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Quando falamos em identidade étnica das comunidades afro-brasileiras

torna-se claro uma apropriação da memória coletiva para se construir este ser afro-brasileiro. A negritude que se expressa na resistência aos vícios oriundos da colonização às populações negras, nos grupos da diáspora1 é construída a partir

da memória dos antepassados. Estes fazem parte do mundo dos povos africanos. Por exemplo, para os povos bantu os antepassados fundamentam a compreensão religiosa.

“A pratica religiosa tem como objetivo principal atender os antepassados, manter viva a sua presença e conseguir os seus serviços pela sua reciprocidade. Os antepassados são ascendentes familiares clânicos que desempenham a função protetora dos descendentes vivos. Eles esperam dos descendentes a lembrança pela oferta de sacrifícios em sua honra e memória (...) Ao se tocar no antepassado, toca-se em todo sistema social, moral e espiritual (...) Os mais velhos da aldeia são os

1Por diáspora entendemos a dispersão dos povos judeus por motivos religiosos ou políticos (Ferreira, 1999, p. 677). Para Stuart Hall, este termo também tem sentido para as populações africanas escravizadas em outros países e seus descendentes por causa da experiência de sofrimento e exílio sofrida de maneira análoga pelos dois povos (2003, p. 417).

que estão mais próximos dos antepassados e por isso exercem a função de mediador entre eles e os vivos (Oliveira, 2003, p. 156)

Estar ligado aos antepassados não significa estar parado no tempo, como se as coisas tivessem de ser preservadas por si. Mas, querer reverenciá-los com a sabedoria que nos foi transmitida por seus atos. As sociedades primitivas, de origem dos povos afro-brasileiros, não apresentam paralisia em suas culturas, mas uma elasticidade e dinamismo, favorecendo assim uma constante elaboração das tradições (Bacelar, 1989, p. 35). O regresso aos antepassados pertence ä dinâmica da revolução, uma vez que muitas experiências revolucionárias se beneficiaram deste regresso para constituir novas iniciativas. “Os indivíduos que compõem uma sociedade sentem quase sempre a necessidade de ter antepassados” (Le Goff, 1994, p. 213). Portanto, lembrar-se dos antepassados e tê-los na memória por meio de atos públicos, é muito comprometedor. Exige uma atitude de continuidade de um ato realizado antes de nós, não de forma fria mas, consciente de sua eficácia. No caso dos povos afro-descendentes, possuir uma reverencia aos antepassados significa reverenciar sua coragem, luta, e resistência diante das atrocidades cometidas contra o seu povo.

A reconstrução da história das populações negras neste país deve passar de geração em geração criando outras histórias, “cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxado por outros dedos” (Bosi, 1987, p. 48). Portanto,

“O presente (...) está atrelado ao passado. Não a um passado físico, mas a um passado memorial, dos feitos criadores, dos heróis, e do inicio dos tempos. Esta memória é reinventada no cotidiano para que todos possam caminhar conforme os ensinamentos, as regras de conduta e os

valores individuais e sociais que regem a sociedade” (Munduruku, 2000, p. 32).

Ao construir sua identidade, as populações afro-descendentes se apropriam da memória de seus antepassados para atualizarem em suas lutas as suas experiências passadas. “A memória do passado remete ao presente, ao imediato e ao cotidiano para se projetarem na construção do futuro, que devemos advogar em favor” (Munanga, 2004, p. 9) das conquistas desejadas para os povos afro- descendentes e para toda a população marginalizada. Nas culturas africanas de Moçambique, por exemplo, “a pessoa não é consistente sem se referir ao passado” (Langa apud Oliveira, 2002, p. 51). A mitologia angolana, por sua vez, tem em sua composição uns seres monstruosos com duas cabeças denominados de Di-kishi. Foram inclusos na lista mitológica desta cultura pelo pastor Héli Chatelain, suíço, em 1894. Segundo Pereira e Gomes, estes seres lembram o deus romano Jano, presente nas efígies monetárias apresentando duas faces. Isto favorecia à divindade, segundo as tradições devocionais, ter alcance visual tanto do passado como do futuro. A relação feita entre os seres da mitologia angolana e a divindade romana nos permite admitir que “o eixo de sua identidade é plural, pois neles a identidade sobrevive de identidades simultâneas: Eu e Outro, vivo e morto, dentro e fora, casa e cidade, passado e futuro são realidades e possibilidades da realidade” (2000, p. 44). Isto ainda nos facilita pensar que a realidade de construção da memória coletiva serve-se do presente e do passado para projetar,neste caso, as comunidades afro-brasileiras na elaboração de sua identidade para a realização de sua cidadania.

A memória coletiva é encarregada de determinar o pensamento e a ação impulsionando os atores sociais, no caso os afro-descendentes, a reproduzirem de forma nova o comportamento dos antepassados que resultou em conquista. É necessário valer-se da experiência do passado que deu certo e que ficou conservada. “A memória é essa reserva crescente a cada instante e que dispõe da totalidade da nossa experiência adquirida” (Bosi, 1987, p. 9) . A memória utilizada pelos afro-descendentes para a formação de sua identidade não é um culto saudosista do passado. Mas, é construída para reforçar os laços com os antepassados e aumentar a auto-estima das populações, uma vez que ressalta os feitos grandiosos de povos e personagens conhecidas da tradição. Na tradição africana a atualização da memória se dá de diversas formas e uma delas é com a participação dos griots. Os griots são “trovadores, menestréis, contadores de histórias e animadores públicos para os quais a disciplina da verdade perde rigidez, sendo-lhe facultada uma linguagem mais livre” (Hernandez, 2005, p. 30). Para Nei Lopes, os griots estão presentes em várias partes da África recebendo diversos nomes2, porém com a mesma função que é guardar e transmitir adequadamente a memória de determinado povo (Lopes, 2005).

A conservação da memória na cultura africana também está na valorização da tradição oral. Esta se expressa na “metodologia da coleta, transmissão e interpretação das informações obtidas, constituindo-se uma fonte de reconhecida relevância para a reconstrução histórica de civilizações predominantemente orais”

2 Estão presentes, sobretudo nos palácios para contar e cantar a história dos nobres, para quem estão a serviço, principalmente nos locais onde floresceram grandes impérios medievais (Gana, Mali, Songai, etc.), recebendo nomes variados: dyéli ou diali, entre os Bambaras e Mandingas; guésséré, entre os Saracolês; wambabé, entre

(Hernandez, 2005, p. 26-28). Entretanto, a cultura oral não é a única forma de se manter memória coletiva dos povos africanos. A memória é mantida e transmitida pela vivência, o que envolve todas as áreas da vida cotidiana (religião, conhecimento, ciência da natureza, iniciação de oficio, divertimento e recreação) (Lopes, 2005).

Nas suas realidades fora da África os povos africanos aprenderam a continuar mantendo sua cultura oral. Principalmente através da religião dos Orixás, a tradição oral continuou de pé. Isto porque “o elemento da fé ou do ser religioso, desde o seu nascedouro, traz a marca do humano e do cultural. O elemento religioso (...) participa da construção de identidades culturais (Reimer, 2004, p. 9). No Brasil esta tradição foi mantida e recriada. Um exemplo desta constatação é o depoimento de uma senhora, de nome Bilina apresentada por Beatriz Góes Dantas (1988), onde a mesma fala sobre os povos da África como aprendeu de sua avó. Ela assim se expressa :

“Lá eles trabalhavam. Era povo de dinheiro. Trabalhava até com os filhos nas costas, trabalhando fazendo dinheiro. Não era povo de se encostar. Tudo velhinho, mas trabalhando. Não vê a gente com a enxada? É pra ensinar tudo a trabalhar. A tudo pra não pedir esmola. [...] Ensinar dos pequenos aos maior [...] Porque os africanos sabia trabalhar foi que desceram pro Brasil no cativeiro [...]” (p. 76).

A memória da resistência se dá quando na atualidade as comunidades afro- brasileiras, com suas histórias, mesmo que orais, retiram força para a resistência

os Peúles; Aouloubé, entre os Tuculeres e guéwel (do árabe qwwal); Arotim, na Nigéria e outros (Lopes, 2005).

diante das realidades de discriminação racial. As comunidades afro-brasileiras querendo atualizar a sua memória e passando por problemas de discriminação semelhantes aos dos seus antepassados devem tomar aqueles fatos históricos e heróicos e repeti-los a partir de sua realidade. Isto é, claro que não é uma repetição cega, como veremos mais adiante, mas uma repetição onde os gestos atuais lembram aqueles do passado. Quando se procura resgatar a identidade de resistência dos antepassados da cultura afro-brasileira, na verdade, se está buscando aqueles elementos que os mantiveram na luta contra a discriminação racial. São eles: o zelo cultural, que se manifestava numa saudade da terra-mãe, a África, fazendo com que na nova terra sua cultura fosse recriada; a solidariedade étnica, que motivava negros escravos de diferentes etnias a se juntarem para lutarem por uma causa comum como veremos mais adiante; a garantia de sobrevivência que era perceptível nas fugas e assassinatos de senhores de engenho e feitores e ainda, o descontentamento com a escravidão e a discriminação racial que faziam com que o negro pressionado por tal atrocidade não se acomodasse.

Os negros e negras escravizadas tinham que canalizar a dor e o sofrimento para algum objeto. E os senhores de escravos sabiam disso e tinham medo. Os escravos devolviam a violência que recebiam como resistência agindo com ódio. Este ódio era direcionado para os outros negros, contra os índios que eram caçados por estes grupos de escravos a mando de seus senhores, contra estrangeiros, inimigos da pátria, nas batalhas. “É dessa maneira que o negro surge em todas as revoltas civis, nas guerras dos Paulistas contra os Emboadas, nas guerras da independência nacional, na luta dos partidos no império, entre

monarquistas e republicanos ou nas rivalidades dos homens políticos entre si” (Bastide, 1985, p. 114-115).

Esta herança deixada pelos antepassados africanos e africanas é a garantia da continuidade da resistência afro-brasileira para a construção de sua cidadania. Sem este referencial a negritude perde sua razão de ser. Sua identidade se ofusca e perdem-se os referenciais para sua possível reconstrução. Porém, “o futuro não se constrói unicamente resgatando a memória. A continuação do inacabável processo de [cidadania] efetuar-se-á tanto em pequenas ações individuais e concretas, como em momentos emblemáticos de mobilização (e de comunhão) coletivas (...)” (Rossiaud, 2000, p. 277). É por este caminho que transita a formação da identidade afro-brasileira se desejar valer-se da memória coletiva dos antepassados.

1.4 A construção da cidadania afro-brasileira por meio do imaginário coletivo