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4 AO ABRIGO DA MEMÓRIA

4.1 A memória discursiva

Para a memória discursiva, consideramos as noções de Courtine (2009), Pêcheux (1999) e Charaudeau (2004). O conceito de memória discursiva foi cunhado por Jean-Jacques Courtine, em 1981, inspirado nos trabalhos de Michel Foucault. Em sua formulação, “A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos” (COURTINE, 2009, 105-106, grifo do autor). É a memória discursiva que faz reproduzir, em certa conjuntura ideológica, a posição a ser tomada, a palavra a ser dita ou escrita, considerando nossas lembranças e como elas vêm em nossa memória.

Courtine (2009) diz que a memória discursiva objetiva o que Foucault (1971 apud COURTINE, 2009) pensa a respeito dos textos religiosos, jurídicos, literários, científicos, isto é, discursos que dão origem a determinado número de novos atos, de palavras que os retomam, os transformam ou falam deles, enfim, discursos que, para além de sua formulação, são ditos, mantém-se ditos e estão ainda a dizer. Segundo Courtine (2009), toda produção discursiva realizada nas condições determinadas de uma conjuntura faz circular formulações anteriores, formulações já enunciadas.

Para o autor, a relação entre memória e discurso apresenta-se em dois caminhos, segundo ele, obrigatórios, distintos, porém indissociáveis: a Repetição e a Comemoração. A memória discursiva, segundo Courtine (2009), tomará a forma da Repetição, pois é necessário considerar todas as formas de discursos relatados, através dos quais se materializam as Remissões, sobretudo a Citação e a Relação ao texto primeiro, e as “formulações origem” do domínio de memória. O Visconde de Ouro Preto, por exemplo, utiliza Citações e Remissões, mediante as quais as formulações-origem (da Comunidade Discursiva Monarquista) derivam de um trajeto, ao longo do qual elas se transformam, desaparecendo para reaparecer mais adiante, ou então desaparecem pouco a pouco.

A Comemoração, apresentada nos rituais verbais, gera um recorte no tempo, agregando o tempo da enunciação ao domínio da memória em uma anulação imaginária do processo histórico, em sua duração e suas contradições. Courtine (2009) ressalta que essa relação imaginária com o tempo encontra seu recorte no calendário, e o aniversário é a única

escansão conhecida nesse efeito de memória particular instaurado pela repetição de um momento primeiro. Para Courtine (2009, p. 240, grifo do autor), “a memória discursiva constrói [...] a ficção de uma história imóvel, funciona como cristalização do tempo histórico, no qual se forma a discursividade.” Portanto, Courtine (2009) relaciona a memória discursiva à História.

Outro estudioso que também abordou esse conceito foi Michel Pêcheux (1999). Ele refere-se à memória discursiva como uma estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição, assim como Courtine (2009), e da regularização. Para Pêcheux (1999):

a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. (PÊCHEUX, 1999, p. 52, grifo nosso).

Nessa perspectiva, Pêcheux (1999) considera que os implícitos residiriam na memória discursiva, isto é, para que o sujeito tenha pleno entendimento de determinado enunciado, é preciso que, anteriormente, o implícito tenha existido em algum lugar como discurso, funcionando como uma construção anterior, a qual é resgatada pela memória discursiva. Essa sequência discursiva constitui-se de um ou mais discursos vindos de outros lugares. A memória discursiva para Pêcheux (1999), portanto, não compreende o sentido psicológico da Memória Individual, mas uma memória no nível discursivo. As noções de “pré-construído” e de “discursos transversos” reportam ao que seriam os “implícitos”. Para interpretar importam também os implícitos, pois contribuem para gerar efeitos de sentido. A memória discursiva também é o lugar discursivo ideológico do qual o sujeito enuncia, desencadeando a interpretação.

Entretanto, Pierre Achard (1999), citado por Pêcheux, introduz o termo “regularização”, no qual residiriam os implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase. Segundo Pêcheux (1999):

[...] uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra- discursos. (PÊCHEUX, 1999, p. 56, grifo nosso).

Ao dissertar sobre a Memória, no artigo Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual, Charaudeau (2004) observa que a normalização dos comportamentos, do sentido e das formas é construída conjuntamente e que o sujeito registra- os em sua memória. Em sua Teoria Semiolinguística, objetivando chegar aos sentidos implícitos dos atos de linguagem, considera a memória enquanto saberes partilhados, pela linguagem em suas dimensões cognitiva, social, psicossocial e semiótica. Para isso, o autor precede do ato de linguagem percebido como “[...] um conjunto de atos significadores que falam o mundo através das condições e da própria instância de sua transmissão” (CHARAUDEAU, 2008a, p. 20, grifo do autor), mundo este que se faz por meio da estratégia humana da significação. Em decorrência disso, o autor parte da hipótese de que há no sujeito três memórias que atestam cada uma das maneiras das quais se constituem as comunidades discursivas, comunidades comunicacionais e comunidades semiológicas.

A memória discursiva, no conceito apresentado por Charaudeau (2004), é composta de três níveis: a memória dos discursos, a memória das situações de comunicação e a memória das formas de signos. Com respeito à memória discursiva, adotaremos a abordagem de Charaudeau (2004) que sugere uma memória dentro de um espaço textual por meio das retomadas marcadas pelas anáforas, conectivos, tempos verbais e pressuposições por valores de crença e de conhecimento. Para essa teoria, consideraremos as retomadas que o Visconde realiza em seu Manifesto, sobretudo porque o texto foi reeditado no livro Advento da Dictadura Militar no Brazil, em 1891, sendo incorporado de artigos de jornais, o que demarca uma memória discursiva em seu Manifesto pela sua relação com outros discursos. Utilizaremos, ao mesmo tempo, outros aportes teóricos no interior da AD, como as formulações de Pêcheux (1997, 1999) e Orlandi (1993, 2001), assim como no interior dos estudos sobre memória com Paul Connerton (1999) e Maurice Halbwachs (2006).