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2 PELAS VIAS DO DISCURSO

2.1 O processo de semiotização do mundo

O processo de semiotização do mundo, ou a construção do sentido sob a ação de um sujeito, efetiva-se por meio de duplo processo: o de Transformação e o de Transação. Tais processos são assim representados:

Figura 6 – Diagrama do processo de semiotização do mundo

Fonte: CHARAUDEAU, 2005.

O processo de Transformação parte de um “mundo a significar” e se transforma em um “mundo significado” sob a ação de um sujeito falante. Nesse processo, o sujeito realiza quatro operações em relação aos seres ou fenômenos do mundo: a de conceituação e nomeação (identificação), a de descrição (qualificação), a de narrativa (ação) e a de causalidade (causação).

Já o processo de Transação faz deste “mundo significado” um objeto de troca entre o sujeito falante e o sujeito falante-destinatário, isto é, compreende o processo de interlocução entre os sujeitos. Essa interlocução efetua-se em quatro princípios: o de Alteridade, para o qual todo ato de linguagem é um fenômeno de troca entre dois parceiros; o

de Pertinência, em que os parceiros devem reconhecer a relevância do ato de linguagem; o de Influência, o qual pressupõe o objetivo do sujeito produtor em atingir seu parceiro, o receptor- interpretante; e o de Regulação, quando os parceiros recorrem à regulação do jogo de influências para assegurar uma intercompreensão mínima, evitando uma incompreensão na troca verbal.

Charaudeau (2005) compreende que o processo de Transformação e o processo de Transação realizam-se de modos distintos, embora o primeiro seja subordinado ao segundo, pois compete ao sujeito realizar todo o processo de semiotização do mundo. A hierarquização dos processos conduz o autor a completar o esquema precedente:

Figura 7 – Diagrama do processo de semiotização do mundo – Hierarquização dos processos

Fonte: CHARAUDEAU, 2005.

Agora, vejamos esse processo aplicado ao objeto da pesquisa.

2.1.1 Semiotização: ângulos e olhares sobre a Proclamação da República no Brasil

Ocorrida no Rio de Janeiro, então capital do Império Brasileiro, a Proclamação da República abalou as estruturas políticas do Brasil no fim do século XIX. Foi o momento em que o reinado de D. Pedro II deu lugar à República dos Estados Unidos do Brasil, regime político que perdura até hoje. Segundo Costa (2010), a Proclamação teria sido facilitada pelo desprestígio da Monarquia por causa das constantes críticas recebidas.

Naquela época, muitas figuras públicas republicanas aclamaram com entusiasmo o novo governo, considerando-o uma nova era de união e fraternidade. Uma nova era de progresso para a realização de grandes reformas sociais e políticas, ao contrário da Monarquia, para eles, representativa do acúmulo de ruínas e atrasos, sendo o novo regime uma forma de correção. O Barão do Rio Apa escreveu que:

A data de 15 de Novembro é escripta com lettras de ouro na historia patria, pois não é mais do que um complemento as de 7 de Setembro e 13 de Maio. Nada mais nos resta para nos dizermos um povo livre; por isso convido a guarda nacional de meu commando a acatar com respeito e amor a nova instituição e a bradar bem alto: Viva a união e fraternidade, vivam os Estados-Unidos da Republica Brazileira, viva o exercito e a armada, viva a guarda nacional. (BARÃO DO RIO APA, 1889 apud OURO PRETO, 1891, p. 38, grifo do autor).

Para Alexandre Dias Ferreira Júnior (1890, p. ix), a implantação do governo republicano foi um sonho de sua mocidade, porque sempre aspirou ver sua Pátria “[...] radiante no altar da civilisação moderna, celebrar suas nupcias de ouro com o progresso [...] o que era completamente impossivel no regimen deposto”. Ferreira Júnior (1890) considerou a atuação do Marechal Deodoro heroica; e o Visconde de Ouro Preto, segundo ele, tinha se tornado particularmente odioso.

Ruy Barbosa, então Ministro da Fazenda, considerou a República Brasileira símbolo do avanço, pois “A prosperidade nacional cresce. [...] Em breve será decretada liberdade de culto e o casamento civil. Paz absoluta.” (RUY BARBOZA apud OURO PRETO, 1891, p. 6) Aristides Lobo escreveu ao Correio da Manhan de Lisboa, em 13 de Dezembro de 1889, celebrando o evento como um “Acontecimento único [...] O que se fez é um degráo, talvez nem tanto para o advento da grande éra. [...] Era um phenomeno digno de ver-se.” (ARISTIDES LOBO apud OURO PRETO, 1891, p. 181)

Entretanto, houve aqueles que, idealizando a Monarquia e recusando-se em reconhecer as deficiências do regime monárquico, consideraram o acontecimento um acidente infeliz. Para eles, tudo não passava de um golpe. Um dos personagens monarquistas mais representativos foi o Visconde de Ouro Preto. Em suas palavras “O imperio não foi a ruina, foi a conservação e o progresso. Durante meio seculo manteve integro, tranquillo e unido territorio colossal: converteu o paiz atrazado e pouco populoso em grande e forte nacionalidade [...]” (OURO PRETO, 1891, p. 23). Ele compreendia a Proclamação como um erro, um crime. Descontente com a nova situação, inclusive por ter sido preso e exilado, considerou:

[...] não é infundada a convicção de que não perdurará e menos fará a felicidade da pátria a republica, que se levantou sobre os broqueis da soldadesca amotinada. Vem de uma origem criminosa, realisou se por meio de um attentado sem precedentes na historia e terá uma existência ephemera. (OURO PRETO, 1891, p. 104)

Segundo Afonso Celso, a nascente república era uma obra de iniquidade que abalaria a manutenção da paz e a tranquilidade do Brasil, gerando risco aos interesses sociais e aos compromissos da Nação.

Todas essas “opiniões” acerca da Monarquia ou da República nos mostram como os sujeitos atribuem diferentes sentidos aos acontecimentos nos quais estão inseridos. Esse comportamento relaciona-se com o processo de semiotização do mundo (CHARAUDEAU, 2005), o processo de atribuição de sentido. Os excertos apresentados revelam a possibilidade de um mesmo acontecimento – a Proclamação da República do Brasil, em 15 de novembro de 1889 – ser semiotizado de diferentes modos. Para os republicanos, o evento marcou o progresso e uma nova era; para os monarquistas, especialmente para o Visconde de Ouro Preto, o evento nasceu como símbolo dos vícios e da imoralidade cotidiana nos espaços da política.

Esse fenômeno de construção psico-socio-linguageira do sentido, que passa do “mundo a significar” para o “mundo significado”, cuja intervenção é realizada por um sujeito, relaciona-se também com o ambiente social no qual o sujeito está inserido e com os saberes de conhecimento e de crença compartilhados. Assim, ao transferirmos o esquema do processo de semiotização do mundo (CHARAUDEAU, 2005) para o Manifesto do Visconde de Ouro Preto, temos:

Figura 8 – O processo de semiotização realizado pelo Visconde de Ouro Preto

A partir do título do livro do Visconde, Advento da Dictadura Militar no Brazil8, e do processo de semiotização do mundo, consideramos o seguinte: com relação ao Processo de Transformação, a Identificação é marcada por “dictadura” (nomeação para o evento Proclamação) e “Brazil” (nomeação para o local); a Qualificação está incluída em “militar” (qualificação para “dictadura” que, por sua vez, qualifica o evento Proclamação); a Ação está expressa em “Advento” (uma ação de chegar, instituir-se), e a Causação, inserindo- se em uma sucessão de fatos explicados, é identificada implicitamente pelo movimento de instauração republicana.

Ao adotar esse título para sua obra, o Visconde trata da defesa de seu ponto de vista, trazendo à tona argumentos tidos como relevantes para seus concidadãos, a quem o ex- ministro pretende influenciar, engajando-se na proposta apresentada para seus concidadãos. No que diz respeito ao processo de Transação, o princípio da Alteridade se apresenta pelo universo comum de referência aos parceiros (Visconde e concidadãos), universo marcado pelo fim do regime monárquico e pela Proclamação da República no Brasil; e as motivações comuns seriam aquelas relacionadas à defesa do regime monárquico.

O princípio de Pertinência se revela quando o Visconde, reconhecido como monarquista, defende a Monarquia em sua escrita e a dedica a seus concidadãos, criando a possibilidade de compartilhamento desse saber, ainda que seus concidadãos o adotem ou não. O princípio de Influência pode ser percebido à medida que o Visconde busca orientar o pensamento de seu concidadão em direção a uma perspectiva antirrepublicana. O princípio de Regulação mostra-se na maneira como o Visconde regula seu discurso, por vezes, por meio de um tom mais ou menos fervoroso, a fim de legar a seu concidadão o que ele considera uma “verdade absoluta”, que possa ser credível, sobre a versão dos fatos apresentada.

O processo de semiotização é distinto entre os sujeitos, pois tem relação com a identidade social dos mesmos e com o seu posicionamento ideológico. Essa identidade social torna-se explícita pelo ato de linguagem e inscreve-se em dada situação de comunicação. Dessa forma, identificamos, no caso em análise, aqueles sujeitos com traços identitários republicanos ou monarquistas.

Com base nessas observações, verificamos que o processo de semiotização do mundo adquire pertinência na obra do Visconde, pois é a partir do que ele percebe ao seu redor que atribui sentido aos acontecimentos políticos e sociais que o cercaram, tornando o

8 O título do livro também será explorado no Capítulo 4, seção 4.4, Despertando Sentidos, no qual discutimos a

“mundo a significar” (Evento político - Proclamação da República em 15/11/1889) em um “mundo significado” (Advento da Dictadura Militar no Brazil).

Desse modo, ao fazer a defesa da Monarquia, o discurso de Afonso Celso configura-se como um ato de linguagem, à medida que não é um Manifesto enquanto uma simples reminiscência de um acontecimento, mas um ideal de memória e persuasão situado em dois momentos distintos. Junto ao processo de semiotização está o ato de linguagem, tópico de nossa próxima discussão.