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A memória, a autobiografia e outros caminhos

No documento A espetacularização do escritor (páginas 162-165)

As reflexões sobre a memória, o esquecimento, as lembranças têm relação direta com a ideia dos rastros deixados pelos indivíduos na sua constituição individual e eles podem estar ligados diretamente ao exercício autorreferencial sobre o qual recaem as escritas sobre o Eu.

Interessante retomar, ainda que brevemente, a noção do rastro atrelado ao esquecimento justamente porque ele está diretamente ligado à memória e à escrita. Para Jeanne-Marie Gagnebin:

Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão freqüentemente a imagem — o conceito — de rastro? Porque a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. (GAGNEBIN, 2006, p. 44)

A fragilidade da memória reside nessa relação que tem com o esquecimento e com as lembranças que, de uma forma ou de outra, são escolhas que culminarão na amplitude das imagens-lembranças potencializada pela linguagem. O discurso sobre o Eu que remonta ao passado é uma estratégia contra o esquecimento, sobretudo se pensarmos nas narrativas memorialísticas como uma luta “contra a mentira, mas sem cair em uma definição dogmática de verdade” (GAGNEBIN, 2006, p. 44).

E, com relação a tal linguagem, estou me referindo ao ato narrativo que também passa por um processo de rememoração e escolhas evocadas pela memória, como um exercício de pensamento que o escritor (ou indivíduo) desempenha no seu tempo presente e que retoma lembranças de um tempo passado, revivendo lugares, sensações e imagens.

Na supressão dos fatos arquivados na memória é que a lembrança se torna possível no presente, ou seja, há um deslocamento

do passado, ou de parte dele. As experiências são as que irão se interconectar na escrita memorialística, ou seja, “a tentativa de estabelecer as possíveis relações entre o vivido e o narrado nos permite afirmar que esse escritor, numa idade avançada, arroga para si o ofício de arquivista, retirando dos acontecimentos anteriores o conteúdo para a feitura do texto” (TAUFER, 2008, p. 5). Portanto, a memória é peça- chave para compreendermos de onde partem escritores que se dedicam às escritas de si.

A memória seria um impulso para a busca da construção de uma identidade autoral ou identidade própria haja vista que a narrativa de memória, por exemplo, evoca as “imagens-lembranças” sobre as quais Ecléa Bosi menciona em Memória e sociedade:

[...] a lembrança pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, traz à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento por via da memória. Sonho e poesia são, tantas vezes, feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo, a que Bergson não hesitará em dar o nome de “inconsciente”. A imagem-lembrança tem data certa: refere-se a uma situação definida, individualizada, ao passo que a memória-hábito já se incorporou às práticas do dia-a-dia. A memória-hábito parece fazer um só todo com a percepção do presente. (BOSI, 1994, p. 49, grifos da autora)

O trabalho de Ecléa Bosi, publicado em 1979, é interessante, sobretudo porque a pesquisadora recorre a Bergson e a Halbwachs, num livro provocador que reflete sobre a memória. As reflexões ali se baseiam em entrevistas realizadas com oito pessoas idosas (daí o subtítulo “lembranças de velhos”), com mais de setenta anos e que viveram a infância na cidade de São Paulo. O foco está na memória social de tais sujeitos que participaram, de uma forma ou de outra, da história da cidade, cuja memória é tida como “um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI, 1994, p. 39).

Em uma dimensão historiográfica, mas também singular, sobre a função social da memória, Bosi estabelece alguns pontos a partir de Bergson, por exemplo, para o qual a memória é também uma espécie de luta para fazer vir à tona aquilo que está ocultado pelo inconsciente, e que de fato é rememorado no embate entre o lembrar e o esquecer. De outro lado, a partir de Halbwachs e sua visão social sobre a memória, Bosi reitera que, mais do que reviver o passado tal qual pelas lembranças, o passado tem sua função social porque é reconstituído também nessa relação do Eu com o “outro”.

Se a memória conserva o passado ao mesmo tempo em que permite reconstituí-lo por meio da narrativa, por exemplo, é esse movimento de rememoração do vivido que rege a escrita memorialística. Para Taufer (2008) e para Bosi (1994), a experiência vai tornar-se condição essencial da escrita sobre si por meio das memórias, da escrita sobre si como resistente ao tempo, uma forma encontrada pelo escritor para constituir-se enquanto sujeito, como acontece em A menina do sobrado, de 1979, de Cyro dos Anjos.

A narrativa de Cyro dos Anjos e O espírito da prosa – uma autobiografia literária (2012), de Cristovão Tezza, estão presentes no corpus deste trabalho e nos permitem perceber que o processo de espetacularização do escritor não é um processo exclusivo da contemporaneidade. Ele foi se modificando ao longo do tempo.

A narrativa de Cyro dos Anjos apresenta-se como memórias ficcionalizadas de um intelectual, professor e escritor, cujas informações ali presentes reforçam e revelam a construção de uma imagem sobre a formação de si mesmo. A segunda, de Tezza, apresenta-se como uma autobiografia literária, presente no subtítulo, também de um intelectual, professor e escritor preocupado em fazer uma autoanálise sobre seu ofício, com uma linguagem mais acessível.

Distanciadas cronologicamente e inseridas em contextos de produção distintos e com linguagens distintas, ambos os autores, Cyro dos Anjos e Cristovão Tezza, manifestam suas preocupações com os rastros da memória numa busca pela autoafirmação de suas identidades, mas também por uma autoexibição de seus Eus pela linguagem. Ambos os discursos estão diretamente relacionados com o exercício da rememoração do passado que permite uma autoanálise do escritor por “ele mesmo”.

Ambas as narrativas permitem observar construções identitárias por meio de técnicas diferentes: Cyro dos Anjos muito mais rebuscado em sua linguagem, menos próximo do leitor e mais detalhista; Tezza é mais direto, mais coloquial, mais confessional, mais próximo de seu

leitor e faz uso de um discurso que carrega consigo a tendência sobre falar de si como escritor e como intelectual. São propostas literárias distintas, são estratégias distintas do que tenho chamado de espetacularização.

Sigo, então, com as reflexões sobre as memórias de Cyro dos Anjos para que possamos entender melhor seus aspectos relacionados a tal constituição de uma imagem autoral.

No documento A espetacularização do escritor (páginas 162-165)