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PARTE I FORMAS DE HABITAR A VIDA ORDINÁRIA

CAPÍTULO 1 PODE ENTRAR, ISABELA

1.1 A minha trajetória até as casinhas do Abdelnur

Mudei de Santos para São Carlos em 2013 para cursar Ciências Sociais na UFSCar. Meus pais alugaram uma quitinete no bairro mais próximo da universidade e nela fiquei pelos dois primeiros anos. A pé chegava em quinze minutos na sala de aula, de bicicleta só precisava de cinco minutos. Dessa forma, passei os primeiros anos de graduação circulando, sobretudo, pelos territórios que rodeiam os campi da UFSCar e da USP. A distância maior que eu percorria era até o centro da cidade em situações eventuais, não cotidianas.

Minhas relações também se limitavam muito aos universitários moradores temporários da cidade (quase sempre naturais de outros lugares). Os únicos moradores de São Carlos que eu tinha certo contato era um ou outro comerciante de restaurantes e lojas que eu frequentava e os colegas universitários que nasceram e cresceram na cidade. De forma bem geral, por mais de um ano era essa a minha relação direta com os moradores e com a cidade. É evidente, porém, que indiretamente eu tinha relações. As fronteiras não são tão rígidas, mas tais conexões foram cada vez mais se alargando pelas experiências que tive durante os próximos anos.

No segundo ano de graduação, me inscrevi no processo seletivo de estágio superior da prefeitura de São Carlos. Eu e mais cinco estagiários fomos convocados no fim de julho de 2014 para exercer a função de entrevistadores na divisão do cadastro único10. Tal divisão está localizada dentro da sede da Secretaria Municipal de Cidadania

10 Quando faço referência ao Cadastro Único, existem duas diferenças: o espaço físico de atendimento dentro da Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social, o qual será nomeado neste texto com letra minúscula ou o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal que, segundo o site do Ministério de Desenvolvimento Social, “é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda, permitindo que o governo conheça melhor a realidade socioeconômica dessa população”. Nele são registradas informações como: características da residência, identificação de cada pessoa, escolaridade,

e Assistência Social (SMCAS), na região central de São Carlos. Este espaço pode ser considerado a ‘ponta’ ou a ‘porta de entrada’ para políticas sociais de âmbito federal, estadual ou municipal. O contato inicial das pessoas com tais políticas se dá através dos CRAS11 espalhados em diferentes regiões do município e pela já mencionada SMCAS que, além de abrigar também um CRAS, centraliza a divisão do cadastro único.

Durante os dois anos que ali estive por vinte horas semanais, foram muitos os aprendizados profissionais e ganhos pessoais. Desenvolvi reflexões mais aprofundadas sobre esse momento em Pinho (2017) que não caberia retomar aqui. No entanto, algumas das inquietações e questões que emanam desta experiência (e que vêm ganhando amadurencimento analítico com o tempo) são importantes para a compreensão do projeto que originou esta pesquisa. Enumero três conjuntos de questões que estão correlacionadas entre si e que interessa retomar nesse momento.

Primeiro, atuar no cadastro único me permitiu entrevistrar e cadastrar milhares de pessoas – na sua grande maioria mulheres – consideradas em situação de

“vulnerabilidade social”12. De modo geral, a relação que se estabelecia entre mim e a

pessoa (ou a família) entrevistada era uma conversa de certa forma mecânica e rápida, de aproximadamente meia hora. Eram formas inevitáveis para um fluxo de atendimento geralmente muito alto. No entanto, por mais que as atividades rotineiras deixassem o trabalho e as relações mecânicas, era perceptível que alguns rostos, conversas, histórias e vidas me marcavam. Não existem dúvidas de que o estágio me colocou em contato com tantas outras mulheres que pareciam à primeira vista completamente distantes da minha realidade, do meu mundo, do meu cotidiano, da minha vida. E suas vidas passaram a importar para mim.

Meu contato com os moradores de São Carlos se tornou mais cotidiano. Não somente com as entrevistadas, também com as pessoas que trabalhavam nesta secretaria.

situação de trabalho e renda, entre outras. A partir de 2003, o Cadastro Único se tornou o principal instrumento do Estado brasileiro para a seleção e a inclusão de famílias de baixa renda em programas federais, sendo usado obrigatoriamente para a concessão dos benefícios do Programa Bolsa Família, da Tarifa Social de Energia Elétrica, do Programa Minha Casa Minha Vida, entre outros. Também pode ser utilizado para a seleção de beneficiários de programas ofertados pelos governos estaduais e municipais. Por isso, ele funciona como uma porta de entrada para as famílias acessarem diversas políticas públicas. Este último será utilizado aqui com a primeira letra maiúscula ou como CadÚnico.

11 Atualmente existem os seguintes CRAS em São Carlos: Cidade Aracy, Santa Eudóxia, Santa Felícia, Sede (Centro), São Carlos VIII e Pacaembú.

12 A categoria “vulnerabilidade social” é polissêmica, objeto de consenso e dissenso. A noção utilizada por Castel (originária da desfiliação por uma questão da transformação do trabalho) é distinta da noção de vulnerabilidade utilizada frequentemente no campo da proteção social, pensada em termos de risco social, mais associada à capacidade de cada pessoa fazer face aos riscos e superá-los (SANTOS, 2016). Breda (2016) faz uma análise minuciosa deste conceito. Motta (2017) também discute tal categoria em sua tese.

Meu horizonte de relações se ampliou, principalmente minhas relações com mulheres. Ademais, passei a conhecer parcialmente a rede de serviços e programas sociais no município, bem como alguns agentes envolvidos nesta rede. Entre elas, conheci Daniela, com quem trabalhei por mais de um ano e que possui cargo de chefia na seção dos programas de transferência de renda. Também tive contato com a Flávia, coordenadora municipal do Programa Bolsa Família na condicionalidade da educação13.

Outro conjunto de questões fazem referência à cidade. Durante o estágio, certas situações foram muito significativas como as épocas de cadastramento das famílias que ganharam as casinhas dos conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida faixa 1 (PMCMV-1)14. A quantidade de pessoas a serem atendidas aumentava enormemente, formando filas demoradas. Visto que o sonho da casa própria estava em jogo, esses momentos envolviam ansiedade, tensão, nervosismo e muita expectativa. Passei a ter outro olhar e outra relação com a cidade, ou talvez passei a conhecer uma cidade outra. Como estagiária, era necessário ter alguma noção (pelo menos) dos nomes de postinhos de saúde, UBS, USF, CRAS, escolas, creches e bairros da cidade. Cidade Aracy I e II, Jardim Gonzaga, Santa Felícia, Santa Angelina, Água Vermelha, Santa Eudóxia, Jardim Zavaglia, Planalto Verde, Eduardo Abdelnur, entre outros nomes de bairros que, aos poucos, tornavam-se familiares para mim. Ao mesmo tempo, aumentava minha curiosidade em conhecê-los presencialmente, sobretudo os últimos três empreendimentos habitacionais do PMCMV-1.

Lembro-me bem quando os visitei rapidamente pela primeira vez em 2014. Fui com uma assistente social do CRAS Cidade Aracy fazer visita domiciliar. No caminho, o motorista da prefeitura passou pelos bairros apontando cada um. Percorremos de carro as ruas estreitas do Jardim Gonzaga - bairro muitas vezes mencionado por moradores de São Carlos como favela15, já as assistentes sociais geralmente o definiam como de alto grau

de vulnerabilidade social. Continuamos o caminho pela avenida Integração – espécie de

estrada asfaltada que possui vista de cima dos bairros Cidade Aracy I e II e do conjunto

13 As conversas no cadastro único auxiliaram nas dúvidas sobre a questão da condicionalidade e, além disso, pude observar parte do trabalho cotidiano das duas agentes estatais que lidam diretamente com a implementação do PBF. No entanto, pelas mudanças que ocorreram na pesquisa, tais conversas ficarão fora da dissertação.

14 Na época que estava no estágio, cadastramos as pessoas do conjunto habitacional Planalto Verde e Eduardo Abdelnur. Mais informações nos links: http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php/noticias-

2016/169722-sorteio-dos-enderecos-abdelnur-domingo.html e

http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php/noticias-2015/169320-pla.html. Último acesso em: 1/8/2018. 15 Rosa (2008) faz uma contextualização história da formação desse bairro.

habitacional Jardim Zavaglia - até chegarmos à casa que faríamos visita. Foi a primeira vez que vi as casinhas do Zavaglia e esse dia ficou em minha memória.

Por fim, durante o estágio e os últimos anos de graduação, surgiram questões e inquietações que se transformaram em objeto de pesquisa. As inquietações diziam respeito, sobretudo, às condicionalidades do PBF, especialmente a da educação. Chamava-me atenção que em certos períodos do ano havia uma frequência considerável de mães em situação de descumprimento dessa condicionalidade. Além de ir ao cadastro único, elas atravessavam outros espaços e mobilizavam pessoas na busca de solucionar esses problemas, muitas vezes em vão. Não havia o que ser feito pelos estagiários, apenas conseguíamos ver no sistema os nomes e as frequências relativas a cada filho. Orientávamos que procurassem a pessoa responsável por essa questão na Secretaria da Educação (naquele momento Flávia trabalhava nesta secretaria, hoje trabalha no cadastro único junto com a Daniela). Após encaminhar a ela não sabíamos o que aconteceria em seguida e eu, particularmente, ficava bastante curiosa.

De forma geral, na monografia (Pinho, 2017) busquei analisar a condicionalidade da educação do PBF a partir da rotina no estágio, pelo cotidiano de técnicos ‘na ponta’ que implementam os programas e lidam diretamente com seu público-alvo16. Além de analisar as interações neste espaço, também fiz entrevistas com titulares17 fora dele. No projeto para a seleção do mestrado pretendia dar continuidade às análises empreendidas na monografia, porém as duas pesquisas carregam diferenças significativas entre si no íntimo de suas propostas. No mestrado tinha a pretensão de exceder os limites do espaço institucional do cadastro único e focar, em especial, no residencial Eduardo Abdelnur. O olhar partia por outro caminho: pelo cotidiano de mulheres titulares dos programas Bolsa Família (PBF) e Minha Casa Minha Vida (PMCMV-1) que vivem nesse bairro.

16 LIPSKY(2010) e LOTTA(2009) são referências importantes nesse sentido, para apreender as interações entre as titulares e os “burocratas do nível de rua”.

17 As mulheres (quase sempre mães) “usuárias”, “sujeitos receptores”, “públicos-alvo”, “bolsistas”, “beneficiárias”, “responsáveis familiares” ou “titulares” são alvo e cumprem papel chave na implementação dos programas sociais brasileiros. Isto pode ser visto no próprio Decreto Nº 6.135, 26 de junho de 2007, artigo 6º que se refere ao Cadastro Único: “o cadastramento de cada família será vinculado a seu domicílio e a um responsável pela unidade familiar, maior de dezesseis anos, preferencialmente mulher”. A denominação “beneficiário” é a utilizada pelo MDS para pessoas que usufruem do programa, direta (enquanto menor dependente) ou indiretamente (enquanto membro adulto do domicílio) e é diferente do termo “responsável familiar”. Opto aqui, como fez GEORGES e SANTOS (2016) pelo termo “titulares” para evidenciar o fato de que elas não apenas recebem o benefício como devem cumprir às condicionalidades, além de que elas próprias não se identificam frequentemente com o termo do MDS. Por esses motivos expostos acima, utilizarei a desinência feminina.

E por que o residencial Eduardo Abdelnur? Durante o mês de maio de 2016, mulheres contempladas pelo PMCMV-1 e agora novas moradoras do bairro18 foram ao cadastro para questionar sobre a dificuldade de seus filhos frequentarem as aulas - o que poderia comprometer o recebimento do benefício do Bolsa Família19. Não existia nenhum equipamento público coletivo no bairro e as escolas mais próximas não tinham vagas. A prefeitura não disponibilizava, ainda, transporte com destino às unidades escolares. Como nesse momento já me atentava à questão da condicionalidade da educação, resolvi ir até lá sozinha. Fiz duas incursões etnográficas em 2016 que renderam algumas entrevistas com moradoras. A partir daí escolhi ter como ponto de partida para a pesquisa do mestrado o cotidiano das moradoras daquele espaço.

Dessa forma, os três conjuntos de questões que emergiram no período de estágio e que foram amadurecendo no processo de escrita de textos se desdobraram no projeto. Nele, busquei reunir os três interesses acima mencionados, ou seja, (1) a partir da trajetória e cotidiano das titulares (2) moradoras do bairro Eduardo Abdelnur, (3) me interessava compreender em que medida (e como) cumpriam a condicionalidade da educação do programa Bolsa Família. Ou seja, o projeto se interessava por questões referentes à gênero, habitação e políticas estatais. Existe a norma, porém é difícil de ser cumprida se consideradas as condições específicas do bairro e das vidas das titulares. Como, então, tais mulheres fazem para levar e buscar seus filhos nas escolas?

18 No dia 26 de abril de 2016, as chaves deste novo residencial foram entregues às 986 famílias

contempladas. Disponível em:

http://www.saocarlosagora.com.br/cidade/noticia/2016/04/25/73841/chaves-das-casas-do-residencial- eduardo-abdelnur-serao-entregues-nesta-terca-feira Último acesso em: 1/8/2018.

19 Sobre as condicionalidades do PBF, na prática os responsáveis devem matricular todas as crianças e adolescentes de 6 a 17 anos na escola e a frequência escolar deve ser de, no mínimo, 85% para quem possui de 6 a 15 anos e de 75% para jovens de 16 a 17 anos. Já na área da saúde, as crianças menores de 7 anos devem ser vacinadas e fazer o acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento. As mulheres gestantes devem fazer o pré-natal e ir às consultas médicas. O acompanhamento da frequência escolar é bimestral; já na área da saúde, é semestral. São aplicados efeitos gradativos nas famílias que se encontram “em descumprimento” das condicionalidades. Primeiro a pessoa recebe uma advertência que não afeta seu benefício. Se, no período de até seis meses, o descumprimento se repete, há o bloqueio do benefício (a família fica sem receber por um mês e esse pode ser sacado no próximo). Se depois de bloqueado, ocorrer novo descumprimento no período de seis meses, o benefício é suspenso por dois meses sem possibilidade de reaver as parcelas. O último e mais grave efeito é o cancelamento que só deve ocorrer após a família ter passado por acompanhamento da assistência social.

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