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Capítulo III – A INSTABILIDADE INERENTE À POÉTICA HERBERTIANA

3.2. A poética cinética de Herberto Helder

3.2.1. A mobilidade textual

Em Herberto Helder, talvez o aspecto mais explícito de assentimento a uma poética movente seja a constatação do que denominamos mobilidade textual, ou seja, o conhecimento de que seus textos passam por constantes transformações. Sobre esse aspecto, transcrevamos as palavras do poeta português Manuel de Freitas:

[...] pelo elevado grau de exigência a que é sujeita, a poesia de H.H. é, digamos assim, estruturalmente instável (talvez se pudesse mesmo falar desta obra como uma autofagia demiúrgica). Reparamos, por exemplo, que há textos e livros que desaparecem ou que vão sendo reescritos e reordenados no corpus lábil da obra herbertiana. 168

E acerca dessa mobilidade textual, citemos respectivamente, a título de exemplo, Cobra (1977) e Apresentação do Rosto (1968):

As versões têm variado de destinatário para destinatário, não atendendo a qualquer conjunto de peculiaridades dos destinatários, mas porque o livro, em si mesmo, digamos, flutua. É um livro em suspensão, talvez só essa suspensão seja citável. Não é excitante que um livro não se cristalize, não seja «definitivo»? [...] Gostei da sua pergunta sobre o que seria citável. Sim, o que é citável de um livro, de um autor? Decerto, a sua morte pode ser citável. E, sobretudo, o seu silêncio. 169

Não deixa de ser curioso observar que até 1985 (ano em que é publicada a quinta edição de Os Passos em Volta) Apresentação do Rosto vai constar da autobibliografia de H.H. Só em 1988, tendo em conta o conjunto de obras do autor enunciado em Última Ciência, o livro de 1968 é excluído ou, se preferirmos, renegado [...] Por outro lado, o livro não é imediatamente renegado, sofrendo, pelo contrário, um longo processo de amputação e

168 FREITAS, Manuel de. Uma espécie de crime: apresentação do rosto de Herberto Helder. Lisboa: & etc, 2001. p. 17.

169 HELDER. Apud. DIOGO, Américo António Lindeza. Herberto Helder: Texto, Metáfora, Metáfora do Texto.

Coimbra: Almedina, 1990. p. 63.

reescrita parcial que vai de 1970 a 1994 [...] Em rigor, como vimos já, só passados vinte anos é que Apresentação do Rosto desaparece da bibliografia pessoal de H.H. E o mais provável é que nunca cheguemos a saber as razões desse progressivo abandono. 170

O trecho que compõe a primeira citação pertence a uma carta de Herberto Helder escrita para a revista Abril171, destinada especificamente a Eduardo Prado Coelho. Quando houve a publicação de Cobra, em 1977, Herberto Helder teria distribuído exemplares desse livro com correções manuscritas diferentes entre si. Desse modo, podemos dizer que existiram diferentes versões do livro Cobra oferecidas ao público leitor, e não apenas uma versão única e definitiva. No trecho da carta de Herberto Helder, notamos que o poeta se interessa pela suspensão, quer dizer, pela composição de textos que não se fixem, que não se enraízem.

Além desse episódio a respeito das diferentes versões da primeira publicação de Cobra, temos ainda as modificações efetuadas pelo poeta no transcorrer das edições desse livro. Mencionemos um exemplo:

E então vinha a baforada do estio como se abrissem uma porta defronte do ar redondo. Também se enredava o Outono nos pulmões das casas. E guardava-se o veneno

nas arcas, a roupa onde

se trava o brilho. O Inverno fazia

um remoinho nas câmaras, seus buracos expulsavam nebulosas para as ininterruptas paisagens

cinematográficas.

Um dia a Primavera era cruel como um colar de pérolas. 172 [grifos nossos]

Na edição de setembro de 2004, encontramos esse mesmo poema do livro Cobra reescrito, ou seja, com algumas modificações significativas:

170 FREITAS, Manuel de. Uma espécie de crime: apresentação do rosto de Herberto Helder. Lisboa: & etc, 2001. p. 22-23.

171 Carta originalmente encontrada em: “A poesia vitaliza a vida”: carta a Eduardo Prado Coelho [06/10/1977], Abril, n.º 1, Lisboa, 1978, p. 46.

172 HELDER, Herberto. Cobra, Edições «& etc.», Julho/ Agosto de 1977.

E então vinha a baforada do estio como se abrissem uma porta defronte do ar exaltado. Também se enredava o outono nos pulmões das casas. E guardavam-se lentas estrelas

nas arcas, a roupa onde

o brilho se dobra. O inverno fazia

um remoinho nas câmaras, seus buracos expulsavam a espuma para as ininterruptas paisagens

cinematográficas.

Um dia era redonda a primavera. 173 [grifos nossos]

Podemos observar que palavras foram trocadas, um verso foi suprimido, novas imagens poéticas passaram à existência e as iniciais maiúsculas referentes às estações do ano deixaram simplesmente de existir; concluindo, não foram pequenas as alterações promovidas pelo poeta, seus versos realmente se transmudaram. É interessante atentarmos também para o título do livro, Cobra, já que esse réptil troca de tempos em tempos sua pele, ou seja, encontra-se sempre num visível processo metamórfico, tal como o livro de Herberto Helder.

Desse modo, os poemas devem também se submeter à “troca de muda”, quer dizer, ao processo de reescritura.

O trecho que, por seu turno, compõe a segunda citação se refere a um texto renegado por Herberto Helder, Apresentação do Rosto (1968). Essa obra, já de maturidade, terá a seguinte destinação: dois de seus textos passarão a integrar a terceira edição de Os Passos em Volta com os títulos de Lugar Lugares e Doenças de Pele; em Photomaton & Vox, teremos, com algumas modificações, cerca de quatro textos originalmente pertencentes a Apresentação do Rosto (“uma ilha em sketches”, “os diálogos”, “introdução ao quotidiano” e

“os ofícios da vista”), e ainda em “os cadernos imaginários” e “as transmutações” se constata a presença de alguns excertos oriundos do livro de 1968; em Do Mundo, de 1994, temos o texto em “prosa” de Apresentação do Rosto convertido à forma poética, tornando um tanto vazia a distinção entre prosa e poesia na obra herbertiana174.

173 HELDER, Herberto. “Cobra”. In: Ou o poema contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. p. 305.

174 FREITAS, Manuel de. Uma espécie de crime: apresentação do rosto de Herberto Helder. Lisboa: & etc, 2001. p. 21-22.

Como podemos notar, Herberto Helder, em suas composições poéticas, não possui compromisso com qualquer forma de fixidez, identidade e estabilidade. São conceitos tidos como ilusórios e que, por sua vez, não se coadunam com as contradições, com os paradoxos, com as “irracionalidades” encontráveis no mundo empírico: o que resta então ao poeta é a árdua tarefa de nomear o devir, de apreender a instabilidade inerente às coisas. Por essa razão, os poemas devem ser transmudados, mutilados, suprimidos, enfim, revisitados incessantemente, já que são igualmente materialidades não escapáveis ao vir-a-ser:

O ponto não é estabelecer um sistema de referências, instituir leis, consumar um mecanismo. Digo que o ponto é propiciar o aparecimento de um espaço, e exercer então sobre ele a maior violência. Como se o metal acabasse de chegar às mãos – e batê-lo depois com toda força e todos os martelos. Até o espaço ceder, até o metal ganhar uma forma que surpreenda as próprias mãos [...] O último ponto será devorar e ser devorado espacialmente. Por mais que se gaste nunca se gasta, e nunca se gasta a gente. Aquilo que mantém uma pessoa é a surpresa de existirem tantos espaços a chegar de tantos lados [...] e não existe porta que não abra para outra obra por abrir”.175