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PARTE I FORMAS DE HABITAR A VIDA ORDINÁRIA

CAPÍTULO 1 PODE ENTRAR, ISABELA

1.2 As entradas em ‘campo’

Era essa a questão central do projeto e foi ela que me norteou no início da etnografia no Abdelnur em abril de 2018. Ao me apresentar às primeiras mulheres que conheci, identifiquei-me como mestranda da UFSCar que pesquisava moradoras daquele bairro que são beneficiárias do PBF. Aos poucos fui me dando conta (não sozinha, também sob orientação do Gabriel) que essa estratégia de delimitar o campo à minha questão de pesquisa poderia prejudicar a própria etnografia. Fiz, então, rearranjos tanto na forma que me apresentava às pessoas quanto na própria metodologia. Como se verá a seguir, esse processo foi lento, estendendo-se desde as formas de entrada no campo até a escrita da dissertação. Entendo que tal processo faça parte do próprio fazer etnográfico, falarei mais propriamente sobre isso nessa e na próxima seção.

Maria foi a primeira interlocutora que fiz contato no início de abril 2018. Dizer a ela no dia que nos conhecemos sobre meu interesse em pesquisar as beneficiárias do programa Bolsa Família que moram no Abdelnur teve alguns efeitos. Somente com o tempo pude perceber e repensar essa estratégia que poderia mais fechar do que abrir portas; ela talvez delimitasse as relações que eu nem sequer havia começado ainda. Por exemplo, era perceptível que Maria havia mobilizado previamente sua nora. Ela tinha entendido conforme minha explicação que Bela seria ideal para minha pesquisa: é beneficiária do PBF; moradora do Abdelnur; está sempre lá para me receber e conhece muitas outras mulheres. Além da Bela, Maria também falou sobre mim para suas vizinhas mais próximas, caso eu quisesse conhecê-las. No entanto, ela entendeu que não me interessaria conhecer sua filha Fabi e sua nora Jéssica que também recebem o benefício do PBF, mas que não moram no Abdelnur. Ela compreendeu, tal como eu expliquei, qual era o foco, o que era central. Com isso, Maria mobilizou sua rede, delimitou conforme meu recorte e se preocupou em me apresentar à Bela, Verônica, Dona Leia e Cristina – todas recebem o benefício do PBF e são moradoras do Abdelnur, todas titulares do PBF e PMCMV-1.

Maria provavelmente falava de mim para outras pessoas como “a Isabela que pesquisa o Bolsa Família aqui no bairro” e, dessa forma, uma espécie de rótulo era atribuído a mim logo de início. Tiveram situações que são exemplos de reações à tal entrada. A primeira delas foi quando uma vizinha de Maria disse ter certo receio em relação a mim, porque estavam cortando muitos benefícios do PBF e eu poderia ser uma

espécie de ‘agente fiscalizadora’ que poderia fazer algo que as prejudicasse. Outra reação a essa entrada: por ter me aproximado muito de Bela, Maria disse para mim, com tom de ciúmes, “vou voltar a receber Bolsa Família para você vir me visitar mais viu, Isabela”. Logo fui percebendo que essa primeira estratégia de apresentação e entrada poderia ser repensada porque além do risco de causar certa ameaça a algumas mulheres, estava determinando os caminhos futuros do campo.

Também cheguei a mencionar meu interesse na questão escolar. Quando posteriormente conheci outras moradoras sem a mediação de Maria e Bela, resolvi seguir por esse caminho que trouxeram novos resultados. Era diferente de dizer do PBF porque não causava o medo da fiscalização, mas poderia gerar outro que eu não imaginava de início: o do Conselho Tutelar. Laura - uma criança de dez anos e filha de Ana - disse que correu para sua casa quando me viu, porque sua amiga havia lhe falado que eu fazia uma pesquisa sobre as escolas do bairro e, então, pensou que eu pudesse ser do Conselho. É interessante notar que para algumas mulheres e crianças minha presença era contraditória. Eu não representava uma ameaça por todos os códigos presentes em meu corpo, mas por esses mesmos códigos eu poderia apresentar outro tipo de ameaça, sobretudo como agente estatal. Muitas vezes fui confundida com assistente social, psicóloga ou conselheira tutelar.

Demorei para perceber que na realidade eu estava muito presa às questões de pesquisa e categorias estabelecidas a priori. Encontrei-me em um dilema quando, por exemplo, me aproximava cada vez mais de Bela que não se encaixava exatamente na minha questão inicial de pesquisa. Isso porque suas filhas que moram com ela ainda não têm 6 anos de idade, suas frequências escolares não são controladas e, portanto, não existe o risco de descumprir a condicionalidade da educação do PBF. No entanto, como Bela estava gestante, ficava mais em casa e podia me receber com maior frequência que as outras mulheres. Nós nos aproximávamos cada dia mais e eu fui deixando que isso acontecesse. Com o desenrolar de nossa intimidade, ela me permitia que eu acompanhasse seu cotidiano, de sua família e de suas vizinhas.

Desse modo, permiti que o campo me levasse e nesse movimento criava diferentes graus de intimidade com cada uma das moradoras que eu conhecia. Passei a anotar o que as mulheres queriam me contar, deixei que os temas que elas consideravam importantes aparecessem. E aquilo que elas queriam me contar passaram a ser o que me interessava saber. Nesse movimento, a vida cotidiana dessas mulheres passou a ser central, na realidade a vida de suas casas se tornou o foco.

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