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Memória, passado e esquecimento

No documento A espetacularização do escritor (páginas 153-162)

Memória e esquecimento caminham juntos e são as lembranças que preservam as experiências de vida. E em se tratando da literatura, e sem querer minimizar a complexidade dessas questões, a retomada do passado se dá por meio do texto literário, no diálogo da lembrança com o discurso, como aponta Dalva Lobo (2012, p. 116):

Lidar com a memória implica lidar com o esquecimento, sua contrapartida ou continuum, e, entre ambos – memória e esquecimento – se situam os fragmentos decorrentes da seleção feita pela memória e que se dilata nesse sem lugar entre memória e esquecimento como lembrança. Esta, ao trazer os dados do acervo memorial, aos quais atualiza, daí ser então a lembrança, essencialmente individual, pois mesmo que várias pessoas se lembrem de um evento, cada uma vai trazê-lo de acordo com sua percepção. [...] Memória, lembrança e o esquecimento estão dinamicamente conectados, sendo a lembrança e o esquecimento decorrentes da memória da qual emergem e para a qual retornam num ciclo que permite expandir o que chamamos de experiência e esse continuum tem a ver com a elasticidade dessa conexão não hierárquica e constantemente ressignificada

por novas experiências. (LOBO, 2012, p. 116)

A espetacularização do Eu é reflexo de uma necessidade pela autopreservação de uma imagem de si mesmo, ou seja, o escritor precisa ser lembrado, precisa permanecer para que não se perca nas malhas do tempo ou do ciberespaço. As narrativas autorreferenciais são narrativas de memória, são construções discursivas que evocam, como apontou Lobo, experiências esquecidas. Tais experiências são as que importam ao escritor para construir sua imagem e sua identidade.

No tocante à espetacularização do escritor de hoje, não podemos perder de vista sua relação com a memória uma vez que a autoexibição revela a necessidade do permanecer, do durar, do exibir-se para si e para o outro, numa busca por autopreservação de uma imagem identitária de si mesmo, reflexo de uma “sociedade excitada”, segundo Türcke (2010).

A relação entre a memória e o processo de autoexibição e autopreservação de uma imagem autoral, em suma, se dá por meio de uma retomada do passado, está na exploração das lembranças esquecidas que, agora, serão rememoradas na narrativa autorreferencial. As escritas sobre si instigam um leitor interessado cada vez mais pelas origens do Eu que escreve sobre si mesmo e que está por trás do discurso. Ao leitor de hoje pesam ainda as interferências dos paratextos, elementos que serão essenciais na constituição da persona do escritor e de sua imagem.

A noção do continuum entre memória e esquecimento recai sobre a ideia do fragmento da memória, uma vez que esta é constituída por vários “pedaços”: as lembranças. Elas são flashs, pedaços que o ato do rememorar completa por meio de contínuos movimentos verbais e não verbais, ou seja, a lembrança cognitiva se estende até nosso corpo e materializa-se por meio da escrita ou mesmo pelas “sensações corpóreas”, como aponta Lobo:

[...] a lembrança se estende ao corpo através dos suores, angústias, silêncios e outros elementos que antes estavam na virtualidade da memória. Graças à lembrança, podem ser reconfigurados entrelaçando passado, presente imediato e devir. Algo que escapa ao sentido cronológico de tempo e dilui a

distância entre o sujeito e a experiência, pois cada sensação é uma experiência única e seu espaço é o do aqui e agora da presentidade. (2012, p. 120)

A seleção da memória que conserva e preserva os indivíduos por meio das “imagens-lembranças” é uma “estrutura antropológica da condição histórica” (RICOEUR, 2010, p. 511), mas também é uma característica de cada um de nós. A recuperação do passado é indispensável e inevitável para a autorrepresentação.

A memória é a capacidade de reter, transmitir, (re)lembrar fatos e experiências de um passado para si mesmo ou para o outro por meio de suportes vários, orais ou escritos, por exemplo. Ela pode ser individual, referente a um Eu próprio, com suas particularidades e vivências, mas também pode ser coletiva porque o Eu está inserido em um grupo social.

Tais aspectos sobre a memória foram apresentados por Maurice Halbwachs (2006) em seus estudos. Neles, a memória vai além do individual uma vez que nossas memórias não são apenas nossas. Na verdade, elas são construções sociais cujas lembranças serão determinadas pelos grupos sociais, ou seja, a memória é também coletiva.

Assim, a memória coletiva está relacionada com aspectos gerais provenientes de um grupo social e relevantes a ele, como a memória histórica, por exemplo, ou memórias de um grupo de pessoas que são passadas de geração em geração. Ela também pode estar associada a objetos culturais preservados (materiais e imateriais) a exemplo de monumentos, bibliotecas, arquivos, obras de arte, acervos históricos e uma série de outros objetos que materializam o passado coletivo.

Para Halbwachs (2006, p. 71), as memórias individuais e coletivas estão intimamente ligadas às lembranças:

Se essas duas memórias se interpenetram com frequência, especialmente se a memória individual, para confirmar algumas de suas lembranças, para torná-las mais exatas, e até mesmo para preencher algumas de suas lacunas, pode se apoiar na memória coletiva, nela se deslocar e se confundir com ela em alguns momentos, nem por isso deixará de

seguir seu próprio caminho, e toda essa contribuição de fora é assimilada e progressivamente incorporada à sua substância. Por outro lado, a memória coletiva contém as memórias individuais, mas não se confunde com elas – evolui segundo suas leis e, se às vezes determinadas lembranças individuais também a invadem, estas mudam de aparência a partir do momento em que são substituídas em um conjunto que não é mais uma consciência pessoal.

As lembranças, por sua vez, são arquitetadas mediante um filtro que exclui certos eventos de nossas experiências de vida: as lacunas da memória. As lacunas não desestabilizam a ideia consciente de que a memória constitui parte da identidade dos indivíduos. O acúmulo de experiências ali armazenadas se acessa desde o presente. As experiências vividas e a noção de tempo estão intimamente ligadas e são percebidas no ato de rememoração, no acesso às lembranças.

Há um movimento cognitivo do passado que se estende ao presente (ou vice-versa), processo que Henry Bergson (2010) vai denominar “duração interior”. Tal processo é complexo, portanto, vamos pensá-lo aqui como sendo um movimento de acesso à memória e, consequentemente, às lembranças. É o mesmo processo de organização das informações “armazenadas” na memória que permite caracterizar o ato de narrar como tendo uma função objetiva de trazer as lembranças à tona ao mesmo tempo que carrega consigo uma função social:

Se entendermos esse processo de duração interior, de acordo com o que nos revela Bergson, como sendo um exercício de memória estendido até o presente, podemos pressupor que o mesmo processo também possua a capacidade de organizar os vestígios dessa memória a cada releitura que dela se fizer. Tal organização das lembranças nos permite afirmar que o ato de narrar, além de comportar uma função objetiva, caracteriza- se por abarcar uma “função social” (LE GOFF, 2003, p. 421). Entendemos que tal

função ocorreria em razão de a comunicação ser essencialmente a transmissão de um acontecimento a outrem. Como destaca Maurice Blanchot, “as lembranças são necessárias para serem esquecidas” (1987, p. 83). Para que, durante esse período de esquecimento, no silêncio de uma profunda metamorfose, uma palavra ou uma lembrança nasçam. (TAUFER, 2008, p. 3)

As memórias narradas teriam a preocupação em transmitir ao outro as experiências desveladas e potencializadas pela escrita em um processo de preservação de uma imagem sobre si mesmo ou um exercício de autorreconhecimento por meio das lembranças.

Os processos de escrita sobre o Eu, presentes nas memórias, nas autoficções e em outros gêneros relacionados aos gêneros autorreferenciais podem estar relacionados a vários fatores que mobilizam os escritores, carregando com eles a estratégia de revelarem seus Eus que serão “descobertos” pelo leitor. E as lacunas da memória serão preenchidas também no ato da escrita.

Para Arfuch (2010, p. 112), “enquanto dimensão configurativa de toda experiência, a narrativa, que ‘outorga forma ao que é informe’, adquire relevância filosófica ao postular uma relação possível entre o tempo do mundo da vida, o tempo do relato e o tempo da leitura”. A memória “informe” ganha uma dimensão mais palpável no tempo do relato e seus fragmentos são organizados também no ato da leitura.

A memória, então, é fundamental na constituição da identidade dos indivíduos, na imagem que se tem sobre si mesmo. Em Matéria e memória, publicado pela primeira vez em 1896, Henri Bergson faz importantes reflexões sobre a relação da memória com as imagens e, ainda que ele esteja focando mais sobre a imagem audiovisual, eu a trago aqui pensando na construção da imagem sobre si mesmo.

Bergson afirma: “chamo matéria ao conjunto de imagens, e percepção da matéria a essas mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu corpo” (BERGSON, 2010, p. 40, tradução minha)82. Ele está pensando também na memória como agente no processo de criação das subjetividades dos indivíduos

82

"llamo materia al conjunto de las imágenes, y percepción de la materia a esas mismas imágenes relacionadas a la acción posible de una cierta imagen determinada, mi cuerpo"

relacionada com a sua identidade e, logo, com a maneira pela qual esse indivíduo se percebe no mundo e se expressa nele.

O corpo como imagem é um dos fatores da subjetividade e da relação que temos com o mundo empírico. Considerar o corpo relacionado com a matéria, com as imagens sobre as quais Bergson fala, é considerar também que as imagens que nos cercam estão conectadas com a memória que se constitui também por outras imagens. O acesso às imagens é que rege todo o processo de memória, o que ele vai denominar “imagens-lembranças”.

Na recuperação das imagens se estreita o contágio entre o passado e o presente, e as fronteiras do tempo se diluem. As “imagens- lembranças” fazem parte de um processo cognitivo, “sígnico”, cujo movimento resgata aos pedaços as imagens do passado que foram armazenadas como memória e que são expressas por meio da linguagem. Há, de fato, uma necessidade de remontar ações passadas e percepções do mundo que nos rodeia, um mundo esquecido.

Nesse sentido, Paul Ricoeur relaciona a noção de imagem com a lembrança e vai relacioná-la com a imaginação:

Ora, se a lembrança é uma imagem nesse sentido, ela comporta uma dimensão posicional que a aproxima, desse ponto de vista, da percepção. Em outra linguagem, que eu adoto, falaremos do tendo-sido do passado lembrado, último referente da lembrança em ato. Passará, então, para o primeiro plano, do ponto de vista fenomenológico, a divisão entre o irreal e o real (seja ele presente, passado ou futuro). Enquanto a imaginação pode jogar com entidades fictícias, quando ela não representa o real, mas se exila dele, a lembrança coloca as coisas do passado. (RICOEUR, 2010, p. 64)

Ricoeur tornou-se uma referência nos estudos da memória e, embora ele tenha uma abordagem mais histórica sobre o tema, não deixa de ser importante trazê-lo aqui para que se entenda melhor a relação da lembrança com o esquecimento.

O pensador francês recorre a algumas ideias de Bergson, de Halbswachs e de Freud em suas argumentações, como em A memória, a história, o esquecimento (2000). Nesse estudo, a memória é tomada

como uma força da história, como uma “apologia da memória como matriz da história, na medida em que ela continua sendo a guardiã da problemática da relação representativa do presente com o passado” (RICOEUR, 2010, p. 100).

Quero focar no esquecimento, no silêncio que evocará a palavra, porque ele tem relação direta com a lembrança e com a memória no que se refere ao ato de narrar e a sua função social, como Ricoeur tratou em Tempo e narrativa83. O passado é a presença ausente representado e resgatado pela memória, e o esquecimento seria um desafio à veracidade ou confiabilidade da memória porque ela representa um passado fiel, vivido e experienciado. Mas a memória também é falha, não há como negar.

A relação da memória com as narrativas sobre o Eu, presente dentro e fora da Rede, como tenho reiterado, revela a preocupação que se tem com o não esquecimento, com o permanecer presente e em evidência, com o “ser percebido”..

Sobre a efemeridade dos meios digitais há de se considerar que o ciberespaço pode dar a falsa sensação de uma eternidade da memória e das lembranças pelo seu pretenso caráter de infinitude, quando, na verdade, a sua natureza efêmera faz cair por terra toda ideia de autopreservação ad infinitum.

Reside aí o paradoxo da memória e do esquecimento quando pensamos nos ambientes digitais, assim como também é um paradoxo a própria relação entre memória e esquecimento: “a imbricação do esquecimento com a memória explica o silêncio das neurociências em relação à experiência tão inquietante e ambivalente do esquecimento comum” (RICOEUR, 2010, p. 435).

É interessante observar que Ricoeur fala sobre o esquecimento também como um “apagamento dos rastros”:

Admito que, a título originário, o próprio das afecções é sobreviver, persistir, permanecer, durar, conservando a marca da ausência e da distância, cujo princípio buscamos em vão no plano dos rastros corticais; nesse sentido, essas inscrições-afecções conteriam o segredo do enigma do rastro mnemônico:

83

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Os três volumes são assim identificados: I — A intriga e a narrativa histórica; II — A configuração do tempo na narrativa de ficção; e III — O tempo narrado.

seriam o depositário da significação mais dissimulada, embora mais originária, do verbo “permanecer”, sinônimo de “durar”. (RICOEUR, 2010, p. 436)

A ideia do apagamento dos rastros também está associada aos meios digitais no sentido em que, numa época em que muito se publica e muito se expõe, na Rede, é difícil apagar rastros de um Eu imerso no mundo mediático porque muito se publica, se duplica, se republica, assim como também se altera e se degrada. A proliferação de informações também constitui um possível apagamento de rastros, como a camuflagem numa floresta. Algumas de nossas ações cotidianas estão diretamente ligadas a tal ambiente, seja por perfis sociais, seja por meio de contas de imeio, por exemplo, o que torna mais difícil ainda as tentativas de apagamento dos rastros.

Um dos sintomas, facilmente detectável, do esquecimento na internete é o caso dos programas antigos que não são mais executáveis ou das páginas não mais disponíveis. Na internete, o esquecimento é mais do que uma possibilidade: ele é uma certeza84.

Tzvetan Todorov em Los abusos de la memoria (2000) também vai tratar da memória e de sua relação com o esquecimento. Todorov atenta para que os abusos da memória estão relacionados aos povos no geral, às comunidades e às representações que se faz de si com relação a outrem:

En primer lugar hay que recordar algo evidente: que la memoria no se opone en absoluto al olvido. Los dos términos para

84

Há discussões interessantes sobre esse tema da impossibilidade do esquecimento na internete porque ali estão presentes traços e rastros que a própria rede armazena, ainda que anonimamente, e que gera questões jurídicas sobre direitos dos usuários. Uma vez inseridos nesses meios, os usuários podem estar vulneráveis a uma total e indiscriminada exibição de sua intimidade. Tais questões envolvem gigantes do setor como Google, Yahoo, YouTube e, atualmente, cada vez mais se discute políticas reguladoras das práticas dos usuários de ferramentas digitais e redes sociais, um território ainda anárquico. Ver: CANO, Lorena. El derecho al olvido y a la intimidad en Internet. Madrid: Los lobros de la Catarata, 2014.; SCOTT, Mark. “Países europeus devem divergir sobre 'direito ao esquecimento' na internet”. Folha de São Paulo, 15/05/2014. Disponível em: <http://goo.gl/z8Ks2T>. Acesso em: 03 jul. 2015.

contrastar la supresión (el olvido) y la conservación; la memoria, es, en todo momento y necesariamente, una interacción de ambos. El restablecimiento integral del pasado es algo por supuesto imposible (pero que Borges imaginó en su historia de Funes el memorioso) y, por otra parte, espantoso; la memoria, como tal, es forzosamente una selección: algunos rasgos del suceso serán conservados, otros inmediata o progresivamente marginados, y luego olvidados. Por ello resulta profundamente desconcertante cuando se oye llamar "memoria" a la capacidad que tienen los ordenadores para conservar la información: a esta última operación le falta un rasgo constitutivo de la memoria, esto es, la selección. (TODOROV, 2000, p. 3)

A memória é o ponto de referência para a revitalização de si ou mesmo para um processo de rememoração do passado, das “imagens- lembranças” retomadas por meio da narrativa. Nesse viés, os gêneros autorreferenciais como a autoficção, a autobiografia, as memórias são considerados não apenas atrelados a um recurso discursivo ou técnico, mas também são fundamento essencial para a criação literária e, claro, para as narrativas sobre o Eu.

Nesse sentido, um dos caminhos para tratar da literatura brasileira contemporânea é atentar para as escritas sobre o Eu, tanto na ficção quanto na não ficção. Elas têm ganhado força no cenário atual, ou seja, falar sobre si e a espetacularização do sujeito configura uma tendência. Para Klinger (2012, p. 18), “o avanço da cultura mediática de fim de século oferece um cenário privilegiado para a afirmação dessa tendência. Nela se produz uma crescente visibilidade do privado, uma espetacularização da intimidade e a exploração da lógica da celebridade, que se manifesta numa ênfase tal do autobiográfico”.

As narrativas sobre o Eu são espaços de autorrepresentação e autoexposição de uma imagem ou persona que está no limiar entre factual e ficcional, entre a imaginação e a memória: “a imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico; a outra, a da memória, voltada para a realidade anterior, a anterioridade que

constitui a marca temporal por excelência da ‘coisa lembrada’, do ‘lembrado’ como tal” (RICOEUR, 2010, p. 26).

No documento A espetacularização do escritor (páginas 153-162)