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A presença islâmica em terras de Santa Cruz não se deu de forma pura e nem podia sê-lo, uma vez que teve que sofrer adaptações entre os seus adeptos escravizados que também não dispunham de tempo livre para as suas obrigações religiosas. No Brasil os povos muçulmanos procedentes da África tiveram que reinventar sua cultura de fé. Se na África o islamismo negro já era diferente do originário na Arábia, no Brasil sofreu outras sérias influências, recebendo nomes de “religião dos alufás”, e culto “mussurumim” ou “malê” – nomes estes que

genericamente tornavam os negros islamizados conhecidos. Sempre que lhes permitiam suas condições de vida, os preceitos islâmicos eram observados. Isto comprova uma adaptação das práticas islâmicas ao novo mundo hostil, intolerante e por isso, discriminatório. Daí podemos confirmar a idéia de que

“as condutas culturais são constantemente elaboradas e reelaboradas, são múltiplas as metamorfoses da cultura porque as condições históricas e sociais de produção e re-produção culturais são extremamente diversificadas. O que significa, também, que não há produções (...) religiosas e sociais que não sofram constantemente novas simbolizações e novas práticas sociais” (Lobo, 2001, p.22 ).

Esta referência teórica pode nos remeter às realidades islâmicas vivida pelos negros e negras islamizados, uma vez que os mesmos tiveram que se adaptar às exigências decorridas da posição social que ocupavam. Mesmo assim, encontravam espaço para a realização de suas práticas religiosas. Segundo João José Reis, os malês, na tentativa de reorganização de sua vida religiosa em terras estranhas,

“procuraram (...) guardar seus hábitos alimentares e celebrar com ceias as datas relevantes do calendário muçulmano (...) As ceias funcionavam como cerimônias comunitárias, expressão de solidariedade e identidade grupais. Além de comunhão na fé, o repasto ritual alimentava projetos de independência e rebeldia” (Reis, 2003, p. 232).

Na África, os povos islâmicos tinham postura de pessoas importantes, considerando-se muitas vezes superioras às outras que pertenciam às religiões tradicionais. No Brasil eles não se portaram de maneira diferente. A informação

que temos é de que os negros islâmicos consideravam o título de malê como algo honroso e de prestígio. E que o modo arrogante como se comportavam fazia parte do estilo de demonstrar poder nas relações cotidianas, provocando acirramento dos ânimos entre os próprios malês e os demais africanos. Fazer “opção pelo Islã, ser malê representava a melhor forma de vencer ou pelo menos desafiar, aqui ou no outro mundo, o senhor branco” (Reis, 2003, p. 249). Ser islâmico era por natureza, uma afronta ao sistema de escravidão que era predominantemente católico.

Sobre os povos islâmicos que para cá foram trazidos interessa-nos a referência sobre a revolta dos malês, pois sua forte caracterização religiosa, envolve ainda aspectos de ordem políticos e étnicos. Isto também para mostrar que a religião islâmica possui uma grande relação da vida com a fé.

A palavra malê vem do iorubá imalé, ou fon, que significa muçulmano (Monteiro, 1987, p.19). Portanto, malês eram os seguidores da religião muçulmana, também conhecida por Islã, fossem eles escravos ou negros libertos, africanos ou brasileiros, provenientes de qualquer parte de África. Pode-se ainda, afirmar que a palavra malê não designa nenhum povo ou nação, mas um conjunto de pessoas, de diversas origens étnicas, que seguiam a religião islâmica. Havia entre os malês, uma predominância de iorubás ou nagôs, vindos da África Ocidental, principalmente da Nigéria “que foram os negros fulos que comumente se chamou de filamim, e os tapas, mas foram os hauçás que se destacaram nas grande revoltas, embora a luta incluísse grupos de raças nagô, jeje, minas, benim, mundubi, calabar, fulas e de tantas outras de menor densidade” (Monteiro, 1987, p. 20).

A escravidão havia tirado destes povos o que possuíam de mais essencial: a liberdade de expressão. Os escravos tinham, muitas vezes, que inventar uma prática externa para satisfazer a sociedade à qual estavam acorrentados. O que sabemos de alguns muçulmanos é que externamente eram católicos, mas internamente, eram da religião de Alah, inclusive, sendo batizados e trazendo nomes do calendário cristão (Moura, apud Lopes, 1988, p.49).

Mas, mesmo com a tentativa de se fazer esquecer a cultura negra islâmica, ficou como que impregnado nas expressões culturais dos afro-descendentes a marca de um povo que religiosa e culturalmente marcou a face deste país, como por exemplo,

“(...) o hábito de portar orações escritas encerradas em breves e escapulários para evitar o mal: o uso de anéis de metal branco (alumínio, etc.) que inclusive eram um distintivo dos revoltosos de 1835; certas crenças ligadas à água (“água não se nega a ninguém”) e ao vento (“cuidado que pode dar um vento” ); o turbante e as chinelas de ponta virada do traje de “baiana de beca”, talvez outras manifestações da iconografia popular em que a lua crescente aparece com freqüência; talvez alguns rituais do “chamado candomblé”; o “arroz de haussá” da culinária baiana; a s expressões fula e mandinga” (Lopes, 1988, 72).

As populações dos afro-descendentes que sofrem discriminações sociais e raciais podem encontrar nos povos Malês pistas de indicação para ousarem e criarem uma identidade forte capaz de forjarem alternativas às realidades de exclusão. A religião muçulmana como patrimônio cultural dos povos africanos aqui escravizados apresenta forte potencial de resistência e de organização social. Isto por que, os escravos

“corriam para o Islã em busca de conforto espiritual e esperança. Precisavam disso para pôr alguma ordem e dignidade em suas vidas (...) os textos corânicos os atraíam pela simpatia ali encontrada em relação ao homem discriminado, exilado, perseguido e escravizado. Eram textos protetores, textos libertadores (...) O Islamismo (...) foi e continua a ser uma religião atraente para os subalternos sociais devido à mensagem fortemente crítica das injustiças sofridas pelos que o seguem” (Reis, 2003, p. 237).

Por isso, populações negras muçulmanas, em terras brasileiras, nos ensinam a organização social aproveitando o nosso potencial cultural usando-o a favor da resistência contra a discriminação racial. O ICSB pratica esta postura quando, na tentativa de resgate da cultura africana, procura ler e interpretar a contribuição crítica destes povos à luz da cultua afro-brasileira. Se o Islamismo com sua proposta crítica frente às realidades provoca a resistência e a luta, na atualidade os grupos de consciência negra e de busca da cidadania devem procurar nesta experiência a força da memória revolucionária para a reconstrução da identidade afro-brasileira na luta contra a discriminação racial.