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4 MULTIDÃO PÓS-HUMANA

4.1.2 Ciber-multidão

Outro ponto no qual a multidão se constitui na direção do pós-humanismo é a da sua união com a máquina. O título desta seção, portanto, refere-se à noção de ciborgue: o ciborgue é a uma sorte de entidade híbrida, constituída borrando as fronteiras, modernamente estabelecidas, entre humano, animal, máquina, cultura e natureza, sujeito e objeto. O trabalho de Donna Haraway, bastante referenciado por Negri & Hardt (2001, p. 109; 237; 2003b, p. 267; 2014a; 2016), coloca a necessidade, em uma perspectiva feminista socialista, de perceber a condição de ciborgue que as sociedades avançadas nos colocam, misturando humano, máquina, animais, fármacos etc. Como a autora afirma, “talvez possamos, ironicamente, aprender, a partir de nossas fusões com animais e máquinas, como não ser o Homem, essa corporificação do logos ocidental” (HARAWAY, 2009, p. 83). O ciborgue é a encarnação própria do corpo em um viés pós-humanista. No trabalho de Negri & Hardt, como já vimos em parte, ainda que a noção de “ciborgue” não seja tão recorrente78, o conceito está presente. Na mesma direção da noção de ciborgue, e em termos mais recorrentes no trabalho dos autores, há a afirmação de uma ontologia maquínica, do maquínico enquanto modo de organização dos corpos, vinculada sobretudo ao trabalho de Deleuze & Guattari. Toda essa dimensão maquínica, ciborgue, ou pós-humanista, está diretamente ligada à preocupação anti- humanista da crítica do Sujeito. O Sujeito, como noção metafísica própria do humanismo, é criticado juntamente ao se criticar a noção de Homem e a separação entre humano e natureza ou entre humano e máquina. Como colocam Negri & Hardt,

no contexto do pensamento francês do século XX os conceitos de maquínico, consistência maquínica, e agenciamento maquínico respondem efetivamente aos filósofos, como Louis Althusser, que, para combater as ontologias espiritualistas que pregavam teorias do sujeito, afirmaram ‘um processo sem sujeito’ (HARDT & NEGRI, 2017, p. 121).

78 Em geral o conceito de ciborgue aparece através do trabalho de Haraway. Entretanto, Murphy (2011, p. 174)

atenta que em Labor of Dionysus Negri & Hardt chegam a denominar o trabalho imaterial de “trabalho ciborgue”. Em Kairòs, Alma Venus, Multitudo (2003b) Negri também utiliza o conceito de forma explícita e recorrente.

O maquínico é, pois, para Negri & Hardt, uma forma de pensar a subjetividade em um nível material, corporal, sem separação a priori entre Sujeito-Homem e objeto, natureza ou máquina.

Em seus desenvolvimentos os autores vinculam o pensamento de Spinoza a uma tradição materialista que pensa a noção de maquínico, ou que pensa maquinicamente (HARDT & NEGRI, 2017, p. 109). Spinoza coloca, na Ética:

É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras (SPINOZA, 2014, p. 182).

O corpo, dessa forma, já era definido por Spinoza na direção do ciborgue, do hibridismo: é através das composições entre diferentes corpos que a potência dos mesmos aumenta ou diminui; tanto mais potente um corpo, quanto mais conexões ele seja capaz. O corpo humano, dessa forma, é definido conjuntamente com corpos não humanos, visto que é definido por uma composição “interna” e “externa”: o corpo é corpo de corpos – “Reconhecemos que cada corpo é ele mesmo uma multidão – de moléculas, desejos, formas de vida, invenções” (HARDT & NEGRI, 2003a, p. 135). Abraçando uma ontologia maquínica, essas composições de e entre corpos podem ser definidas enquanto máquinas, maquínicas: “nosso desenvolvimento intelectual e corporal é inseparável da criação de máquinas internas e externas aos nossos corpos e mentes. Máquinas constituem a e são constituídas pela realidade humana” (HARDT & NEGRI, 2017, p. 109). Essa definição da máquina e do maquínico, entretanto, é demasiado geral: se tudo é máquina, o que chamamos de máquina em um sentido quotidiano não é excepcional.

É importante como determinação dessa noção de composição maquínica a análise material do contemporâneo, que indica a centralidade da relação homem-máquina. Dessa forma, a transição pós-fordista, à subsunção real, à biopolítica, marca um tornar-se hegemônico, no trabalho e na vida, na produção e na reprodução, de uma subjetividade maquínica: “A passagem da época do homem-homem à época do homem-máquina, do moderno ao pós-moderno, põe o corpo como potência que está na base da máquina, mas que, ao mesmo tempo, é desenvolvido pela máquina” (NEGRI, 2003b, p. 206-207). Essa dimensão da hibridização de humano e máquina coloca as singularidades produtivas, em um nível material, biopolítico, – coloca o corpo –, de forma a aumentar a sua potência, o seu leque de composições e conexões possíveis. A multidão, enquanto classe vinculada à composição técnica do trabalho e da produção, é atravessada por esse hibridismo: “A hibridização de

humano e máquina já não é um processo que ocorre apenas nas margens da sociedade; é, de fato, um episódio fundamental, no centro da constituição da multidão e de seu poder” (HARDT & NEGRI, 2001, p. 429).

Em seu último livro em coautoria, Assembly, Negri & Hardt dedicam um capítulo inteiro exclusivamente à relação entre humano e máquina e ao que chamam de subjetividade maquínica (2017, p. 107-124). Os autores fazem referência direta a pensadores do maquínico, como Deleuze & Guattari (2010), entretanto, a centralidade do maquínico passa, para eles, pela análise marxista (pós-)operaísta da composição técnica do trabalho e pela radical metamorfose sofrida pelo capital fixo no pós-fordismo. Em um modo de produção de hegemonia material o capital fixo é definido pelas máquinas, local de produção etc. colocados pelo capitalista no processo de produção. Harvey afirma que faz parte do capital fixo “inclusive prédios e infraestrutura física, como sistemas de transporte, canais, portos e tudo aquilo que é necessário para o bom andamento da produção” (HARVEY, 2013, p. 306). De maneira bastante formal, entretanto, capital fixo é definido pela parte do capital constante que não é consumida em um ciclo produtivo (diferentemente das matérias primas, que são consumidas em cada ciclo). Contemporaneamente, supondo o que vimos em nossos capítulos 2 e 3, Negri & Hardt afirmam que o capital fixo “é um tipo de repositório social nos bancos de conhecimento científico e nas máquinas, em software e hardware, das conquistas do trabalho vivo e da inteligência viva, isto é, para usar os termos de Marx, do cérebro social e do general intellect” (HARDT & NEGRI, 2017, p. 110). Na socialização da produção, que se distancia do capital e se expande a todos os âmbitos da vida, o capital fixo sai do poder do capital. A enorme produção comum depende cada vez mais da relação direta entre as singularidades produtivas, que se dá imersa no corpo de trabalho acumulado, no comum que é a base, tanto material quanto cognitivamente. O capital, como vimos, continua a explorar essa produção. Todavia, aqui, o capital fixo é simultaneamente as máquinas (os bancos de dados, as redes sociais, os aparelhos que utilizamos para acessá-las e para colocá-las em movimento) e os trabalhadores humanos, visto que esse próprio corpo comum da produção imaterial, esse acúmulo produtivo, se dá junta e necessariamente em nós, em “nossas cabeças” e relações, nossos afetos e desejos. Nesse sentido, o capital fixo não distingue exatamente o que é máquina e o que é humano, visto que a produção se dá em um nível intenso de hibridismo – “o capital fixo tende a ser implantado na vida mesmo, criando uma humanidade maquínica” (HARDT & NEGRI, 2017, p. 114). O tornar-se trabalho da vida é, usando um termo do capital, o processo de tornar-se capital fixo da própria vida e sociedade globais. Podemos

dizer que é o próprio movimento de subsunção real ao capital que coloca o capital fixo como autônomo. Para a composição de classe e para as lutas da multidão isso é importante visto que coloca, já na composição técnica da classe, uma hibridização radical com sua forma política, colocando o próprio trabalho vivo imediatamente em autonomia do capital.

Capital fixo, isto é, a memória e o estoque de trabalho físico e intelectual passado, é cada vez mais incorporado no ‘indivíduo social’, um conceito fascinante por seu próprio direito. À medida que o capital, neste processo, perde a capacidade de auto- realização, o indivíduo social ganha autonomia (HARDT & NEGRI, 2017, p. 114). A multidão, enquanto conceito de classe, se constitui também maquinicamente, de maneira ciborgue, através de sua relação com o capital fixo: “o maquínico aparece claramente nas subjetividades que emergem quando o capital fixo é reapropriado pelo poder do trabalho” (HARDT & NEGRI, 2017, p. 122). O humano não é concebido separadamente da natureza, ou do não humano; a multidão, enquanto conceito de classe determinado pela composição pós-fordista, é constituída conjuntamente com suas dimensões maquínicas: nesse sentido, a multidão é um conceito de classe pós-humano. Não há multidão que não através da absorção do e pelo capital fixo, através da fusão do trabalhador, das singularidades produtivas, com a ferramenta, com a máquina, “interna” e “externa”. Desse modo “o capital fixo é integrado aos corpos e mentes dos trabalhadores e se torna a sua segunda natureza” (HARDT & NEGRI, 2017, p. 119). Como vimos, é sempre a partir da segunda, da enésima natureza, que a potência produtiva do ser se abre: é aqui que a multidão pode aparecer, na artificialidade e no hibridismo entre humano e máquina – “através da resistência da luta da força de trabalho maquínica se desenvolve cada vez mais expressamente a demanda de uma produção do homem pelo homem, isto é, pela máquina vivente-homem” (NEGRI, 2015b, p. 70).

Esta reapropriação do capital fixo, esse fundir-se de homem e máquina, ontologia que dilui a divisão, afirmando um maquinismo ontológico, é simultaneamente a reivindicação de um humanismo. Não um humanismo do Homem, mas um humanismo da composição, da conexão entre os corpos e da abertura para suas potencialidades – “o maquínico constitui, portanto, eliminando toda ilusão metafísica, um humanismo do e no presente – um humanismo após a adoção crítica da declaração nietzschiana da ‘morte do homem79

(HARDT & NEGRI, 2017, p. 121). Na ontologia constituinte de Negri, composição e

79 Negri afirma a “morte do homem”, de Foucault, como uma declaração nietzschiana não apenas pelo seu tom

ou pela influência de Nietzsche no filósofo francês, mas por tomar a “morte de Deus”, do alemão, como sinônima. Por exemplo: “é aqui que a morte de Deus (ou a do homem) que o estruturalismo havia teorizado (e que não significa outra coisa a não ser o fim da metafísica) é transformada por Foucault em uma forte reivindicação do agir humano” (NEGRI, 2003a, p. 181). Segundo Revel (2007, p. 101-102), a equiparação entre “morte de Deus” e “morte do Homem” também é efetuada por Deleuze, provável influência de Negri neste tópico.

produção, imanentemente, não distinguem metafisicamente humano e não humano, Sujeito e objeto: só há humano de maneira ciborgue, só há subjetividade maquinicamente. Afirmar isso, em sua radicalidade, é a abertura de um humanismo da potência humana depois da morte do Homem, da artificialização, para além de qualquer humanismo essencialista.