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1.3 Gênero

1.3.1 Gênero e educação

O conceito de gênero foi introduzido na educação por volta das décadas de 1960 e 70, quando as teorias críticas relacionadas à área se expandiram no Brasil. Tais teorias, que se inspiravam no marxismo e em Paulo Freire, colocavam em debate as perspectivas tecnicista e comportamentalista vigentes durante a ditadura brasileira, atravessadas pelas teorizações da Psicologia e em suas abordagens individualizantes e naturalizantes. Com a redemocratização do país, as teorias críticas foram institucionalizadas e se tornaram hegemônicas, mudando o foco do individual para o social e coletivo (LOURO, 2002).

Como havia várias concepções das questões de gênero, diferentes afiliações teóricas foram incorporadas gradativamente nas discussões da educação, tendo como base as relações de poder e sua articulação com classe, raça, etnia. Como a educação está implicada na construção de sujeitos, o gênero se tornou um conceito relevante. Segundo Louro (2002, p. 230):

Além de demonstrar que a escola reproduz a dinâmica de poder vivida entre os sujeitos na sociedade mais ampla, alguns estudos preocupam-se em mostrar que a escola também produz – e de formas muito particulares e específicas – tais desigualdades sociais. Nas políticas curriculares, nos livros didáticos, nas práticas de sala de aula, nos procedimentos de avaliação, examina-se a demarcação de lugares sociais para meninos e meninas, adolescentes e adultos, segundo seu gênero. A linguagem sexista dos textos e da prática cotidiana é denunciada. A ideologia patriarcal e o androcentrismo do conhecimento são demonstrados; os efeitos da invisibilidade das mulheres nas narrativas históricas oficiais, nas ciências e na literatura e os previsíveis resultados das expectativas colocadas para o sujeitos femininos e masculinos passam a ser observados e discutidos. O trabalho docente, ou mais especialmente, o processo de feminização do magistério e suas marcas na formação e no reconhecimento social da profissão, ganha especial atenção.

Atualmente, as teorias críticas da educação coexistem com as pós-críticas, que se baseiam no pós-estruturalismo e representam mudanças epistemológicas. O pós-estruturalismo

mantém a ideia da construção social das identidades e dá enfoque central à linguagem, ao discurso e atribuições de significado, enfatizando os conceitos de poder, identidade e diferença; além disso, rompe com as fronteiras disciplinares dos estudos culturais, dos negros, gays e lésbicas e teoria queer.

Louro (2002) explica que os desdobramentos do movimento gerado pelo pós- estruturalismo revelam-se na luta pela apropriação das instâncias culturais, que se relaciona à atribuição de significados que são veiculados por esses desdobramentos. Outra ruptura acontece na compreensão em torno da constituição da identidade, antes concebida como una, estável e coerente em detrimento da ideia de que o sujeito é plural, constituído por muitas identidades que lhe permitem se reconhecer em distintas posições, a partir dos cruzamentos entre raça, classe, nacionalidade, sexualidade e gênero. Tudo isso interessa a educadores e educadoras, pois as políticas, saberes, práticas escolares e sociais, as pedagogias culturais em circulação produzem discursos que marcam as diferenças. A tarefa do profissional de educação é “estender seu ofício a várias pedagogias culturais e de se perceber como uma intelectual ou uma trabalhadora cultural” (LOURO, 2002, p. 235) e que compreenda os modos de funcionamento e produção das instâncias culturais.

Recentemente, a teoria queer tem proposto uma nova forma de pensar a educação. Essa teoria aponta a multiplicidade das posições de gênero e sexuais, questionando e desconstruindo o binarismo homem/mulher, heterossexual/homossexual, e coloca que muitos sujeitos ocupam o lugar social da fronteira. Trata-se de uma política e uma teoria pós- identidade que se estende para o conhecimento em geral. As teóricas e os teóricos queer propõem uma forma de pensar queer na educação que possa questionar os processos de normalização ou de normatividade em prática que produz sujeitos marginalizados, processos não se restringem à homofobia nas escolas (LOURO, 2002).

Carvalho (2004) realizou uma pesquisa para investigar o que acontecia para que mais meninos – negros ou de classes populares em sua maioria – apresentassem fracasso escolar. A autora considera que a cultura escolar configura-se como fonte importante na construção das identidades de meninos e meninas. Dessa forma, a escola pode constituir-se tanto em espaço reprodutor das desigualdades de gênero, como de reflexão, problematização e flexibilização destas. Recentemente, pesquisas têm sido feitas no sentido de compreender tal problemática e os efeitos para a sociedade em áreas como violência sexual e doméstica, divisão sexual do trabalho e a produção do fracasso escolar.

A pesquisadora observou que o que levava os meninos a terem problemas escolares não era dificuldade de aprendizagem, mas suas atitudes “desordeiras”. Em outro texto

Carvalho (2001) discute a clareza dos critérios de avaliações adotados pela escola e por cada professora, incluindo suas concepções de masculinidade e feminilidade. A autora concluiu que os critérios não eram claros e que eram atravessados pelas questões de gênero. Nos discursos analisados, os meninos considerados como mais inteligentes eram brancos, pertenciam a classes sociais melhores, eram agitados, questionadores e indisciplinados. As meninas dificilmente se destacavam em sua inteligência. Trata-se de referenciais de masculinidade que influenciavam os critérios de avaliação das professoras. Quando os meninos não se encaixam, ou seja, não atingiam bom rendimento acadêmico, as atitudes de protesto eram utilizadas ou seus comportamentos eram compreendidos como indisciplina.

Carvalho (2004) argumenta que a equipe escolar justifica as diferenças de comportamento entre meninos e meninas a partir de questões biológicas e familiares, visão também encontrada em escolas de outros países. No entanto, há práticas e discursos escolares que podem gerar meninos agressivos e indisciplinados e meninas menos agitadas. Diante da dificuldade em obter sucesso acadêmico ou de culturas infantis e juvenis que consideram o bom desempenho acadêmico e o bom comportamento uma forma de efeminação ou homossexualismo, algumas atitudes de educadores e educadoras podem provocar comportamentos contrários, na tentativa de adquirir prestígio, marcar diferenças, obter prazer, como maneiras de construir suas masculinidades. Também não se considera que o autoritarismo pode reforçar modelos de masculinidade através do enfrentamento, do protesto. A consequência é que meninos agitados e indisciplinados podem se transformar em adolescentes violentos.

Para Carvalho (2004), a escola é um espaço importante para a formação de masculinidades e feminilidades; por isso, para que as escolas sejam capazes de oferecer um lugar onde estudantes do sexo masculino possam percorrer trajetórias de sucesso escolar, é preciso realizar discussões mais profundas em relação às questões de gênero.

A autora enfatiza que fracasso escolar e violência escolar têm sido discutidos no país como se não tivessem relação com relações de gênero, sendo que se referem a modelos de masculinidade. Para Carvalho (2003, p. 192):

Essas masculinidades fazem parte da trajetória de um grupo significativo dos nossos rapazes, principalmente aqueles que estão mais abaixo no conjunto das hierarquias de classe e de raça, um caminho que muitas vezes desemboca em atitudes anti- escola, em fracasso escolar, transgressão e, no limite, em violência social.

Diante disso, Carvalho considera que é urgente aprofundar os estudos articulando gênero e violência no âmbito da escola, considerando fracasso escolar, raça, classe e toda a complexidade envolvida.

O mesmo foi observado por Batista (2002) em sua pesquisa de mestrado, ao verificar que alguns alunos praticavam pequenos roubos e portavam armas para ter acesso a bens cobiçados, para ter uma sensação de poder e inverter a posição de submissão a que estão continuamente submetidos. Significava virilidade e a saída da condição de meninos para a de homens.

Isso vai ao encontro do que Moore (2000) argumenta em relação às fantasias de identidade e de poder, que, ao não serem alcançadas ou por serem questionadas, podem provocar reações na pessoa e culminar em ações violentas. A violência escolar pode ser compreendida a partir desses pressupostos, pois, como já foi elucidado anteriormente, as agressões físicas, verbais, ameaças, pichação, vandalismo que acontecem nas escolas permeiam as relações interpessoais entre estudantes, professores e funcionários em seu cotidiano, chegando a ser naturalizadas e omitidas.

A pesquisa de Souza (2002), realizada em escola e com classe de aceleração, aponta vários dos aspectos destacados pelos autores citados. Ela observou os ideais de comportamento exigidos aos alunos e alunas, as hierarquias na escola e na classe e estratégias de acesso ao poder criadas pelas meninas dessa classe. As alunas, discriminadas não só pela idade (eram mais velhas), mas também racialmente, não seguiam os ideais de comportamento e feminilidade impostas a elas pela professora, de modo que seus comportamentos agressivos pareciam buscar mudança das relações estabelecidas com todos aqueles em que se encontravam desnivelados socialmente, em busca do reconhecimento de suas vozes e subjetividades. Essa masculinidade foi atribuída às garotas pelos outros, ao passo que o reforço das feminilidades dessas alunas significava a manutenção das hierarquias impostas pela escola. Para a autora, a escola e a mídia são duas vias de acesso a informações que o mundo contemporâneo coloca à disposição das pessoas, que, por sua vez, ressignificam e realizam perfomances em determinadas situações e incorporações alternativas de gênero.

Louro (1999, p. 31) afirma que a escola, juntamente com outras instâncias sociais (mídia, igreja, justiça) exerce uma pedagogia da sexualidade:

Na escola, pela afirmação ou pelo silenciamento, nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, é exercida uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras.

Essa pedagogia deixa marcas no corpo. A autora argumenta que, por meio de processos culturais e plurais, produzimos, transformamos e tornamos a natureza, a biologia e os corpos históricos. Dessa forma, os corpos, as possibilidades sexuais e as identidades de gênero ganham sentido socialmente e são marcados e alterados continuadamente pela cultura. Adequamos nossos corpos a critérios estéticos, morais, de higiene, segundo os grupos aos quais pertencemos e assim inscrevemos nos corpos marcas de identidades e diferenciações.

A pedagogia da sexualidade exercida pela escola pode ocorrer de forma sutil e discreta, por meio de sua arquitetura, uniformes, regras disciplinares, conteúdos ministrados, possibilidades de exercer masculinidades (prática de esportes, agressividade, competitividade ou intelectualidade) e feminilidades (facilidade em expressar sentimentos), dessexualizando o espaço escolar, marginalizando aqueles que recusam essas imposições e disciplinamentos, como por meio da homofobia. Outra forma de disciplinar é treinar os corpos a partir de códigos de comunicação e expressão na intenção de produzir homens e mulheres civilizados.

No entanto, não se trata de um processo em que os sujeitos são meros receptores passivos; pelo contrário, estes estão implicados e ativos por meio da tentativa de disciplinar e controlar a si próprios (LOURO, 1999).

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