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1 CLASSE DEPOIS DO HUMANISMO

1.2 O MÉTODO MARXIANO

1.2.3 Materialismo e imanência

Como já mencionado, de passagem, a concepção ontológica fundamental de Negri (& Hardt) passa por uma defesa da imanência enquanto horizonte do ser. Isso é de grande importância, visto que, no modo de fazer filosofia de Negri, a ontologia é inseparável da política. Como viemos vendo, a sua concepção ontológica não dialética reflete diretamente em modos de pensar o social e o político e as suas possibilidades – da mesma forma que uma ontologia dialética acaba por afirmar outra política, outras possibilidades. Para o autor, porém, só uma perspectiva que preze pela imanência pode dar conta de um caminho de libertação. A dialética, como vimos, é um pensamento e uma prática que toma o ponto de vista da totalidade do poder e submete as potências a seus ditames. Isso acontece em relação seja ao Soberano, ao Estado, ao Capital (no limite, contemporaneamente os últimos dois se identificam como modos do primeiro). O que acontece nesses casos é que se “esquece” – se

finge esquecer – que o poder é uma relação, e uma relação entre polos diferentes. O poder só existe pois submete o outro polo, a resistência, a seu funcionamento. Dessa forma, do ponto de vista do poder, o poder é o único e totalizante sujeito, sem o qual as potências são impensáveis. Em uma filosofia da totalidade estática, não processual, como o contratualismo, nos deparamos com uma ilusão de substancialidade pela parte do poder. Na dialética, diferentemente, é admita a relação, a noção do poder enquanto relação. Entretanto, como vimos, essa relação é mistificada pela submissão de ambos os termos da relação ao termo que é negado, (o capital, o poder), impossibilitando, pelo processo da síntese (da Aufhebung), uma perspectiva radical e destruidora pela parte do polo negador. O polo do poder é, portanto, considerado sempre como transcendente ou como transcendental (dependendo da filosofia ou do mecanismo em questão). Para Negri, por outro lado, é necessário tomar o ponto de vista da imanência e considerar esses mecanismos transcendentais ou transcendentes, como sendo possíveis apenas pela e na imanência. A imanência é horizonte ontológico em um duplo sentido: o de ser uma concepção geral do ser e da realidade enquanto imanente, uma teoria “formal e abstrata” sobre o funcionamento do ser que nega um horizonte ontológico que apregoe a transcendência; e no sentido de que a realidade mesma, a realidade com a qual nos deparamos em nossa vida prática, é ontológica, é ontologia. Isso se deve ao fato de que, em uma ontologia imanentista, não há “ser” para além do ser atual e material, não há mundo platônico, dualismo da alma, ou verdade última (seja na Origem ou no Fim) a ser encontrada. Ou, no dizer de Negri, uma ontologia imanentista (a sua, ao menos, baseada em Spinoza) é uma ontologia da superfície (1993) – não há nem fundo a ser desvelado; nem ser primordial para se ter nostalgia; nem ser pleno para o qual estamos avançando; nem ser perfeito do qual somos emanação. O que há, é ontológico: “O mundo como ele é/está [The world as it is] – assim é como entendemos ontologia” (HARDT & NEGRI, 2017, p. xviii).

Uma tal concepção de ontologia indica porque não há separação entre ontológico e político. Como Negri coloca,

Apenas a imanência produz a cidade. Mas o que significa imanência? Significa que não há fora deste mundo. Que neste mundo existe apenas a possibilidade de viver (de se mover e de criar) aqui dentro. Que o ser no qual nós estamos, e do qual não podemos nos liberar (porque somos feitos desse próprio ser, e qualquer coisa que façamos nada mais é que um agir sobre, ou seja, um agir desse nosso ser), é um devir não fechado, não prefigurado ou pré-formado, mas produzido (NEGRI, 2016b, p. 166, primeiros grifos do autor, último grifo nosso).

Em uma ontologia imanentista como a de Negri toda a ação é produtiva de ser, visto que o ser é o que se nos apresenta de imediato, em superfície, dessa forma, diferentes políticas moldam

o ser diretamente. Como coloca César Altamira, “o fundamento é o ser; trata-se de um fundamento concebido como a superfície. A superfície aparece como o ser determinado praticamente pelo cruzamento e deslocamento experimentado no terreno físico e histórico” (2008, p. 419). Por isso, uma política e uma teoria do poder, transcendente ou transcendental, não deixam de ser reais, mesmo no horizonte da imanência. Entretanto, a imanência é sempre primeira, e é através dela que o poder se constrói, sempre relativa e fragilmente, visto que está constantemente sofrendo o assalto da parte da resistência.

A própria grande síntese hegeliana (transcendental em sua origem, logo em seguida, sob o ritmo do espírito absoluto, totalmente transcendente) é revirada pela materialidade dos processos históricos (de resistência, de luta, de revolução), processos nos quais as políticas da imanência se exprimem com um ritmo alarmante para o soberano (NEGRI, 2016b, p. 167).

A ontologia política de Negri, declaradamente spinozista, afirma um horizonte de imanência absoluto (como veremos de maneira focada na subseção 2.1.1). E aqui introduzimos mais um ponto a respeito da metodologia marxista negriana e de sua leitura de Marx: o da transição e do comunismo. Os tradicionais termos da pesquisa marxista, forças produtivas (máquinas, força de trabalho etc.) e relações de produção (o modo como é organizada a produção. No capitalismo: separação entre produtores, trabalhadores livres, e proprietários dos meios de produção, burgueses ou capitalistas), são levados, por Negri a um estatuto ontológico e generalista. Dessa forma, tomar o ponto de vista das forças produtivas, para o italiano, é tomar o ponto de vista da potência e da classe; simultaneamente, tomar o ponto de vista das relações de produção é o mesmo que tomar o ponto de vista do poder ou do capital. A relação entre imanência e transcendência dialética se dá assim, nos termos de sua leitura da ontologia spinozana: “Em Espinosa as forças produtivas produzem as relações de produção37” (NEGRI, 2016b, p. 167), sendo que, de acordo com o que falamos, as forças produtivas são a imanência e as relações de produção são a dialética. Entretanto, também nos diz Negri, “o pensamento spinozista é a apologia da força produtiva” (NEGRI, 1993, p. 193). Em que isso influencia na concepção de transição e de comunismo proposta por Negri?

Se atentarmos à concepção de dialética que expomos, a tradicional dialética entre as forças produtivas e as relações de produção é, imediatamente, uma armadilha teórica. Visto que a dialética é controle das relações de produção sobre as forças produtivas, tomar essa

37 Este é outro ponto em que Negri se distancia de Althusser. Enquanto o maoísmo defendia o primado das

relações de produção sobre as forças produtivas, influenciando o grupo althusseriano em Ler o Capital, Stalin defendia o contrário: o primado das forças produtivas (ver GARCIA, 2014). Entretanto, evidentemente, a concepção de Negri e a de Stalin são radicalmente heterogêneas, visto que a de Stalin estava vinculada a um determinismo histórico, tanto economicista quanto tecnológico, que pouco se importava com a dimensão da subjetividade.

relação em uma forma dialética impossibilita, de antemão, a destruição do capitalismo (impossibilita o comunismo). Como coloca Cocco, na direção do comunismo “o processo constitutivo afirma-se como separação que se opõe à dialética que tudo resolve, que tudo sintetiza” (COCCO, 2015, p. 344). A esperança da chegada do comunismo (e ou do socialismo) através do movimento dialético e da resolução das contradições internas ao movimento do capital só poderia ser fundamentada em uma concepção teleológica do movimento histórico – o comunismo como fim necessário no horizonte imediato da contradição capitalista. Entretanto, como coloca Cocco, a dialética resolve (recorrente e infinitamente) as contradições e neutraliza o antagonismo, única força que de fato poderia destruir a relação capitalista. Para Negri, a “transição” ao comunismo (que nem pode ser chamada com esse nome sem ressalvas38), é antes vinculada ao antagonismo das forças produtivas, ou seja, da subjetividade em luta. Negri se coloca na linha da definição dada por Marx & Engels em A Ideologia Alemã:

O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento resultam dos pressupostos atualmente existentes (MARX & ENGELS, 2007, p. 38). Tal definição vai ao encontro da concepção imanentista do ser e da história defendida por Negri. Não se deve falar em “transição” ao comunismo, a não ser que se entenda a transição como sempre já ocorrendo, como o próprio movimento de luta contra o poder capitalista. Como veremos em nosso terceiro capítulo, isso terá consequências diretas na concepção do comum e na análise contemporânea da produção.

Como coloca Cocco, “não há teoria do comunismo que não seja uma teoria da formação do sujeito ao mesmo tempo que a circulação do capital é seu devir e esse devir é mesmo o movimento de socialização do capital, de construção de uma sociedade-fábrica” (COCCO, 2015, p. 344). Esta formação do sujeito foi descoberta por Negri, no contexto operaísta e em diante, como o caminho para “reafirmar o comunismo. [...] como enfrentamento presente contra a ordem das coisas; contra a exploração e a autovalorização do capital, o comunismo como autovalorização operária e descoberta de uma subjetividade revolucionária em ação” (SANTIAGO & VERSOLATO, 2016, p. 11). O comunismo é uma ação imanente e atual, não um estado de coisas lançado ao futuro. É nesse sentido que a via da subjetividade leva ao comunismo – Repetindo: “A via da subjetividade, no entanto, é a que

38 “não há mais lugar para o conceito de ‘transição’, mas somente para o conceito de ‘poder constituinte’ como

confere materialidade ao comunismo. A classe operária é subjetividade, subjetividade cindida, que anima o desenvolvimento, a crise, a transição e o comunismo” (NEGRI, 2016c, p. 268).

Acreditamos ter mostrado, finalmente, que a importância dada por Negri à subjetividade na pesquisa marxista está longe das concepções humanistas nas formas criticadas por Althusser. A subjetividade é descoberta importante como momento da luta e do desenvolvimento através de materiais e históricas pesquisas sobre a composição de classe, o que leva à perspectiva de uma cisão na totalidade posta pela relação do capital. Althusser, limitado por uma concepção de ideologia totalizante, se impossibilitava de perceber, justamente, essa cisão. Negri, através da pesquisa sobre a composição de classe, acompanhando o duplo movimento que nomeamos de (pós-)estruturalismo, pervertendo as palavras de Balibar (2003) (mas certamente não seu sentido), efetua até o final a pesquisa iniciada por Althusser: a destituição da metafísica do Sujeito e a reconstrução histórica e aberta das subjetividades (“momento estruturalista”); e a abertura da totalidade estrutural para a sua multiplicidade formacional, a sua cisão através da subjetividade e da resistência (“momento pós-estruturalista”). Althusser, parece, não pode efetuar radicalmente a segunda parte do movimento.