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PARTE I FORMAS DE HABITAR A VIDA ORDINÁRIA

CAPÍTULO 3 A VIDA SOCIAL DAS CASINHAS DO ABDELNUR

3.2 A questão social brasileira, o PBF e o PMCMV-1

Fonte: autoria própria (2018).

Mapa 10 - Trajeto a pé Abdelnur para o supermercado mais próximo Dia

Fonte: Google Maps (2018)

3.2 A questão social brasileira, o PBF e o PMCMV-1

Além de titulares do Programa Minha Casa, Minha Vida Faixa 1, Maria, Bela, Ana e Rosa são (ou foram em algum momento) titulares do Programa Bolsa Família. Como já

mencionado, as duas políticas são reconhecidas como grandes realizações dos governos petistas. Por enquanto interessa apresentar uma breve reconstrução histórica desse ‘pano de fundo’ no qual as titulares e suas famílias estão inseridas, ou seja, interessa perceber qual o contexto da questão social brasileira nas últimas décadas, em que momento as duas políticas foram implementadas no país, o que está por traz da construção das casinhas do Abdelnur e do fato de receber o Bolsa Família.

Referente a questão social que marcava o conflito urbano brasileiro entre a década de sessenta e oitenta, há relativo consenso na literatura de que ela estava relacionada principalmente à “integração” das classes trabalhadoras das periferias urbanas. A lógica era integrar os pobres e trabalhadores por meio do trabalho e acesso a direitos. O trabalhador era a figura central por meio da qual se pensava o problema social e suas tentativas de solução (FELTRAN, 2014; MOTTA, 2017). As políticas de assistência estavam, até o fim dos anos 1980, vinculadas principalmente ao universo do acesso ao mercado assalariado (GEORGES, RIZEK e CEBALLOS, 2014).

Lautier (2014) sustenta que desde 1980 opera-se uma mudança do “regime de governabilidade” no que diz respeito às políticas públicas latino-americanas. Tal mudança possui diversas facetas sendo, a mais importante e visível, a focalização ou as políticas de luta contra a pobreza que se dirigem a públicos-alvo. Ainda segundo o autor, no final dos anos noventa e início dos anos dois mil, as críticas das “políticas ultra-focalizadas” desenvolvidas anteriormente, levaram a uma mudança de “tática de governo dos pobres” em muitos países latino-americanos. Substituiu-se a “luta contra a pobreza” pela “luta pela vulnerabilidade”66. “Essas críticas, todavia, não levaram a um questionamento da estratégia fundada sobre o tríptico moralização, tecnicização e despolitização da questão da pobreza, mas conduziram a uma mudança profunda dos encaminhamentos práticos das políticas públicas dessa luta” (LAUTIER, 2014, p. 468). O elemento mais significativo dessa mudança foi, em sua visão, a invenção, multiplicação e popularização dos Programas de Transferência Condicionada de Renda. Como exemplos entre outros, tem-se o Oportunidades no México, Chile Solidário no Chile e o Bolsa Família no Brasil.

Posteriormente, então, entre o final dos anos noventa e início dos anos dois mil, a recuperação da questão social como horizonte e demanda marcou um novo cenário na América Latina e esses países começavam, portanto, a se configurar como um laboratório de políticas

66 Para o autor, nessa passagem à retórica da vulnerabilidade não há nenhum sinal de não moralização ou re- politização, na realidade passa da compaixão vitimizadora (o pobre que recebe ajuda) à atenção paternal (o vulnerável que é ajudado a se ajudar e que é protegido enquanto continua frágil).

sociais. Dessa forma, a partir da década de noventa, observa-se a emergência de uma nova agenda, que constitui um novo modelo de proteção social voltado ao enfrentamento e combate à pobreza, tendo como proposta principal os Programas de Transferência de Renda (GEORGES, RIZEK E CEBALLOS, 2014; LAUTIER, 2014; SANTOS, 2014; JACCOUD, 2013).

A conquista de direitos políticos no período de redemocratização não produziu o mesmo resultado do ponto de vista dos direitos sociais. O cenário de grave crise econômica, a adoção de medidas voltadas à estabilização monetária, a eficiência macroeconômica e a restrição dos gastos públicos, sobretudo a partir da segunda metade dos anos noventa no Brasil, restringiram as possibilidades de desenvolvimento de políticas sociais mais abrangentes e universais, dando espaço à implantação de ações mais focalizadas.

Apesar de sua análise estar muito imersa no contexto francês, Castel (1998) ajuda a pensar o debate brasileiro sobre a “questão social”. O autor busca entender o novo cenário, sobretudo na França a partir de 1980, marcado pela reestruturação produtiva no âmbito do trabalho; transformações econômicas, políticas e sociais e reforma neoliberal do estado. Afrouxavam-se as mediações públicas e estatais que anteriormente buscavam amenizar os efeitos desiguais da acumulação capitalista e garantir a efetivação e extensão dos direitos. Dessa forma, a relação salarial com o estado, antes vista como a chave para a obtenção de proteção e segurança e na qual se articulou toda uma parcela de direitos, desmanchava-se. O ponto central na sua análise é, portanto, o desmonte da sociedade salarial e um retorno dos patamares de insegurança anteriores a essa. Com a ascensão dos mercados informais e a precarização, os trabalhadores formais deixaram de ser a figura principal da “questão social”, passando aos “vulneráveis” as oscilações do mercado, aos desempregados.

Sobre a questão social contemporânea brasileira, Georges, Rizek e Ceballos (2014) sustentam que os lugares da produção do reconhecimento e de encontro “simbólico” - antes vinculado ao trabalho, sindicatos, proteção social e igreja católica -, parecem ter sido transferidos, nas últimas décadas, para as práticas e nichos de mercado, em um sistema concorrencial. O que se produz é uma sociedade meritocrática, individualizada e terceirizada, construída por uma moral da propriedade e não dos direitos.

A partir dos anos 1990 e, sobretudo, dos anos 2000, a grade de inteligibilidade do problema social se desloca da questão social ao problema da violência. A questão social do conflito urbano passa a ser a contenção do conflito violento; o conflito social se traduz em conflito criminal. Não se trata de extensão universal dos direitos da cidadania, tampouco da validade universal das garantias democráticas; a violência passa a ser o cerne do problema da

pobreza urbana. Nas últimas três décadas, esse deslocamento implica na representação dos pobres enquanto sinônimos de violência, marginalidade e criminalidade. O conflito se plasma agora em torno da ameaça à ordem pública, subjetivada em corpos, territórios e palavras. Trata- se de equacionar a vulnerabilidade ao potencial risco que eles representam (FELTRAN, 2014; MOTTA, 2017).

Nesse sentido, a depender da performance moral de cada sujeito ou grupo, oferecem-se doses da mistura paradoxal de proteção social e controle, expandindo direitos e privações, atendimentos e disciplinarização, etc. A partir dos anos 2000, observa-se um cenário contraditório do conflito: proliferação dos serviços sociais, sempre focalizados; vigilância e militarização dos territórios urbanos, igualmente focalizados. Esse mosaico de modos de gerir os pobres é radicalmente distinto daquela integração ou extensão regulada dos direitos sociais aos excluídos. No Brasil configuram-se atualmente duas figurações da pobreza que compõem um mesmo dispositivo, esse produz a “questão social” contemporânea: a do consumidor a integrar e a do bandido a encarcerar. Há, portanto, a lógica do mercado no solo urbano através dos recortes de “nicho de mercado” e das populações, “públicos-alvo” de marqueteiros e programas sociais (FELTRAN, 2014).

Os programas voltados para as populações pobres distribuem essa equação a partir de um continuum imagético que tem dois polos: em um a figura do “perigo” que deve ser rigidamente controlado, no outro a do consumidor, do empreendedor que deve ser “integrado” seja via crédito, seja pelo aumento da renda. Entre os dois polos, existem níveis distintos de “vulnerabilidades” que indicam diferentes “complexidades” de casos. Dessa forma, a gestão estatal do conflito urbano nos territórios e populações pobres tem sido feita nos últimos anos a partir de um continuum que vai das políticas assistenciais às políticas repressivas – todas elas concebidas e implementadas pela lógica da prevenção, combate e/ou gestão da violência (FELTRAN, 2014b; MOTTA, 2017). Ademais, para Feltran (2014) há um “repertório de regimes normativos” – estatal, do “crime” e religioso - que coexistem nas periferias urbanas e que ordenam a vida social. Embora os três sejam distintos e vivam em tensão entre si, eles encontram coesão no fato de regularem mercados monetarizados - o dinheiro que passa a mediar centralmente à relação entre os grupos recortados.

Na visão de Santos (2014a; 2014b), as intervenções do estado por meio dos novos programas de proteção social voltados para as famílias – estas vistas como solução humanizada para a resolução dos problemas de acesso à saúde, renda e proteção social da população considerada como socialmente vulnerável - têm se constituído nos países da América Latina em geral, como método dominante de combate à pobreza e de proteção social. Eles possuem,

na sua visão, um duplo sentido para a população, entre o cuidado e o controle. De um lado, um estado mais presente; de outro, trata-se de atingir a população em nível capilar e detectar quem se enquadra ou não nos critérios de receptividade dos benefícios.

Sob essa perspectiva e pensando especificamente no caso brasileiro, o programa Bolsa Família e o programa Minha Casa, Minha Vida são casos emblemáticos desse deslocamento da questão social. O primeiro é um programa de transferência condicionada de renda instituído em 2003 pelo governo federal que possui três eixos principais: transferência de renda, condicionalidades e programas complementares. Buscando responder problemas referentes ao caráter fragmentado e pouco eficaz dos programas anteriormente existentes desse mesmo formato, três deles - Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás – foram unificados no desenho do PBF e formaram o que hoje o constitui (MONNERAT et al., 2007; BICHIR, 2010). A inovação do PBF frente a outros programas de transferência condicionada de renda está na superação de um modelo limitado de proteção focado na inatividade, ele se diferenciou com uma perspectiva de complementação e não de substituição de renda, o que acaba por responsabilizar o poder público para além de situações de não trabalho. O critério de elegibilidade do PBF encontra-se, portanto, na insuficiência de renda e não na inserção no mundo do trabalho (JACCOUD, 2013; BICHIR, 2016).

Ainda neste contexto, o segundo programa social – O PMCMV - se insere em 2009 como um novo modelo de crédito imobiliário, apresentado para enfrentar a crise internacional e equacionar o déficit habitacional no país. Tal política coloca em diálogo o setor imobiliário, da construção civil e entidades empresariais. Revelam-se fortes vínculos entre capital financeiro e setor imobiliário e, paulatinamente, a política pública se transforma em um negócio altamente rentável (AMORE, C. S.; SHIMBO, L. Z.; RUFINO, M. B. C., 2015; BONDUKI, 2014; RIZEK et al., 2014; SHIMBO, 2010).

Fica evidente em São Carlos o caráter de mercado da política de moradia, bem como a pobreza como nicho de negócios, na contramão dos pressupostos do programa e dos direitos à moradia e à cidade como foram historicamente reivindicados. Eles configuram “modos de governo e procedimentos contábeis que ancoram as formas de triagem. Dessa perspectiva são dispositivos que criam sujeitos e objetos (os públicos-alvo) segmentados, vinculados a um universo de mínimos sociais fortemente assinalados por instituições e agências multilaterais” (RIZEK, 2016, p.11). Para finalizar este capítulo, a seguir apresento uma breve discussão crítica sobre os programas sociais latino-americanos e as relações de gênero.

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