• Nenhum resultado encontrado

O sistema de versões como metodologia pertinente

CAPÍTULO II – A MOBILIDADE DOS TEXTOS QUINHENTISTAS

2.3. O sistema de versões como metodologia pertinente

No século XVI, vislumbramos que a produção poética irrompe em meio a uma sociedade marcada pela oralidade, muito diversa da que encontramos nos dias correntes. Não havendo os princípios que norteiam a cultura impressa, temos outro paradigma de produção, transmissão e recepção de obras, semelhante ao encontrável na poética medieval. Por isso, autores como Paul Zumthor e Bernard Cerquiglini que, por sua vez, dedicaram muitos de seus estudos à compreensão da poética medieval, puderam ser aplicados à compreensão da poética quinhentista portuguesa.

No século XVI, surge a convivência entre manuscritos e impressos. Neste contexto em que predomina ainda a transmissão oral e, portanto, não-impressa, encontramos uma poética movente ou inacabada. A noção de autoria, tal qual a formulada durante o século XVIII, é estranha à era pré-imprensa. No século XVI, podemos falar em posse sobre um texto, mas não em propriedade, já que os direitos autorais surgirão apenas no século XVIII. Além disso, deparamo-nos com muitos problemas atinentes à atribuição de autoria, tais como:

manuscritos não-autógrafos, manuscritos sem atribuição de autoria (anônimos), manuscritos cuja atribuição de autoria é duvidosa, entre outros.

O problema se expande ainda mais quando tentamos desvendar a “intenção do autor” num determinado texto, já que o problema quanto à atribuição de autoria constitui regra nesse período. Além disso, no século XVI, expusemos em tópicos anteriores que a forma de produção, transmissão e recepção das obras quinhentistas gerava inúmeras variantes, a saber, as “variantes de circulação”, as “variantes de leitura criativa” e as

“variantes de autor”. A pergunta que coube à posteridade se configura do seguinte modo:

Como lidar com este excesso existente em poéticas não confeccionadas segundo os princípios que regem a cultura impressa ocidental?

Quando a oralidade/vocalidade detém um forte papel na elaboração de uma poética – no caso, as poéticas medieval e quinhentista -, percebemos o quão os conceitos são imbuídos de historicidade. Os conceitos de obra fechada e acabada, de autoria, de leitor e de leitura, tais como os conhecemos, pertencem à cultura impressa. Portanto, quando a poética se traduz por um inacabamento, é necessário perscrutarmos novos modos de compreensão e análise, não incorrendo no equívoco de utilizar metodologias inadequadas ao contexto histórico-literário averiguado.

Bem como na Idade Média, temos que a produção poética quinhentista deva ser, quando possível, analisada segundo um “sistema de versões”. A filologia do século XIX buscou reduzir o excesso, não compreendendo que a existência das variantes, na verdade, é um princípio que rege poéticas cuja transmissão se dá sobretudo pela oralidade. Hoje, com os estudos medievalistas de Paul Zumthor, Bernard Cerquiglini e outros, convém encontrarmos outra metodologia que, por sua vez, compreenda e inclua as variantes ou “o excesso feliz”, nas palavras de Cerquiglini.

Para salvaguardar a historicidade de poéticas anteriores à invenção da imprensa, devemos compreender as variantes de um mesmo texto, na verdade, como um “texto múltiplo153”. Devemos realizar o cotejo entre as variantes, lê-las e as compreender como um sistema de versões, sem hierarquizá-las entre si.

Nesta direção, os conceitos de “mouvance” (modèle/variations) e de “variance” se opõem à concepção filológica tradicional de acabamento, de um autor determinado e de uma única versão. Em vez de buscarmos o texto que supostamente originou as variantes, em vez de tentarmos atribuir cada variante ao seu respectivo autor, devemos contemplar esse “texto múltiplo” gerado por poéticas moventes. Então, indagações como “Qual o autor da primeira versão?”; “Qual a primeira versão que teria originado as demais?” são desprovidas de sentido

153 Expressão cunhada por Alexandre M.Garcia, editor da poesia de Sá de Miranda.

Cf. GARCIA, Alexandre M. (ed.). Poesia de Sá de Miranda. Lisboa: Editorial Comunicação, 1984.

num contexto em que os princípios que regiam a poética eram outros.

Na verdade, o saber filológico tradicional estaria interessado em ordenar hierarquicamente textos que, a princípio, não seguiam – nem poderiam seguir - normas condizentes à cultura impressa. Portanto, não é pertinente a busca do arquétipo em poéticas que têm o seu respaldo na mobilidade, inerente ao processo de produção e de transmissão da poesia do século XVI.

O saber filológico tradicional – Lachmann, Bédier, entre outros - tentou ordenar os textos medievais utilizando critérios da cultura impressa (obra fechada, contida em si mesma), quer dizer, intentou compreender um período aplicando-lhe critérios extrínsecos, anacrônicos.

A título de ilustração, Hans Walter Gabler incumbiu-se de editar o Ulisses, livro novecentista do escritor irlandês James Joyce. O empreendimento era custoso e árduo, pois sabemos que o escritor irlandês promoveu inúmeras alterações à sua obra de centenas de páginas. Apesar das dificuldades, a edição de Hans Walter Gabler se concretizou, permanecendo como a melhor entre os anos de 1986-1990. Pouco tempo depois, críticos demonstraram as fragilidades e os defeitos do empreendimento editorial, sendo que o próprio Hans Walter Gabler chega à conclusão da impossibilidade de estabelecer obras tão sujeitas a mutações como o Ulisses, de James Joyce. Quer dizer, se um livro do século XX oferece dificuldades instransponíveis para o seu estabelecimento, o que diremos de obras anteriores à cultura impressa?

Por isso, os conceitos de “mouvance” e “variance” permitem estudos mais coerentes no tocante à poética do século XVI, uma vez que a poética quinhentista traz a mesma problemática verificada na poética medieval, onde há a predominância da transmissão oral. Citemos, nessa direção, as considerações de Roger Chartier acerca do estabelecimento de textos com inúmeras variantes:

Como efeito das práticas da editora e do trabalho de colaboração de muitos agentes, cada variante, até mesmo a mais estranha e a mais inconsistente,

deve ser compreendida, respeitada e possivelmente editada de modo a transmitir o texto em uma das múltiplas modalidades de sua escrita e leitura.

O conceito de um ideal texto “original”, visto como uma abstrata entidade lingüística presente atrás das diferentes instâncias de um trabalho, é considerado uma completa ilusão. Assim, editar um trabalho não deve significar a recuperação desse texto inexistente, mas sim tornar explícito tanto a preferência dada a uma das diversas “formas registradas” do trabalho quanto as escolhas concernentes à “ materialidade do texto” – isto é, mostrar suas divisões, sua ortografia, sua pontuação, seu lay-out etc. 154

Por fim, a compreensão da “mouvance” ou “variance” como inerentes ao processo de produção, transmissão e recepção da poética do século XVI nos leva à compreensão de que as composições literárias deste período se mostram mais como uma relação entre textos e não tanto como obras estanques, ou melhor, como um “texto múltiplo”. Conseqüentemente, uma metodologia filológica que “elogie as variantes”, além de estar em consonância com o contexto histórico-literário em que os textos foram produzidos, vem ganhando maior plausibilidade em razão dos recursos oferecidos pela informática.

Para abarcar as variantes, tem-se elaborado, muitas vezes, a edição eletrônica dos textos. Em vez de reduzirmos as versões a um texto único o que, por sua vez, retira-lhes toda a historicidade, temos esta possibilidade de editarmos em CD-ROM todas as variantes existentes sobre um determinado texto. O leitor ficaria ciente do quão são diversos os princípios poéticos que regem o período anterior à cultura livresca. Teria também a oportunidade de cotejar as variantes, estabelecendo uma leitura não-linear, quer dizer, uma leitura hipertextual. Promoveria uma relação entre os textos, compreendendo-lhes o processo de produção, transmissão e recepção, além de travar contato com os problemas camuflados pelas edições que tentaram estabelecer as composições, tais como a busca da intencionalidade autoral155, do arquétipo, de um texto estável e superior, dentre outros. Portanto, uma edição e

154 CHARTIER, Roger. “Dom Quixote na tipografia”. In: Os desafios da escrita. Tradução de M. L. Moretto.

São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 41.

155 Cf. COHEN, Philip (Ed.) Devils and Angels: Textual Editing and Literary Theory. Charlottesville: University Press of Virginia, 1991.

Ver McLaverty, James. “Issues of Identity and Utterance: An Intentionalist Response to ‘Textual Instability’”.

McLaverty busca a intenção autoral da declaração do texto, sendo o texto produto pretendido de certos atos, tais

uma leitura adequadas que abarquem a mobilidade das composições inerentes ao período são perfeitamente evidenciadas pelos recursos eletrônicos.

Transcrevamos as reflexões de Bernard Cerquiglini no tocante à edição eletrônica dos textos que, por sua vez, coadunam-se com as de Jerome McGann156:

Ensuite, on ne quite pas avec elles l’espace à deux dimensions de la page imprimée: l’écriture médiévale est mise em regard, et non pas em mouvement. La solution est alleurs [...] La visualisation et la manipulation informatiques des donnés textuelles ont récemment progressé dans la technologie de l’écran, et dans sa gestion. Le progrès est tel que l’ordinateur, dans sa pratique la plus quotidienne, met en présence d’une forme de la matière écrite que l´on ne peut plus qualifier de livresque; nous parlerons de disposition écranique. L’écran qu’élaborent et raffinent toujours plus les techniciens est à la fois dialogique (il offre une interaction constante du consultant de la machine) et multidimensionnel (il permet la consultation conjointe, par fenêtrage, de données appartenant à des ensembles disjoints).

Utilisant ces deux propriétés, on peut concevoir un type d’édition d’une œuvre médiévale, issue de cette réunion d’emsembles disjoints qu’est le codex, qui ne serait plus soumise à la structure bidimensionnelle et close de la page imprimée: une disquette accueille des masses textuelles variées, que le lecteur consulte en les faisant apparaître diversement sur l’écran d’ordinateur. 157

Portanto, a edição eletrônica permite um formato condizente com as composições medievais, quinhentistas, entre outras. O livro, levando em consideração suas potencialidades materiais, acaba não deixando transparecer o caráter dialógico e o espaço multidimensional

como a expressão, a publicação, entre outros. McLaverty analisa a questão das emendas elaboradas pelos editores (tido às vezes como um co-autor, quão grande suas interferências no texto de um determinado autor – tanto da tradição impressa quanto da manuscrita).

156 MCGANN, Jerome. “The Rationale of Hypertext”, 1996, <http://jefferson.village.virginia.edu/public/jjm2f/

rationale.html>. Acesso em: 15 junho 2008.

McGann reflete sobre o constante processo metamórfico pelo qual os textos passam, a mobilidade, a importância do contexto histórico em que o texto é elaborado e atualizado pelos seus leitores e a existência de variantes.

Além disso, levanta a possibilidade de recriação material virtual do livro em edições eletrônicas.

157 CERQUIGLINI, Bernard. Éloge de la variante. Histoire critique de la philologie. Paris, Des travaux/ Seuil, 1989. p. 112-113.

Tradução minha: Por conseguinte, não saímos com elas (outros tipos de edição) do espaço bidimensional da página impressa: a escrita medieval é fixada sob o olhar, e não colocada em movimento. A solução está em outro lugar. [...] A visualização e a manipulação informática dos dados textuais recentemente têm progredido na tecnologia do ecrã, e em sua gestão. O progresso é tal que o computador, em sua prática mais cotidiana, põe em presença uma forma de matéria escrita à qual não podemos mais qualificar de livresca; falaremos de disposição écranique. O ecrã que os técnicos elaboram e refinam sempre mais é ao mesmo tempo dialógico (ele oferece uma interação constante entre consultor e máquina) e multidimensional (permite a consulta conjunta, por fenestração, de dados que pertencem a conjuntos separados). Utilizando estas duas propriedades, pode-se conceber um tipo de edição de uma obra medieval, procedente desta reunião de conjuntos separados que é o códice, que não seria submetida à estrutura bidimensional e fechada da página impressa: um disquete acolhe massas textuais variadas, que o leitor consulta fazendo-os aparecer diversamente sobre o ecrã de um computador.

necessários à restituição da mobilidade das composições analisadas. Para finalizarmos, contemos com as palavras de Bernard Cerquiglini que, por sua vez, sintetizam nossa conclusão sobre o capítulo: “Car l’ordinateur, par son écran dialogique et multidimensionnel, simule la mobilité incessante et joyeuse de l’écriture médiévale, comme il restitue la prodigieuse faculté de mémoire de son lecteur, mémoire qui définit sa réception esthétique, fonde le plaisir qu’il y prend.” 158

158 CERQUIGLINI, Bernard. Éloge de la variante. Histoire critique de la philologie. Paris, Des travaux/ Seuil, 1989. p. 114-115.

Tradução minha: Pois o computador, por seu ecrã dialógico e multidimensional, simula a mobilidade incessante e feliz da escrita medieval, como também restitui a prodigiosa faculdade de memória de seu leitor, memória que define sua recepção estética, fundo de prazer que lhe toma conta.

CAPÍTULO III- A INSTABILIDADE INERENTE À POÉTICA