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1.1 A abordagem crítica em Psicologia Escolar

1.1.3 A Micropolítica

A perspectiva micropolítica tem na obra de Foucault um de seus referenciais teóricos. Busca desconstruir a queixa e a construção social da doença mental, problematizar e naturalizar a necessidade social de controle e compreender a origem.

Foucault (1996, p. 8-9) estudou a produção de discursos pela sociedade:

... suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

O discurso traduz as lutas, os sistemas de dominação e o poder pelo qual se luta. Segundo o autor, as áreas em que o discurso mais exerce seu poder são a sexualidade e política, revelando sua ligação com o desejo e com o poder.

A justiça penal também entrou nessa produção de discursos através do controle social que filtrava a sexualidade de casais, filhos, adolescentes em perigo e perigosos, a fim de proteger, separar e prevenir. A educação é o instrumento que torna possível um indivíduo a ter acesso a qualquer tipo de discurso, sua distribuição, oposições e lutas sociais. O sistema de educação “é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. O sistema de ensino ritualiza a palavra, qualifica e ritualiza papéis para os sujeitos que falam (FOUCAULT, 2008, p. 44).

Foucault (2008) pensa o poder como algo móvel, ação sobre ação, um jogo constante de forças que se mobilizam, desequilibram para logo equilibrar. É um nome dado a uma situação estratégica, complexa, numa determinada sociedade, através de uma prática social regionalizada, que não está no outro ou num indivíduo determinado, mas em tudo. Não é instituição, não é estrutura nem uma potência, está além do Estado, acontece debaixo (ações cotidianas) para cima (Estado).

Esse autor não nega o sistema de pensamento de Marx, mas trabalha a partir de um sistema conceitual diferente. Utiliza o conceito de representação como interpretação da experiência, que acompanha toda ação, em detrimento do conceito marxista de ideologia. Com relação ao conceito marxista de dominação, Foucault rompe com o raciocínio dominador-dominado, pois a dominação anula a força contrária e não há ação; para ele, trata- se de poder-resistência, sendo a resistência ação sobre ação que produz algo.

A oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, assim como o poder dos pais sobre os filhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da medicina sobre a população, significa uma forma de resistência contra as diferentes formas de poder, uma tentativa de atacar não uma instituição, um grupo ou uma classe, mas uma técnica ou forma de poder (FOUCAULT, 2000, p. 234).

Segundo Rocha (2000), o mundo industrial elegerá a eficiência e a habilidade como as diretrizes da ordem, do sucesso e do progresso. A escola se tornará mais um espaço veiculador do sujeito da moral, da normalidade, da prevenção da patologia, da equalização das distorções sociais, na preservação do patrimônio sociocultural, na prevenção das mudanças que não correspondam à ordem estabelecida. Dispositivos levarão à pedagogização e naturalização das relações, dos saberes e das práticas, do comportamento certo e errado, do que é ser bom e mau aluno, o verdadeiro e o falso, ou seja, a uma lógica binária em que o

diferente, o singular e o variável são excluídos. Como consequência, os alunos, educadores e práticas de pesquisa e produção do conhecimento não serão legitimados.

O individualismo, o isolamento, o bloqueio da comunicação são funcionamentos institucionais que dificultam a expressão de outras formas de ser. O tédio, a impotência, a inércia surgem no cotidiano como sinal de que algo foge ao controle, que não se encaixa, pois indica que ainda há possibilidade de mudanças, de rupturas e transformações.

A vida das crianças certamente está implicada aos princípios escolares, tendo passado pouco ou muito tempo pela educação formal. Para Rocha (2000, p. 192):

Isto se dá à medida que vivem em uma sociedade em que a escola é a organização oficial responsável pelo reconhecimento da constituição do cidadão produtivo. A Educação escolarizada, nesse sentido, constitui a legalização do sujeito na sociedade, quer na ordem prática (por meio da alfabetização, de preparação para o trabalho ou mesmo de concessão de diplomas), quer na ordem do valor (o quanto de capital cultural foi incorporado).

Na escola, a criança não vai aprender a falar apenas uma língua, mas assimilará os códigos em circulação, relações, competências essenciais para a sociedade capitalista de forma homogeneizante.

Para Machado e Souza (1997), a naturalização fortalece cristalizações. Quando alguém apresenta uma tendência que se cristaliza nas relações, produzem-se personagens como “o aluno especial”, “o louco”, “o tímido”, e assim por diante. Qual será o destino do indivíduo que, em suas relações, recebeu o papel de “o aluno que não aprende”? Repetências sucessivas, aluno para educação inclusiva ou evasão. Devemos investigar as relações e práticas que produzem essas cristalizações, por isso as perguntas formuladas devem ser voltadas para elas e não para os objetos; assim se resgata a história, rompendo com a naturalização, com a crença de que o ocorrido é devido à natureza das coisas e não de sua história.

A micropolítica, portanto, atua nas brechas desse sistema, na busca de outro tempo, espaço, na multiplicidade de significados das diferentes expressões, pois considera que a subjetivação acontece por meio de um sistema de conexão direta entre as estruturas de controle social e as instâncias psíquicas; portanto, o trabalho, as relações familiares e as ações disciplinares da escola, dos meios de comunicação e de massa constroem o indivíduo desde a infância.

Para Rocha (2000, p. 203), a micropolítica tem como objetivo “pensar a Educação enquanto processualidade”, como movimento com limites móveis e deslocamentos constantes. A intervenção deve construir coletivamente referenciais de análise – das redes de

força e poder intrincadas – e ação capazes de romper com as dicotomias e polarizações, de transformar a lógica institucionalizada, produzir sentido, de formar cidadãos criativos, participativos, que buscam construir outras formas de ser.

Nesse sentido, a perspectiva da micropolítica compreende a queixa escolar como produção de relações estabelecidas num determinado campo de forças, sem culpabilizar a criança. Propõe uma intervenção nesse campo de forças, em que o psicólogo participa ativamente, por meio da abertura de espaços que permitam à comunidade escolar refletir sobre o cotidiano escolar e sua implicação com a construção do mesmo. Isto significa pensar acerca da própria formação, das relações estabelecidas, diversidade de posições, opiniões e manifestações, insatisfações, demandas e alternativas (ROCHA, 2000).

Para Machado e Souza (1997), a partir dessa perspectiva, o psicólogo escolar deve descobrir o heterogêneo, investigar as relações que são constituídas por um campo de forças atravessado pela política educacional, pois está submetida às determinações dos órgãos governamentais, na burocracia e normas pedagógicas impostas. Portanto, a escola não deve ser vista como algo abstrato, nem homogêneo, mas uma instituição atravessada por contradições e conflitos, considerando os seus múltiplos atores como professores, alunos, familiares e comunidade.

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Observa-se que as pesquisas desenvolvidas a partir dessa perspectiva crítica tiveram como foco o início da escolarização, com maior ênfase nos estudantes de 6 a 12 anos. Assim como Vigotski voltou seus estudos para a infância e adolescência para compreender o desenvolvimento das funções psicológicas elementares e superiores, os estudos da Psicologia Histórico-Cultural, acerca dos anos iniciais de escolarização no Brasil, contribuem para entender melhor a história e a trajetória escolar do adolescente.

Apesar de indicarem aspectos fundamentais acerca da produção do fracasso escolar, da complexa rede de relações presentes no interior da escola, esta última compreendida como parte da sociedade e atravessada por suas contradições, conflitos e ideologias, é urgente a necessidade de desenvolver estudos a partir desta perspectiva sobre a adolescência e juventude, pois esta tem sido muito estudada por pesquisadores de abordagens teóricas não críticas e gerado práticas cristalizadas, reducionistas, trazendo graves consequências sociais, históricas, culturais e políticas.

O resgate da história da adolescência, a partir dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, permite compreender algumas concepções de adolescência também reducionistas e universalizantes. Por sua vez, os estudos, pesquisas e ações voltados para a adolescência que é criminalizada encontram-se em menor número, no interior do processo de construção de mediações teórico-práticas.

Tais aspectos receberão maior aprofundamento de acordo com a explicitação de outros referenciais teóricos, práticos e políticos voltados para a adolescência, juventude, escola, gênero e medida socioeducativa.

Apesar da escassa produção na área, os pressupostos explicitados anteriormente permitem compreender um adolescente, um grupo, a partir da cultura que o envolve, de sua posição ocupada no todo social, a partir das redes de relações e das instituições sociais das quais participa, constituindo uma situação dialética entre este e a sociedade. Isso significa realizar uma investigação de uma situação que acontece nas escolas públicas e que, no decorrer de uma história individual e coletiva, numa relação dialética, culmina no cometimento de um delito. Portanto, adolescentes e jovens, sua classe social, seus familiares, suas comunidades, suas escolas não serão vistos com base numa perspectiva reducionista.

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