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A Memória no Clique Mágico da Fotografia

3.4 Imagens da Modernidade

3.4.1 A Memória no Clique Mágico da Fotografia

Uma modernidade vislumbrada por muitos. Um sonho de progresso testemunhado por sujeitos em diferentes cidades sergipanas e estados brasileiros. Imagens que registraram pedaços de Sergipe que ingressavam nos trilhos da modernidade, seguindo os rumos do progresso, dotando a capital e as principais cidades do estado de beleza arquitetônica de estilo eclético com influência neogótica e principalmente neoclássica. Imagens, sonhos, representações e ideologias que viajaram o Brasil para mostrar um estado que estava sendo reconstruído sob os moldes da República. Eram as fotografias dos grupos escolares sergipanos enviados por intelectuais da terra para amigos e conterrâneos que se encontravam distantes.

A fotografia pode ser entendida como um universo a parte, por possuir características específicas no ato de registrar os episódios históricos. O olhar fotográfico produz ilusões, desperta entusiasmos e esparge paixões. Por possuir características tão especiais, o historiador deve tratá-las com atenção distinta, buscando evidenciar as camuflagens, os silêncios, as ausências, em suma, a carga de intencionalidade inerente no registro fotográfico. É preciso enxergar a fotografia como uma fonte histórica152, produzida pelo homem em determinada

152 Na recente historiografia educacional brasileira emergiu um movimento que vem privilegiando o uso de fotografias como fonte para as reflexões. Os textos apontam para a falsa transparência de conteúdo dos registros audiovisuais, enfatizando que o historiador “não pode desconsiderar a especificidade técnica de linguagem, os suportes tecnológicos e os gêneros narrativos que se insinuam nos documentos audiovisuais, sob pena de enviesar a análise” (NAPOLITANO, 2006, p. 238). Devemos lembrar que a fotografia carrega em si os sinais da socialização, seja dos alunos, seja dos professores e corpo administrativo. “As fotos não apenas detém signos, os valores que a instituição valoriza como apresenta os afetos que nos envolvem e envolvem a própria escola” (LIMA, 2003, p. 43). Diante disso, cabe ao historiador saber desvendar os mistérios e segredos que envolvem o olhar fotográfico e, principalmente, discernir que “o grande desafio consiste em tomar as imagens como fonte de estudo, um material capaz de oferecer informações e contribuir para ampliar a compreensão sobre as instituições

época com propostas próprias de seu tempo. O olhar fotográfico deve ser questionado, inquirido sobre suas intenções, desconstruído em sua malha mnemônica. Antes de ser transformada em fonte histórica, a fotografia deve ser destruída pela crítica, desmistificada de seu poder de sedução.

O poder de sedução que a fotografia produz está relacionado com uma ilusão. Por registrar os eventos em determinas situações, o historiador desatento pode incidir no equívoco de enxergar os registros fotográficos como uma cristalização dos eventos históricos. Seria um passado cristalizado e fidedigno que chegaria milagrosamente até as mãos dos pesquisadores, propiciando a tão sonhada contemplação do passado. Um encanto irresistível para o investigador sedento de contemplação, de sinais acerca de seu objeto. Seria esse um dos pecados aos quais os historiadores estariam tentados? Tudo indica que sim.

Realmente o poder fotográfico foi uma importante contribuição na ação dos historiadores, pois registra a cena sem esquecer de evidenciar os detalhes que poderiam passar despercebidos por um pintor. Para os pesquisadores ávidos pelo vivido e que desprezam os tão importantes modos de imaginar e representar o tempo vivido em diferentes épocas, a fotografia seria uma fonte superior as demais. Seriam as fotografias os portais mágicos que transportariam os historiadores para um passado sem as amarras da intencionalidade? Onde estariam escondidos os propósitos da época de produção da fonte, se as fotografias registram os fatos como eles realmente são? Seria possível enxergar o registro dos retratos como fontes na perspectiva dos Annales, com intenções e máculas do seu tempo?

Tais questões são de suma importância para adentrar ao universo da fotografia. É preciso saber que assim como qualquer registro documental, as fotografias também possuem uma intencionalidade que pode ser revelada pelos historiadores. As fotos são apenas um recorte do passado, visto meticulosamente para ser registrado e perpetuado. Elas exibem com detalhes todo um cenário e excluem todas as demais dimensões do seu entorno. Se um documento escrito pode revelar inúmeros aspectos de uma cena que nem sempre estão num mesmo plano, ou até mesmo uma pintura pode revelar situações que estavam presentes ou não, a fotografia só revela o que estava sob o enfoque da máquina fotográfica, o que foi enquadrado pelas lentes do fotógrafo.

educativas e o movimento educacional” (SOUZA, 2000, p. 18). Outra obra que perpassa pelo uso da fotografia como fonte para a História da educação é o artigo de Armando Martins de Barros (1996).

Um clique mágico pode revelar muito mais do que o fotógrafo desejava. Os detalhes muitas vezes ignorados por diferentes gerações podem se tornar foco de interesse de outras, de acordo com a instância de cada época. Os olhares são treinados para enxergar o que é importante em cada momento histórico. Mas o olhar do fotógrafo também é orientado. Ele também está imbuído de intencionalidades e seu ofício deve ser observado pelo pesquisador.

Neste sentido, torna-se necessário adentrar ao universo de produção da memória no início do século XX, período em que a fotografia era uma novidade153 e destinada a uma parcela relativamente restrita da população brasileira. Nos primeiros anos da fotografia nos grandes centros do país somente os eventos importantes154 é que deveriam ser registrados. No âmbito educacional sergipano, percebemos que o olhar fotográfico privilegiou as imponentes escolas graduadas que se espalhavam nas principais cidades. Escolas modestas, como as isoladas não entraram no enfoque das lentes fotográficas sergipanas, ao menos nos acervos mais conhecidos155.

O fotógrafo, em outros tempos mais conhecido como retratista, era contratado para reproduzir uma cena específica. Para isso o recorte deve ser entendido mais do que uma intenção, mas sim uma necessidade. Os retratistas de Sergipe no alvorecer do século XX tinham que atender às solicitações de seus respectivos contratantes, tentar fazer com que os contratantes ficassem satisfeitos. Além disso, eles tentaram imprimir em seus registros a modernidade que parecia emergir no seio da sociedade local. O todo da cena era um tanto

153 A fotografia é uma invenção do século XIX e que alcançou popularidade nos primeiros decênios do século XX. Elas se tornaram objetos privilegiados na preservação da memória da sociedade, fosse de modo individual, coletivo ou institucional. Em relação aos registros fotográficos pode ser elencada uma série de tipologias, de acordo com a temática e o enfoque. Elas podiam ser de álbuns de famílias (com registros individuais ou coletivos), de vistas das cidades modernizadas e seu respectivo processo de embelezamento e os cartões-postais. Pode-se dizer que os acervos fotográficos foram constituídos, muitas vezes a partir da ação individual de certos sujeitos que se preocuparam com a recordação de momentos importantes de suas vidas e a escola, tornou-se aos poucos, um desses espaços preservados em recordações de álbuns fotográficos. Assim, entende-se “o valor afetivo que as pessoas nutrem pelas suas fotografias escolares guardadas junto com o álbum de família” (SOUZA, 2000).

154 Em Sergipe encontramos fotografias que possuem um caráter elitista. Além de expressarem privilegiadamente os edifícios públicos e palacetes das cidades, as que possuem alunos destacam-se pela padronização. Tratavam- se de registros que lançavam o olhar sobre as festas escolares e a edificação de prédios imponentes para servirem como escolas. Podemos encontrar tais registros nos acervos de algumas instituições de pesquisa do estado, como o Memorial de Sergipe que possue os acervos particulares de Rosa Faria e Honorino Leal com fotografias das fachadas dos prédios escolares e vistas panorâmicas respectivamente das cidades de Aracaju e Capela. Outros retratos, de acesso mais restrito, estão nos acervos particulares de familiares de ex-alunos e principalmente, ex- professoras dos grupos escolares. Tais registros já apresentam os alunos nas salas ou perfilados defronte às escolas com as professoras e corpo administrativo ao lado.

155 São em nível de importância respectivamente os acervos Rosa Faria e Honorino Leal, no Memorial de Sergipe (Universidade Tiradentes), da Biblioteca Pública Epiphânio Dória e o acervo particular da família de Leonor Telles de Menezes. Sobre este último acervo consultar Nivalda Menezes Santos (2006).

inatingível e certamente inúmeros aspectos da paisagem não deveriam transparecer na fotografia.

Com isso o olhar fotográfico era maculado pela exclusão. A presença de determinada cena sempre imbui na ausência de outras várias. A trama de batalhas entre o lembrar e esquecer não permanece imune ao olhar fotográfico. Fotografar era, acima de tudo, selecionar a parte que deveria ser lembrada diante do todo que deveria ser esquecido. Com isso, uma imagem possui mais silêncios do que vozes, mais ausências do que presenças. Em síntese, um documento imagético esconde mais do que revela. Percebe-se que tais atribuições são ponderáveis também aos demais registros documentais, o que significa dizer que a fotografia é e deve ser entendida como uma fonte para os historiadores, mas sem esquecer que são passíveis de questionamentos.

Em um documento imagético tudo pode ser denunciador da sociedade que o produziu. Se trata de tentativas de se forjar uma realidade desejada, de evidenciar um sonho que por um instante parece ser possível e que pode ser perpetuado por meio das lentes do fotógrafo. O pesquisador não pode esquecer que na fotografia muitos aspectos não passavam de uma montagem instantânea visando perpetuar uma imagem de seu tempo. A postura, o enfoque, as expressões faciais e corporais, a posição dos sujeitos, o ângulo, tudo isso deve ser desnaturalizado. Na fotografia o artificial era ingrediente fundamental, assim como qualquer documento, a fotografia pode expressar a proposta de um monumento: delegar uma imagem idealizada de si ao futuro. As imagens são propositais e muitas vezes exprimem não o vivido, mas o desejado.

Os flagrantes inesperados foram pouco comuns no início do século XX. Geralmente, as fotografias eram concedidas, e quase sempre, solicitadas. Por esse motivo, os retratos do início do século XX devem ser vistos como reconstruções simbólicas de uma época, que mesmo não expressando o que era vivido, apresentava o que era desejado, o que a sociedade esperava que se tornasse público. As representações daquele momento histórico estão presentes nos retratos, pois eles exibem justamente o que a sociedade daquela época deseja exibir. Sabe-se que cada época possui determinadas propriedades que lhes são próprias. Cada tempo cria suas necessidades e funções. Com a fotografia, ocorre o mesmo, pois as funcionalidades ingeridas no olhar fotográfico eram distintas e para desvelar os sentidos que propiciaram o registro é necessário empreender uma discussão acerca do fotógrafo, do

fotografado, do solicitante do serviço e até mesmo do suporte material da fotografia. Somente com tais dados se torna possível apresentar alguns escólios a respeito dos motivos que levam ao registro fotográfico.

Tais registros eram destinados a um propósito bem explícito. Delegar uma memória para ser exibida em diferentes localidades, evidenciando a modernidade que estava sendo construída em Sergipe no âmbito educacional por meio de seus monumentos públicos. Assim, fotografias que se tornaram cartões-postais156 galgaram espaço na sociedade brasileira como a novidade do novo século e símbolo da emergente modernidade que despontava em alguns estados.

Além de entender os trâmites da produção da fotografia, inserindo a reflexão acerca de seus sujeitos (fotógrafo, fotografado e contratante), o historiador deve também inserir uma discussão a respeito da trajetória histórica do registro documental. É preciso saber não somente os motivos que fizeram com que o documento chegasse a ser produzido, mas também compreender os diferentes modos como o mesmo foi apropriado em diferentes situações e épocas. Mas como cumprir tal missão? Para empreender esse papel de investigador, buscando as minudências de sua fonte, o pesquisador deve extrapolar os limites da imagem. Ele deve debruçar-se sobre os versos a procura de evidências, de sinais que revelem os lugares pelos quais o documento passou, as mãos que o seguraram, enfim, os sujeitos que intervieram em sua trajetória.

Apesar dos avanços consideráveis no uso da fotografia como fonte para os estudos históricos, um sério problema ainda acomete as investigações científicas. Em muitos estudos a fotografia permanece sendo usada como mero elemento de ilustração157, sem considerar suas

156 Os cartões postais eram uma novidade na sociedade brasileira do período entressecular. Eles tinham como principal características exibir a beleza das paisagens urbanas dos principais países. Podemos entendê-los como imagens das localidades que percorriam por locais longínquos e tinham como finalidade delegar memórias: memórias do afeto pelo ente distante, das paisagens natais deixadas para traz, do progresso que adentrava nas principais cidades (econômico com as edificações imponentes e embelezamento e tecnológico com o próprio postal), das obras públicas e de seus administradores. Diante dessa circunstância, os postais produzidos ao longo da primeira metade do século XX podem ser utilizados em diferentes perspectivas pelos historiadores na tentativa de interlocução do passado. São fontes que podem tornar o passado inteligível em múltiplos aspectos como o das relações sociais, do afeto, da família, das instituições públicas, da modernidade, das viagens e, no referido caso, da arquitetura dos grupos escolares. Diante disso, é de grande valia o uso da “invenção dos austríacos de 1866, os cartões-postais”, (GRAÇA, 2002, p. 19) como fonte histórica.

157 Isso ocorre quando o registro fotográfico é utilizado de modo descontextualizado, muitas vezes sem correlação direta com a discussão empreendida pelo autor. Neste sentido, a fotografia é utilizada somente como elemento de ilustração, sem relevância alguma para a compreensão do objeto estudado, ou seja, se torna algo totalmente dispensável na narrativa histórica. A fotografia é uma fonte histórica e deve ser usada como tal,

possibilidades de reflexão como texto, ou seja, as fotografias são preteridas diante do texto escrito, visto como fonte mais importante. A historiografia educacional recente vem mudando esse panorama a partir do uso da fotografia como fonte e tem possibilitado interpretações instigantes. Um desses casos são os textos produzidos por Stela Almeida sobre a cultura escolar do Colégio Antônio Vieira em Salvador a partir dos registros fotográficos.

Segundo Stela Borges de Almeida, os impasses de natureza epistemológica mais usuais na investigação científica estão ligados à compreensão: “imagens enquanto captura e preservação de instantes congelados (...); imagens enquanto representação, cujo caráter é de máscara do real (...) e as relações que se estabelecem entre o operator (o sujeito do fazer), o

spectator (o referente) e o spectrum (o sujeito do olhar)” (ALMEIDA, 2002, p. 24). Enveredar pela seara das fotografias incumbe em tentar lobrigar as possibilidades de questionamentos e os sujeitos envoltos em sua trajetória. É importante frisar que, na pesquisa histórica o sujeito que pode fazer o documento falar é o historiador. Somente ele pode questioná-lo e interrogá- lo de acordo com os propósitos de sua averiguação.