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PARTE I – DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA

2. Políticas habitacionais e a pobreza desigual

2.2. Mercados de habitação e segregação

2.2.2. A mercadoria composta terra-moradia

Encaminhando a proposição da produção de configurações espaciais como um momento ativo dentro da dinâmica temporal geral da acumulação e da reprodução social, proponho uma discussão, articulando elementos da teoria a fim de interpretar explorar as marcas do consumo habitacional oferecidas pela representação censitária.

Conforme Harvey (2013), o valor de uso representa o lado material da mercadoria, manifesto em qualidades que se relacionam a diferentes (e específicos) tipos de desejos e necessidades humanos. Habitar implica em acesso a água potável, ar, luz, à saúde e nutrição (higiene, salubridade), ao teto (proteção, descanso), ao contato direto com o solo e com as localidades da cidade. A apropriação da natureza para satisfazer necessidades e vontades é um processo material incorporado nos atos de produção e consumo. As mercadorias fixadas no solo que compõem o ambiente construído e em especial as moradias, podem se inserir, dependendo de seu valor de uso, tanto no âmbito do consumo (um bem de consumo) quanto na esfera da produção. A rigor, Harvey distingue bens e instrumentos de consumo, já que as mercadorias não são consumidas diretamente; a casa torna-se um instrumento de

consumo quando não é produzida necessariamente como mercadoria, como por exemplo a moradia produzida por autoconstrução.

como valor de uso, a casa fornece abrigo; é um lugar onde se pode construir um lar e uma vida afetiva; é um espaço de reprodução diária e biológica [...]; oferece privacidade e segurança em um mundo instável. [...] Podemos fazer uma lista imensa dos usos que uma casa pode ter. Seus usos potenciais são incontáveis, aparentemente infinitos e, muitas vezes, puramente idiossincráticos.” (HARVEY, 2016, p.27-28).

Se inseridas no circuito produtivo, as moradias são interessantes para minhas hipóteses, cabendo então uma distinção que trata da conceituação do capital fixo e capital circulante referente à moradia. “Até as casas, apesar de sua imobilidade, são capital circulante para o negócio de construção; para aquele que as compra, para alugá-las ou utilizá-las como edificações para a produção, são capital fixo.” (MARX, 2015, p.969, grifos meus)43. Esta conceituação marxiana é fundamental, pois embora as políticas habitacionais recentes calcadas na produção massiva de moradias para financiamento sejam composições destes dois tipos de capitais, a presente pesquisa busca interpretar o conjunto do arranjo espacial destes tipos, discernindo-os dos bens de consumo.

A título de complementação, acrescento que os bens imóveis podem ser transferidos de uma categoria para outra mediante uma mudança no uso, por exemplo, bens de produção convertendo-se em bens de consumo, e vice-versa44, podendo inclusive converter-

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Citando ainda este autor: Uma casa pode servir tanto à produção quanto ao consumo; da mesma forma,

todos os veículos, um navio e um carro, podem servir tanto a uma viagem de lazer quanto de meios de transporte; uma estrada pode servir tanto de meio de comunicação para a produção propriamente dita quanto para passear etc. O capital fixo nesse segundo sentido não nos interessa de modo algum, uma vez que analisamos aqui o capital somente como processo de valorização e processo de produção. (Id.Ibid., p.921-

922)

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O capital fixo incorporado em armazéns e oficinas pode ser convertido, por exemplo, em itens de bens de consumo, como apartamentos e galerias de arte, e vice-versa. Alguns itens funcionam simultaneamente como meios de produção e como meios de consumo (rodovias e automóveis, por exemplo). Usos conjuntos são sempre possíveis. (Harvey, 2013, p.311)

se em bens combinados. Finalmente, os bens de consumo imóveis podem ser privados ou coletivos (parques, caminhos para pedestres)45.

Cabe assinalar, no entanto, que a conceituação da moradia como um capital fixo é uma interpretação da presente tese que possui aspectos teóricos controversos. Críticas a esta conceituação podem argumentar que o termo capital fixo não cabe ao ambiente do lar, circunscrevendo-se estritamente aos ambientes produtivos, como fábricas, oficinas, lojas, etc. De fato, esta identificação mais tradicional entre capital fixo e instalações produtivas parece ser uma associação mais corrente. No entanto, me atenho à curta citação logo acima, retirada dos manuscritos de Marx, para assinalar que ela não deixa de ser válida também aos prédios não residenciais e essencialmente produtivos. O que ressalto é justamente a validade desta conceituação para a casa enquanto edificação que abriga a unidade doméstica. É importante frisar que a moradia46 jamais se confunde com a categoria dos imóveis e instalações das unidades estritamente produtivas, tais como as indústrias, estabelecimentos agrícolas e outros. No entanto, o paralelo que estabeleço entre moradia e capital fixo se dá à medida em que parte dos investimentos na formação do estoque habitacional visa a obter retornos em dinheiro por meio da locação e do financiamento. Estas modalidades contratuais impulsionam fluxos de remuneração mensal em dinheiro que incluem mais-valor urbano, que não é aquele extraído no interior da unidade produtiva, mas sim do trabalho social necessário para produzir a aglomeração urbana e a localização. A moradia é, neste sentido, um meio necessário à extração de mais-valor e à geração de rendimentos, atividades estas que se identificam intimamente com a exploração capitalista. Reforço a afinidade entre os conceitos de capital fixo e meios de produção tomados em seu sentido mais amplo, pois tanto a propriedade da moradia quanto dos demais meios de produção é capaz de clivar classes e definir posições frente aos processos de acumulação de capital. As edificações e as localizações, ao longo de suas existências, mediam diversos

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O capital fixo do tipo “autônomo”, ou “independente” (independent) é bastante particular, por ser um tipo de “que com frequência é usado em comum”, que atua como a condição geral para a produção e possui forte relação com os sistemas de crédito vigentes. Pontuo os exemplos com os quais Harvey e Marx ilustram o capital fixo do tipo autônomo, como estradas, aquedutos, ferrovias, canais. Podemos cogitar esses correlatos no espaço urbano na forma de ruas, pontes, rampas de acessibilidade, redes gerais de drenagem de águas pluviais, canais e bacias de retenção urbanos. Os espaços intraurbanos abrangem todos estes elementos do ambiente construído. Assim, conceituo as infraestruturas públicas físicas que equipam o espaço intraurbano como capital fixo autônomo.

46 O termo moradia entendido como uma categoria mais geral, abrangendo as diversas tipologias habitacionais

processos de acumulação de capital.47 Minha abordagem baseia-se especificamente nesta concepção, que entendo ser uma argumentação útil quando salientamos elementos ativos do espaço sobre as dinâmicas sociais.

Em relação ao valor de uso do espaço, embora Marx não o tenha abordado sistematicamente, há, conforme Harvey (2016), referências a ele em toda sua obra. A utilidade de todos os elementos particulares do ambiente construído depende de suas localizações em relação aos outros, de forma que lojas, moradias, escolas, estabelecimentos produtivos e tantos outros elementos devem estar relativamente próximos, ou convenientemente afastados uns dos outros. Na avaliação dos valores de uso das mercadorias, incluindo a terra e a moradia, o aspecto quantitativo é muito influente, assim como a localização.