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PARTE I – DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA

2. Políticas habitacionais e a pobreza desigual

2.2. Mercados de habitação e segregação

2.2.1. Localização e terra-localização

A localização exerce influência muito significativa nos preços da terra e das mercadorias imobiliárias40, que por sua vez é fator limitante das possibilidades de moradia das camadas de baixa renda da população. Conforme Villaça (2001), o valor do espaço não se confunde com os valores dos volumes arquitetônicos nele construídos e fixos; é maior inclusive que o somatório dos valores destes volumes, pois envolve o valor da força produtiva derivada do conjunto da aglomeração urbana.

A matéria-prima da localização é a terra. A teoria marxista distingue o termos terra e solo para designar um novo conteúdo social e econômico que o espaço assumiu na modernidade e no modo de produção capitalista. O espaço tornou-se mercadoria, foi “despedaçado e vendido em parcelas” (VILLAÇA, 2001, p.71). Se a terra for livremente comercializada, então ela se torna uma mercadoria de um tipo muito especial, como afirma David Harvey:

a teoria da renda fundiária resolve o problema de como a terra, que não é um produto do trabalho humano, pode ter um preço e ser trocada como uma mercadoria. A renda fundiária, capitalizada como o juro sobre algum capital imaginário, constitui o “valor” da terra. O que é comprado e vendido não é a terra, mas o direito à renda fundiária produzido por ela. O dinheiro exposto é equivalente a um investimento que rende juros. O comprador adquire um direito sobre as receitas futuras antecipadas, um direito sobre os frutos futuros do trabalho. O direito à terra se torna, em resumo, uma forma de capital fictício. [...] “Se é emprestado como dinheiro, terreno, imóvel etc., o capital devém mercadoria como capital, ou a mercadoria que é posta em circulação é o capital como capital”. (HARVEY, 2013, p.471, grifos e citações marxianas do autor) 41.

40

Em minha dissertação de mestrado (FERREIRA, 2007) listei mais de 40 diferentes variáveis indicativas de localização compiladas da literatura de engenharia de avaliações para avaliação em massa de terrenos urbanos. Apuramos que as variáveis de localização intraurbana são as principais variáveis explicativa do valor dos terrenos urbanos em modelos econométricos inferenciais.

41

Prossegue este autor em sua nota de rodapé n° 110 (Id.Ibid., p.471): “Os incentivos sociais à posse da terra –

prestígio, importância simbólica, tradição, etc. – são também muito importantes na prática, mas os excluímos de consideração aqui porque eles não têm raízes diretas dentro de uma pura teoria do modo de produção capitalista.”

Originalmente, Marx distinguiu os dois conceitos terra-matéria e terra-capital para referir-se às especificidades econômicas que o solo passava a assumir na transição feudal ao modo de produção do capitalismo e da natureza dos rendimentos produzidos entre estas duas categorias (MARX, 1985, p.152-153). Villaça (2012[1985], p.25-40) estende a distinção original de Marx acrescentando uma terceira conceituação, a terra-localização, ou seja, a componente produtiva do conjunto dos atributos locacionais da terra enquanto meio de acesso a todo o sistema urbano, a toda a cidade. A localização é socialmente produzida. A terra-capital e a terra-localização (ao contrário da terra-matéria) possuem valor, pois são produzidas pelo trabalho humano, social. Como a existência aparente do modo de produção capitalista é extrair valor do trabalho alheio, a terra urbana também é objeto de extração de mais-valor, cujo conceito permanece intacto desde sua criação:

A relação entre parte da mais-valia, a renda em dinheiro - pois o dinheiro é a expressão autônoma do valor -, e o solo é em si absurda e irracional, pois são grandezas incomensuráveis que aqui se medem entre si: por um lado, determinado valor de uso, um terreno com tantos pés quadrados, e, por outro, valor, especialmente mais-valia. Isso expressa, de fato, apenas que, sob as condições dadas, a propriedade desses pés quadrados de solo habilita o proprietário a apoderar-se de determinado quantum de trabalho não-pago, que o capital realizou nos pés quadrados como um porco entre as batatas. Prima facie a expressão é, porém, a mesma, como se se quisesse falar da relação entre uma nota de 5 libras e o diâmetro da Terra. (MARX, 1986, p.241, grifo meu)

A acessibilidade, enquanto um valor de uso da terra urbana, relaciona-se diretamente aos efeitos úteis das aglomerações, que não interessam apenas aos proprietários dos meios de produção, mas também à força de trabalho, em seus deslocamentos diários necessários à sua reprodução. Para Villaça (2001, p.74), a acessibilidade é o valor de uso mais importante para a terra urbana, e esta acessibilidade de cada terreno ao conjunto urbano revela a quantidade de trabalho socialmente necessário dispendido em sua produção. Quanto mais central o terreno, mais trabalho existe dispendido na produção dessa centralidade, desse valor de uso. Os terrenos da “periferia” portam menos trabalho social incorporado em sua produção do que os centrais.

Centralidades (periféricas ou não) são elementos de peso na precificação da terra; e altos preços implicam em obstáculos financeiros de acesso às localizações para fins de moradia.

Estas conclusões podem ajudar a compreender por que no mercado imobiliário urbano contemporâneo não há lugar (quer ao nível empírico quer ao teórico) para a “renda”, pelo menos o tipo de renda concebido por Marx. Este conceito parece não fazer falta para se compreender o preço e o mercado da terra urbana. Ninguém fala, hoje em dia, no meio imobiliário, em renda da terra. A exploração do conceito de Terra-Localização ajudaria a compreender (juntamente com a do de homogeneização do espaço) a transformação da terra em mercadoria, o desaparecimento dos proprietários de terra enquanto classe (mas não como indivíduos) e a manutenção da propriedade privada da terra pelo capitalismo. Afinal de contas, como poderia um modo de produção totalmente baseado na exploração de trabalho alheio, abolir este maravilhoso canudinho com o qual, da forma mais tranqüila e “imperceptível”, ele suga significativa parcela do trabalho coletivo? (VILLAÇA, 2012[1985], p.35, aspas e parênteses do autor)

Os atributos da terra-localização são bastante evidenciados na propaganda dos mercados imobiliários, mas os atributos que talharam a conceituação original da terra- capital marxiana nem sempre são visibilizados.

Em termos de política urbana e habitacional, é importante frisarmos a afinidade a da localização e o direito de superfície, preconizado pelo Estatuto da Cidade como um dos instrumentos da política urbana brasileira. Segundo Mazzei (2007), o direito de superfície remonta ao direito romano e embora muito antigo, tal instituto jurídico ainda possui conforme este autor, uma literatura brasileira relativamente escassa.

A separação do implante [edificação] em relação à base do imóvel se opera através da suspensão dos efeitos do princípio superficies solo cedit,42 formando-se aquilo que vem se denominando de “propriedade superficiária”, em razão dos amplos poderes que o concessionário (=superficiário) detém sobre a acessão. (MAZZEI, 2007, p.6, grifos e aspas do autor)

42 Para este autor (Id.Ibid, p.23), “os romanos entendiam que tudo que estava sobre o solo se incorporava,

necessariamente, por direito natural, ao seu proprietário. Este era o princípio superficies solo cedit, traduzido das regras da acessão imobiliária. Assim, àquela época, como corolário deste sistema, não se concebia a propriedade da construção separada da propriedade do solo. Logo, tudo que fosse edificado sobre o solo a ele se agregaria e passaria a pertencer exclusivamente ao seu proprietário.”

A inclusão de tal direito real em nosso ordenamento corresponde, assim como outros instrumentos da política urbana instituídos pelo Estatuto da Cidade, à consolidação de um conjunto de reivindicações populares visando se por em prática a concepção de função social da propriedade codificada em nossa Carta Magna, possibilitando que imóveis não utilizados, ou subutilizados, tenham destinação útil. Salvo melhor juízo, não temos presenciado iniciativas que explorem este instrumento de enorme importância para nossas políticas, certamente em decorrência da combinação de fatores como o patrimonialismo característico de nossa formação social, afinado ao conservadorismo de nossas classes dirigentes e da insuficiência da pressão popular. Este instrumento deveria ser mais usado em nossas práticas de produção de espaço habitacional, uma vez que permite o acesso às localizações centrais sem confundir-se com o direito de propriedade que tem sido apontado na literatura como um dos maiores entraves à realização plena do direito à moradia nos centros de nossas cidades.