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3 TRABALHO IMATERIAL, PRODUÇÃO E COMUM

3.3 A MEDIDA E O LIMITE

As noções de medida e de limite se articulam na identificação da potência da multidão presente na produção do comum. Quando o capital transforma o trabalho vivo em acumulação de valor estamos diante de uma operação da medida – “O valor é a medida com que o capital transita do qualitativo para o quantitativo. Que ele reduz a qualidade infinita das forças produtivas em quantidades mensuráveis” (CAVA & MENDES, 2017, p. 220). A medida capitalista, quando tinha como critério o tempo de trabalho, era uma violência da transfiguração do qualitativo no quantitativo, da criatividade viva e aberta do trabalho vivo no tempo opaco e fechado do valor capitalista. Essa operação, entretanto, era feita na presença do capital. Podemos dizer que a jornada de trabalho se dava em território capitalista, visto que o capital levava ao processo de trabalho o que a força de trabalho precisava, enquanto elemento externo: na fábrica, os meios de produção. Quando o processo de trabalho e produção se difunde à sociedade, na medida em que sai dos muros da fábrica, também sai dos muros do capital. Os meios de produção não são mais colocados diretamente pelo capital e passam, em larga medida, distantes de seu controle e de sua necessidade. A produção se dá no comum e em comum, que está além do capital: capital e produção se distanciam. Nesse processo a medida do valor perde sua condição de possibilidade: o comum é incomensurável. O capital, entretanto, ao tomar distância da produção, continua a exploração e a expropriação, agora diferentemente. Aqui encontramos uma contradição, para o capital, da produção do comum: na medida em que o capital explora o trabalho vivo que produz o comum, expropriando-o, ele precisa controlar os fluxos produtivos do comum para que não excedam em demasia seu próprio comando. Simultaneamente, todavia, o capital precisa do comum e de sua enorme produtividade para que continue a explorá-lo. O capital precisa simultaneamente que a produtividade do comum seja liberada, para que seja explorada, e que seja limitada, para que não escape ao capital. A produção socializada é a galinha dos ovos de ouro do capital – e o risco de matá-la faz parte de seu funcionamento normal; o comum é a pedra no sapato do

capital – entretanto, é a pedra que lhe faz andar. “O desejo de desterritorialização da multidão é o motor que impele todo o processo de desenvolvimento capitalista, e o capital precisa constantemente tentar contê-lo” (HARDT & NEGRI, 2001, p.141). É esse o chamado “comunismo do capital” (FUMAGALLI, 2011; ROGGERO, 2014) – a dependência estabelecida do capital ao comum. É isso o que Hardt & Negri chamam de “comum corrupto” (2016).

É na presença do “comunismo do capital”, entretanto, que a abertura política para o “comunismo”, para o comum em uma forma não corrupta pelo capital, se dá. Não simplesmente por causa da contradição entre a necessidade simultânea, pela parte do capital, de expandir e de limitar o comum – como colocavam Deleuze & Guattari, e Negri vai na mesma direção, “as contradições nunca mataram ninguém74” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 202). É necessário passar das contradições ao antagonismo: “As contradições não realizam as lutas por si mesmas” (CAVA, 2012b, p. 57). Uma vez que a medida deixa de ser possível, a valorização capitalista se explicita como violência na forma da expropriação do comum. Enquanto a contradição entre capital e trabalho no regime de medida extensa do valor era o motor do processo capitalista na síntese entre trabalho vivo e morto (pelo segundo), quando a medida se torna intensiva e o valor incomensurável a síntese se torna impossível e o antagonismo é imediato – “o antagonismo pode existir unicamente se a relação social do capital não se encerrar na síntese” (NEGRI, 2016c, p. 66). Não há mais síntese possível entre capital e trabalho, nem contradição que a movimente: há uma autonomização da multidão enquanto classe produtora do comum e uma autonomização do capital enquanto poder expropriador. Nesse sentido, Negri define o agir da multidão como um agir fora da medida, como resistência. Essa resistência, entretanto, na medida em que é constante agir fora da medida que deveio impossível (mas que é tornada arbitrária valorização capitalista, através da violência antagonista da expropriação), tem em seu horizonte de possibilidades uma abertura para a potência constituinte, para o agir além da medida (NEGRI, 2003b, p. 104). Estaríamos em uma fase em que predomina a resistência, mas que, no mesmo movimento, abre constantemente o caminho constituinte – “A atividade da multidão constitui o tempo além da medida” (HARDT & NEGRI, 2001, p. 426).

74 “Nunca uma discordância ou um disfuncionamento anunciaram a morte de uma máquina social que, ao

contrário, se alimenta habitualmente das contradições que provoca, das crises que suscita, das angústias que engendra e das operações infernais que a revigoram: o capitalismo aprendeu isso e deixou de duvidar de si, e até os socialistas deixavam de acreditar na possibilidade da sua morte natural por desgaste. As contradições nunca mataram ninguém. E quanto mais isso se desarranja, quanto mais isso esquizofreniza, melhor isso funciona, à americana” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 202, grifo dos autores).

Seguindo o tom geral de sua obra, Negri coloca a abertura para a luta da multidão em termos positivos, em termos de potência, antes do em termos do negativo ou da falta. Como vimos, o comum produz excedente, é expansivo: o capital vive de apropriação desse excedente. Entretanto, o excedente não é definido em termos do capital, não é excedente para o capital: o capital vem depois. O comum é excedente em si mesmo; excede tanto a si quanto a capacidade de controle e expropriação do capital. Nesse sentido, ao menos em um primeiro momento, o comum está sempre para além do capital:

a produção do comum sempre envolve excedente que não pode ser expropriado pelo capital nem capturado na arregimentação do corpo político global. Este excedente, no nível filosófico mais abstrato, é a base sobre o qual o antagonismo transforma-se em revolta. Em outras palavras, a privação pode gerar raiva, indignação e antagonismo, mas a revolta só surge com base na riqueza, ou seja, um excedente de inteligência, experiência, conhecimento e desejo (HARDT & NEGRI, 2014a, p. 275).

A crise da lei do valor é uma crise do comando capitalista. No comum pode-se produzir, e produz-se, fora da medida, o que abre o caminho para produzir além da medida: sua capacidade excedente é o que lhe dá a possibilidade de romper o controle, de produzir de um modo que o capital não mais lhe controle. O capital não é mais que um obstáculo para a constituição do comum em sua forma plena, virtuosa (não corrupta). O obstáculo, como coloca Negri, pode ser superado, deixado para trás (2003a, p. 151-153). Entre o “comum corrupto” e o “comum virtuoso”, o comunismo do capital e o comunismo da multidão, não há um caminho pacífico, mas luta calcada na produção e na excedência. O comum precisa ser instituído para além do capital:

Entre o ‘comunismo do capital’ e as instituições do comum não há nenhuma especularidade ou relação linear de necessidade: trata-se, em outros termos, de reapropriar-se coletivamente da riqueza social produzida, rompendo os dispositivos de captura da potência do trabalho vivo, que assumem a dupla face do público e do privado (FUMAGALLI, 2011, p. 350).

Se o capital é obstáculo para a multidão e para a sua produção em/do comum, não se pode dizer o inverso: o capital precisa da multidão produtiva. Nesse sentido, a multidão não é apenas um obstáculo para o capital, visto que um obstáculo é passível de superação; ao invés disso, a multidão é o limite do capital. Para o poder capitalista, a multidão e o comum são o limite de sua operatividade, são sua condição insuperável – “O limite é, pois, uma determinação ontológica, algo indestrutível. Insistir na definição de limite significa compreender que a multidão é algo que a soberania e o poder não podem mais destruir, que devem aceitar e eventualmente mediar” (NEGRI, 2003a, p. 151). A constituição da multidão e da produção comum coloca um claro limite para o capital, visto que a potência da multidão pode se colocar para além deste obstáculo.

Na crise da medida é o próprio poder capitalista que entra em crise. Entretanto, que o capital é definido pela necessidade da crise não é novidade para o marxismo: crise não significa morte ou fim. O controle, o biopoder, o Império, são justamente as formas encontradas para a gestão da crise na forma em que esta se configura a partir da crise da lei do valor, enquanto crise necessária e constante. Dessa forma, a explicitação da violência da expropriação e a abertura ao antagonismo não colocam uma teleologia que afirme necessariamente o fim do capital e a liberação do comum. A abertura ao antagonismo é o começo da luta de classes, o que coloca o terreno em conflito, entre a produção, a potência e o desejo da multidão e a expropriação, o poder e o controle do capital. O capital tem a multidão como limite: ele não pode se livrar desta, limitando-se a controla-la para seus fins e na medida do possível; a multidão tem o capital como obstáculo: ela pode se livrar deste, liberando o comum de seu controle – entretanto, nada é certo: nem que a multidão avançará para além do capital, nem que o capital controlará a multidão. “[A] multidão não surge espontaneamente como forma política, e a carne da multidão consiste numa série de condições que são ambivalentes: poderiam levar à libertação ou ser apanhadas num novo regime de exploração e controle” (HARDT & NEGRI, 2014a, p. 275). Esses acontecimentos estão sujeitos ao processo da luta de classes, na qual há organização dos dois lados e na qual há inúmeras batalhas, em que se vence algumas e se perde outras.