos participantes de pesquisas científicas que envolvam seres humanos.

Apesar de propor abarcar todos os campos disciplinares, a Resolução e, por consequência, a atuação dos comitês de ética estão pautadas em pressupostos normativos e metodológicos predominantemente da área biomédica, o que, muitas vezes, gera inúmeras complicações para o formato metodológico das pesquisas em Ciências Humanas.

25 A Resolução do Conselho Nacional de Saúde n°196, de 1996, é a mais extensiva sobre a constituição e

funcionamento dos Comitês de Ética em Pesquisa. Considerando uma imposição dessa normativa sobre a necessidade de revisões periódicas a ela, publicou-se, em 2012, a Resolução de n° 466, que revoga a resolução anterior e traz parcos avanços para considerações tecnocientíficas e éticas.

Conforme aponta Dinis (2008):

Conceitos como riscos e benefícios, devolução dos resultados de pesquisa, benefícios compartilhados, termo de consentimento livre e esclarecido ou reparação por danos compõem o vocabulário compartilhado dos comitês de ética para avaliar projetos de pesquisa. Certamente algumas dessas questões também estão presentes nos projetos de pesquisa em Ciências Humanas, no entanto seu conteúdo não é idêntico. (p. 421)

Os riscos que os participantes desta pesquisa enfrentaram ao permitirem ser entrevistados não são os mesmos e nem podem ser mensurados pelos mesmos instrumentos utilizados, por exemplo, em relação a voluntários que aceitam participar de terapias testadas em bebês, com o uso de retrovirais, para avaliar estratégias de bloqueio à transmissão de vírus HIV das mães para seus filhos.

Não é possível de igual maneira, nos projetos de Ciências Humanas, sustentar sempre um desenho metodológico imbuído de todas as suas implicações anteriormente à entrada de campo. Muitas vezes, tal entrada necessita de inúmeras negociações com os sujeitos a serem pesquisados e o próprio desenvolvimento ganha contornos diferenciados durante o processo, como foi o caso de nossa pesquisa.

Com relação ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), outra problemática se interpõe especificamente para pesquisas que têm como principais participantes pessoas que se envolveram em algum tipo de atividade ilegal. É o caso das pesquisas em torno do usuário de drogas e mesmo do processo que dá origem a esta dissertação. Torna-se completamente inviável a solicitação da assinatura de um documento

como esse, sem antes construir uma dinâmica de extrema confiança, o que demanda tempo e a entrada de campo a priori ao envio do projeto ao COEP.

No caso de entrevistas com criminosos, muitas vezes procurados pela polícia, como traficantes de drogas, parece surrealista pedir que assinem ou forneçam identificação datiloscópica em um documento atestando seu consentimento livre e esclarecido. Mesmo nos casos em que pesquisadores muito hábeis têm conseguido documentos desse tipo, isso só se dá após uma longa permanência no campo e muitas vezes com o entendimento de que o entrevistado vá utilizar uma assinatura falsa – procedimentos que parecem contrariar a letra da Resolução. (MacRae & Vidal, 2006, p.659)

A assinatura do TCLE, no caso de nossa pesquisa, comportaria ainda uma violação ao princípio "Nemo tenetur se detegere", o direito de não produzir provas contra si mesmo, consagrado no inciso LXIII do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1998. Assim, ao solicitarmos tal assinatura, estaríamos infringindo uma outra normativa e gerando riscos com a possibilidade de instauração de um processo condenatório justamente através do documento que supostamente serviria para protegê-los.

Alinhada a essas pontuações a assinatura do TCLE, tornou-se imperativo levar em consideração outros fatores presentes no contexto deste projeto. No cotidiano dos participantes desta pesquisa, a assinatura de qualquer papel sempre esteve associada à assinatura de documentos que dariam origem a um processo penal. Para além da assinatura e, portanto, a responsabilização por crimes que realmente cometeram, no universo do tráfico de drogas no varejo, como será visto adiante, são inúmeras as vezes que uma pessoa precisa assumir crimes praticados por outrem ou mesmo cumprir condenações em função

de alguma armadilha produzida por policiais. Não poderíamos aqui, em hipótese alguma, funcionar como mais um elo de criminalização dessas pessoas.

Nesse sentido, conforme discutido na primeira parte deste capítulo, posicionamo- nos diante dos desafios éticos que perpassaram todo o processo de pesquisa tendo como eixo basilar o respeito ao outro, em sua dimensão de alteridade, e em total primazia da condição humana. Por vezes, quando o caminho normativo implicava na redução da liberdade do outro, ou mesmo em denegrir sua condição humana, tomávamos o caminho contrário. Não nos cabia ainda o julgamento moral. Não nos cabia igualmente apoiar qualquer atividade considerada ilícita. Em vez de uma posição de apoio, foi construída

uma relação em proximidade. Por fim, como nos coloca Roche (2007b), “podemos dizer

que a ética é uma parte integrante da ação daquele que tomou partido da proximidade e aí é constantemente reativada enquanto uma interrogação sobre a sua prática profissional” (p.27, tradução nossa)26.