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O Renascimento dos Grupos Escolares: Um novo objeto de estudo

A década de 1990 marcou a emergência dos grupos escolares como objeto de estudo privilegiado da História da Educação. Depois de permanecerem por décadas silenciados, no último decênio do século XX, os grupos passam a ser deslumbrados como integrante relevante do eloqüente discurso republicano no campo educacional. Eles passam a ser vistos como síntese de um período contraditório, que buscou desesperadamente criar novos símbolos, imprimir uma identidade nacional, à republicana.

Os grupos escolares no alvorecer do século XX eram vistos como símbolos maiores da modernidade na esfera educacional. Eles reuniam praticamente todos os princípios intrínsecos dos tempos modernos como a agilidade, ordenação, higiene, eficácia e vigilância. Pode-se dizer que esse tipo de instituição constituía em pequenas ilhas de civilização em pleno oceano de “barbárie”. A tão clamada e almejada modernidade não ultrapassava os limites dos muros das escolas. Enquanto nas preleções dos grupos os professores louvavam e

difundiam os princípios da civilização, a sociedade brasileira permanecia marginalizada, excludente e violenta. A República Velha que pregou a modernização do país foi também o regime das eleições fraudulentas, do domínio coronelista, da “limpeza” das cidades empurrando a miséria para a periferia em nome do embelezamento modernista. Foi a época das contestações sociais, quase todas inevitavelmente sufocadas e reprimidas pelo poder central. Na difusão da modernidade civilizada, o sangue jorrou, afinal, a desordem não poderia impedir o progresso da nação.

Em linhas gerais, a historiografia educacional brasileira concernente à temática dos grupos escolares está atrelada aos pressupostos dos republicanos e da modernidade. São obras que inserem essas instituições escolares como representações dos anseios da época perante o campo educacional. Essas obras representam também um despertar de um novo enfoque epistemológico. Novas abordagens foram inseridas nesses estudos como cultura escolar, festas cívicas, cotidiano e arquitetura. Porém, é preciso atenuar a relevância desses estudos, observar as diferentes reflexões produzidas acerca das temáticas nos diferentes estados do país. Cria-se a necessidade de promover um diálogo entre as diferentes vozes que sobrelevam a relevância desse modelo de instrução primária pública.

Os olhares dos historiadores da Educação sobressaíram sobre o universo dos grupos escolares como objetos de estudo a partir de meados da década de 1990, sofrendo influência direta da entrada no país de obras da historiografia francesa. A disseminação de estudos sobre essa temática seguiu um percurso semelhante ao da propagação dos grupos escolares. Um dos pontos diferenciais é que o olhar historiográfico convergiu por todo país de modo bem mais veloz. Múltiplos olhares emergiram por todos os recônditos estados do país.

As primeiras contribuições acadêmicas sobre os grupos escolares ocorreram em São Paulo. O estado que impulsionou a difusão desse modelo de ensino foi também o pioneiro na inclusão do mesmo como objeto de estudo. Importantes pesquisadores da temática do país pertencem aos quadros docentes das universidades paulistas. São estudos que adentraram nos grupos, buscando desvendar uma realidade obscurecida ao longo do tempo. Assim, a emergência dos grupos escolares como objeto de estudo, representa também a descoberta da infância como sujeito histórico.

Uma obra que se tornou referência sobre os grupos escolares no Brasil é “Templos de Civilização” de Rosa Fátima de Souza. É uma análise que vislumbra o surgimento e difusão do modelo de escola graduada no estado de São Paulo como ícone da disseminação do processo civilizatório do país. O próprio título já infere sobre o substrato da obra: trata-se da edificação de prédios grandiosos com o propósito de difundir os pressupostos da modernidade, da civilização. Um dos enfoques da autora é a respeito das discussões no âmbito político sobre o ensino primário. A autora acompanha o processo de implantação dos grupos escolares paulistas, que na maioria das vezes seguiu a trilha do café, tendo em vista que “dependia da doação do terreno ou de prédio” (SOUZA, 1998, p. 93). Os grupos paulistas tinham como função formar um povo regenerado e “serviam como modelos para outros estados” (SOUZA, 1998, p. 61). Além disso, eles eram apresentados como um contraponto ao modelo de ensino do período monárquico. É neste ponto que a obra de Souza apresenta algumas ressalvas. A autora em alguns momentos parece compartilhar do entusiasmo republicano em relação ao modelo dos grupos escolares. É preciso entender os grupos como discurso, que tinham como meta criar uma imagem de organização republicana contrastada com a suposta desordem imperial. É bem verdade que a autora não chegou a iludir-se com o discurso dos republicanos, pois ao constatar que a disseminação dos grupos foi acompanhada pelo aumento do número de cadeiras isoladas, reforça a idéia de que Souza percebeu o distanciamento entre o discurso e a prática. O ideal republicano aparece com maiores problemas em outros trabalhos subseqüentes.

O principal elemento da obra de Rosa de Souza é em relação aos aspectos culturais. Ela passeia pelas fontes e reconstitui, com aspecto quase que etnográfico, os ritos, as festas e as práticas escolares. Ao abordar sobre tal enfoque, a questão da memória permeia todo o discurso. As festas foram apresentadas como ato de celebrar, de memorar as grandes festas ou, em alguns casos, de reconstituir uma nova memória. Assim, “as festas cívicas visavam lembrar a memória histórica e legitimar o novo regime” (SOUZA, 1998, p. 265).

Outro intelectual que enfocou a relevância do ensino primário paulistana no período republicano foi Carlos Monarcha com o artigo “Arquitetura escolar Republicana”. O seu foco de discussão esteve centrado na Escola Normal da Praça, mas seu estudo constitui uma relevante contribuição para a historiografia dos grupos escolares, levando-se em consideração que esta escola abrigou um grupo como anexo e serviu de modelo para a difusão dos grupos

pelo estado. É uma narrativa que penetra na retórica arquitetônica dos republicanos contrapondo-a com os percalços sociais que a cercava. “O tecido arquitetônico e a retórica republicana dissimulam a presença de uma atmosfera saturada de tensões causadoras de luta e desolação” (MONARCHA, 2003, p. 104). Um dos pontos centrais da discussão do autor é a interpretação da magnitude do prédio como parte integrante da eloqüência discursiva dos republicanos impregnada na arquitetura da escola.

Contudo, os estudos dos grupos escolares não ficavam restritos aos pesquisadores de São Paulo. A temática vem sendo explorada em vários estados, resultando no afloramento de múltiplas realidades acerca do processo de expansão dos grupos escolares no Brasil em seus diferentes estados. Se a maioria das pesquisas confirmou os dados nas investigações paulistas, demonstrando o aspecto regenerador, propagandístico e moderno atribuído aos grupos, outros serviram para desmistificar as especificidades de cada localidade. Uma dessas especificidades infere-se sobre a adoção de São Paulo como modelo para a disseminação dos grupos escolares. Pesquisadores como Luciano Mendes Farias Filho e Diana Vidal (2005) relativizam esta afirmação, demonstrando que estados como Minas Gerais buscaram um modelo diferenciado do adotado pelos paulistas. Os autores navegam pelas discussões acerca de instrução primária dos períodos imperial e republicano. Neste ensejo aparecem os grupos escolares como resultante das transformações ocorridas na sociedade brasileira no raiar do século XX. Os autores buscam ressaltar os princípios das políticas atreladas aos grupos, usando a metáfora da lupa, que ora busca um olhar mais global, ora mais focalizado.

Outro autor que discute a implantação dos grupos escolares numa perspectiva diferenciada é Antônio Carlos Pinheiro (2002), que analisa o ensino primário paraibano entre os últimos decênios do século XIX e os primeiros do XX. É uma proposta inovadora, pois investiga o seu objeto sob o viés da longa duração, classificando os períodos por “eras”, utilizando-se da leitura de Eric Hobsbawn. Apoiado numa vasta documentação, o autor pretendeu analisar o processo de expansão e consolidação do ensino primário paraibano e classifica dois longos períodos de era das cadeiras isoladas e era dos grupos escolares. Pinheiro demonstra que nesta classificação ainda poderia ter sido incluído uma terceira era, a das escolas rurais. É uma obra instigante que tenta provocar questionamento sobre pontos obscuros da implantação dos grupos escolares, além de ser uma das poucas que enaltece o papel desempenhado pelas cadeiras isoladas.

No entanto, nenhuma dessas obras se aprofunda em um ponto crucial dos grupos escolares: a questão arquitetônica. Excetuando algumas incursões explicativas de Souza (1998), Monarcha (2003) e Farias Filho (2000), a arquitetura dos grupos escolares permanece necessitando de um estudo mais focalizado. Deve-se lembrar que a arquitetura serviu como síntese da ebulição ideológica que permeou a sociedade brasileira no período entressecular. Políticos, educadores, engenheiros e higienistas depositaram seus anseios de modernidade na configuração do espaço escolar e o grupo foi à resposta para esses anseios. A arquitetura configurou como elemento da simbiose das múltiplas expectativas que emergiam com o novo século.

Os grupos surgiram com a preocupação em presumir a visibilidade da esfera educacional para a sociedade. Era uma proposta republicana em evidenciar as benesses que estavam ocorrendo no ensino após a Proclamação da República. A arquitetura imponente foi uma estratégia de evidenciar tais transformações, mas não a única. Outra estratégia usada pelos republicanos na exibição de suas proezas foi o desfile cívico. Na ocasião das festas cívicas os alunos saíam pelas ruas apresentando os resultados do processo de civilização. A escola incorporava as ruas com a mesma pompa e eloqüência. A territorialidade escolar extrapolava os limites dos grupos, com os alunos fardados e transportando os estandartes metamorfoseavam as ruas da cidade em escola, constituindo um território flexível (CLAVAL, 2001).

Um olhar que buscou vislumbrar os grupos escolares na perspectiva próxima da espacialidade foi o de Marcus Bencostta. O autor debate a respeito dos desfiles patrióticos dos grupos escolares de Curitiba. Foi uma tentativa de compreender o papel social desempenhado pelas festas cívicas dos grupos escolares na construção da memória e da cultura cívica- patriótica. Para o autor:

Os desfiles escolares entendidos como festa são uma construção social que manifesta, em seu espaço, significações e representações que favorecem a composição de uma certa cultura cívica inerente aos seus atores; nos facilita entender a identidade que é dada pela compreensão que esse grupo possuiu acerca do símbolo que justificou a realização do desfile e que registrou de modo duradouro na memória social um sentimento que se propunha ser

coletivo pela união dos anseios de seus atores, delimitada em um tempo e em um espaço históricos (BENCOSTTA, 2006, p. 301).

A festa cívica vista por esse ângulo pode ser entendida como a ritualização do mito, ou seja, uma forma de perpetuar um tempo mítico/histórico por meio do rito, forjando-se uma identidade. O elemento cívico-político é muito relevante na configuração do grupo escolar. Na tentativa de se implantar a civilização em terras brasileiras, fortalecendo a identidade e regenerando o povo brasileiro, era preciso apelar para os sentimentos patrióticos. O cidadão brasileiro ideal seria o que exercesse suas atribuições profissionais com eficiência e que estivesse prontificado para a guerra a qualquer instante. Era preciso formar cidadãos capazes de se sacrificarem em nome da pátria. É importante frisar que o mundo estava conturbado e que o ápice dos grupos escolares ocorreu justamente no período entre guerras. Um novo conflito mundial era eminente. Restava apenas formar os soldados, preparar o exército.

Além disso, Marcus Bencostta destaca-se também por ser um dos principais autores que discute o processo de implantação dos grupos escolares pelo viés arquitetônico. Utilizando-se de registros fotográficos e plantas dos prédios escolares, o autor tenta desnudar os variados discursos imbuídos na disseminação da escola graduada no Paraná. Com ele apresenta as mudanças ocorridas no início do século XX no sentido de pensar, debater e destinar espaços específicos para a escola primária (BENCOSTTA, 2005, p. 134)

Neste sentido, pode-se perceber que os estudos acerca dos grupos escolares são marcados pela diversidade, tanto no aspecto geográfico como em relação aos enfoques. Neste estudo citamos alguns exemplares de pesquisas que tiveram como foco central a emergência desse tipo de instituição. Todavia, é preciso lembrar que a bibliografia referente à temática é vasta e não para de suscitar novos estudos. Esgotar os estudos referentes à temática já parece tarefa improvável. Pesquisadores de diferentes universidades do país lançam seus olhares sobre os grupos. Na pesquisa em História da Educação parece que estamos entrando na “Era dos grupos escolares”.