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CAPÍTULO II – A MOBILIDADE DOS TEXTOS QUINHENTISTAS

2.2.1. Considerações sobre as variantes na poética quinhentista portuguesa

2.2.1.2. Variantes de leitura criativa

Era também corriqueiro as damas e os senhores pertencentes à nobreza pedirem aos poetas que lhes mandassem versos ou que fizessem glosas de motes alheios. Para tal intento, era comum a cópia de manuscritos autógrafos, ou seja, copiados de escritos do próprio autor. Copiavam-se, também, folhas avulsas e seqüências de poemas de outras antologias particulares122. Desse modo, os poemas iam sendo divulgados, transmitidos, gerando diversas versões de um dado texto. Muitas vezes, a solicitação de versos e de glosas de motes alheios acabava ampliando a rede de poemas, gerando, por meio da circulação,

“variantes de leitura criativa”.

a possibilidade de um “diálogo” entre os textos dos autores portugueses, pois a noção moderna de autoria era ainda incipiente.

Na literatura renascentista, o que valia era o “bem imitar os modelos”. Isto poderia significar uma tradução de textos estrangeiros – já que as línguas vulgares sofriam um processo de legitimação como linguagem de cultura -, ou uma recriação sobre um modelo preexistente procurando, na medida do possível, emulá-lo:

Na transição do manuscrito para o impresso podemos ver também uma transição da obra anônima (ou coletiva) para a obra autoral, ou um momento em que a noção de autoria começa a se formar de maneira mais consistente, mas que ainda é enfraquecida pelas peculiaridades imanentes à transmissão manuscrita e oral da poesia. Nesse meio termo entre o manuscrito e o impresso, entre a obra coletiva e a autoral, subsiste ainda uma criação literária que se mostra mais como uma relação entre textos do que como uma obra fechada, acabada, contida em si mesma [...] Na época havia algo parecido com o que hoje chamamos de intertextualidade. Havia os poemas de Petrarca, que poetas procuravam transportar para a língua portuguesa, traduzindo, imitando, recriando, transcriando, com fazem hoje muitos tradutores (vide Haroldo de Campos) 124

Antes da invenção da imprensa, não tínhamos uma preocupação tão rígida com a questão da autoria em parte considerável da produção poética quinhentista:

Seriam os impressores os primeiros a se preocupar em procurar o verdadeiro autor das obras que imprimiam e a tentar desembaraçar o novelo criado pelos manuscritos. E mesmo alguns desses editores não deixam de publicar obras sem indicar o nome de seus autores, como acontece com a tragédia Castro, de Antônio Ferreira, publicada em 1587 sem nome de autor, com uma tradução de Os Lusíadas para o latim, de 1622, publicada sem nenhuma alusão ao nome de Camões, e com a Sylvia de Lizardo, publicada anonimamente pelo impressor Alexandre de Siqueira, em 1597, e mais tarde atribuída a Frei Bernardo de Brito. 125

Portanto, a noção de obra original atribuível a um determinado sujeito empírico funciona de modo anacrônico neste contexto histórico, já que o princípio da imitatio renascentista não se coaduna com a questão da “propriedade intelectual” contemporânea.

124 HUE, Sheila Moura. “Em busca do cânone perdido”. In: Revista Camoniana, Bauru, São Paulo, 3ª série, v.

12, 2002. p. 185, 187.

125 Idem. p. 176.

Conforme assevera João Adolfo Hansen acerca da imitatio renascentista não-servil126: “Como a emulação é prescritiva, tecnicamente não há perigo de ‘plágio’, embora possa ocorrer, quando não opera o ingenium (engenho) próprio127”.

São inúmeros os exemplos de composições que se fundamentam no espírito da imitatio renascentista e que, por isso, geraram várias versões de um mesmo texto. Como exemplo, poderíamos mencionar os sonetos portugueses que, por sua vez, recorreram a modelos petrarquistas. O poeta italiano, Francesco Petrarca, viveu no século XIV e consolidou a forma soneto entre seus pares. Tinha como musa, Laura, uma mulher que teria avistado na Igreja de Santa Clara de Avignon e que lhe despertou um amor duradouro.

Petrarca, por sua vez, tematiza este amor por Laura em seus célebres sonetos, uma vez que trava pouquíssimos contatos com sua amada, pois ela era casada. Laura morrerá cedo vitimada pela peste negra. Laura, nos sonetos petrarquianos, aparece como uma mulher alçada à categoria de anjo, sublime e idealizada, evidenciando a doutrina filosófica do neoplatonismo.

Para demonstrar a imitatio renascentista entre os portugueses, transcrevamos, primeiramente, o célebre soneto petrarquista128 - e sua respectiva tradução - que, por sua vez, serviu como modelo para os sonetos de Diogo Bernardes e Luís de Camões129, a título de exemplo de “variantes de leitura criativa”:

Quest’anima gentil, che si diparte, Anzi tempo chiamata all’altra vita,

126 Como exemplo emblemático de imitação servil, conferir as diversas versões do soneto “Horas breves de meu contentamento” ao final da presente dissertação (vide em anexo). Não correspondem a “variantes de leitura criativa”. Na verdade, trata-se de imitações servis ou variantes de circulação. Ademais, muito provável estas versões serem “variantes de circulação”, uma vez que se constata pouco “engenho próprio” de uma versão para outra.

127 HANSEN, João Adolfo. “Autor”. In: Palavras da crítica-tendências e conceitos no estudo da literatura. José Luiz Jobim (org.). Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 28.

128 PETRARCA, Francesco. “Quest’anima gentil, che si departe”. In: Vinte sonetos de amor e uma canção de despedida. Tradução e notas de Pedro Lyra. Disponível em:

<http://www.academia.org.br/abl/media/RB%20-%2048%20-%20POESIA.pdf> ; Acesso em 10 junho 2008.

129 HUE, Sheila Moura. Antologia de poesia portuguesa. Século XVI: Camões entre seus contemporâneos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005. p. 48.

Se lassuso è, quant’ esser de’, gradita, Terrà del ciel la più beata parte.

S’ella riman fra ’l terzo lume e Marte, Fia la vista del Sole scolorita;

Poi ch’a mirar sua bellezza infinita L’anime degne intorno a lei fien sparte.

Se si posasse sotto ‘l quarto nido, Ciascuna delle tre saria men bella, Ed essa sola avria la fama e ’l grido.

Nel quinto giro non abitrebb’ ella;

Ma se volta piu alto, assai mi fido, Che con Giove sia vinta ogni altra stella.

Tradução por Pedro Lyra Esta alma gentil, que se departe, Chamada antes da hora à outra vida, Se é lá no além, como era aqui, querida, Terá do céu a mais bendita parte.

Se ela ficasse dentre a Terra e Marte, Faria a luz do Sol descolorida;

Pois que a mirar-lhe a graça tão subida, Toda alma digna, em torno a ela, parte.

Se sob o quarto ninho ela pousasse, Qualquer das três seria menos bela E fama e voz talvez só ela achasse.

No quinto giro não pousara ela;

Porém, se ela o mais alto erguesse a face, Venceria com Jove a toda estrela.

Diogo Bernardes

Alma que nesta vida despediste Quanto ao Céu podia desviar-te, Com Maria escolhendo a melhor parte, Esquecida de ti, Cristo seguiste.

Depois que desta vida te partiste, Tristeza do meu peito não se parte, Sem ti me vejo tal em toda parte

Que o menos mal que sinto é ver-me triste.

Inda que me consola ter por certo

Que lá nesse alto coro recebida

Gozas do sumo bem, que tanto amaste:

Agora vendo claro e descoberto O doce esposo teu, por quem a vida, E todos os bens dela desprezaste.

Luís de Camões

Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subsiste Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te Alguma coisa a dor que me ficou Da mágoa sem remédio de perder-te, Roga a Deus que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou.

Ao cotejarmos os sonetos, percebemos a nítida busca, por parte da poética quinhentista portuguesa, pelos modelos petrarquianos, uma vez que apenas o primeiro verso já explicita o princípio da imitatio renascentista. Como já mencionamos, os modelos que serão imitados devem servir como mote, ou seja, não devem constituir uma mera imitação servil.

Eles devem, ao contrário, evidenciar o engenho do poeta, a sua capacidade em recriar os modelos, atingindo, se possível, a emulação – a superação do modelo no tocante ao seu valor literário.

No soneto de Petrarca, encontramos a referência à morte precoce de sua musa, Laura, “Chamada antes da hora à outra vida”. Daí em diante, o poeta constrói a condição póstuma de sua amada, sublimando-a, conduzindo-a aos lugares mais perfeitos dentro da cosmovisão medieval, que repartia o cosmo em círculos concêntricos e hierarquizados. Não esmiuçaremos o poema, mas ressaltemos que para interpretá-lo é imprescindível

compreendermos a visão cosmológica cristã mesclada à cosmologia pagã, por esta razão, temos o emprego de termos como “Marte” e “Jove/ Júpiter”. Aliás, a cosmovisão cristã - cindida em Inferno, Purgatório e Paraíso-, encontra-se magistralmente construída no célebre livro “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri.

De modo sucinto, se realizarmos uma leitura comparativa entre os sonetos, encontraremos releituras interessantes. Em Petrarca, a título de exemplo, deparamo-nos com um louvor à Laura, em razão de sua perfeição física e moral. Tal perfeição merece, conforme o poeta do poema, um lugar correspondente no Paraíso. O soneto, por seu turno, consiste neste louvor às qualidades superiores de Laura, à sua beatitude; o poeta, em momento algum, revela-nos sua condição após a partida precoce da amada. Como dissemos, o poeta, apesar de considerar a morte de Laura um tanto precoce, limita-se a louvá-la e louvá-la, desnudando-nos, recorrendo a belas imagens da cosmovisão medieval, uma mulher celestial.

Nos sonetos renascentistas portugueses, isto não acontece. Ainda verificamos uma mulher que perde a vida precocemente e que, conforme a temática petrarquista, merece, em razão de suas qualidades morais, o Céu cristão. No soneto de Diogo Bernardes, bem como no de Camões, não encontramos explicitada a cosmovisão ptolomaica (Marte, Jove). No século XVI, inclusive, será dado o primeiro passo em direção à teoria heliocêntrica, de Nicolau Copérnico, contestando a milenar teoria geocêntrica.

Diogo Bernardes e Camões constroem um poeta que não louva mais as qualidades da amada que morrera - estas já se encontram agora implícitas -, uma vez que focalizam a temática de seus sonetos no sofrimento daquele que ficou, o amante. Deste modo, os versos que constituem os sonetos voltam suas atenções ao luto do poeta.

No soneto de Diogo Bernardes, vislumbramos uma mulher celestial, já que sua perfeição tem lugar superior à de Cristo, esquecida devido a um descuido por Virgem Maria.

Interessante notar que a mulher que partira tão cedo é louvada pelo seu “esposo”,

evidenciando que eram então casados. Ao contrário de Petrarca, a mulher perfeita que morreu já cedera seu amor ao poeta, o que a torna mais humana, apesar de sua perfeição ser louvada quando ela morre. O soneto de Diogo Bernardes nos explicita a vida moral cristã, a saber: o matrimônio, o modelo de mulher santa, o Céu destinado aos que foram moralmente exemplares, o desapego pela vida terrena, e assim por diante.

No soneto de Camões, as palavras selecionadas para formarem as rimas são melhores, enriquecendo o soneto com associações mais complexas, expandindo-lhe o sentido.

Diogo Bernardes, por exemplo, utiliza em seus quartetos a palavra “parte” por três vezes, enquanto Camões consegue encontrar palavras de distintas classes gramaticais para elaborar as rimas.

Deixando as questões formais de lado, notamos que o soneto camoniano prioriza, como temática, o sofrimento do “poeta”. Temos os três primeiros versos do primeiro quarteto se referindo à mulher que morrera cedo e que é merecedora do céu cristão. Porém, no restante dos versos, encontramos o enfoque sobre a angústia daquele que ficou sem a sua amada. No soneto de Diogo Bernardes, evidencia-se certa resignação quanto à perda da amada, ou melhor, um tom de conformismo no tocante à situação presente: “Inda que me consola ter por certo/ Que lá nesse alto coro recebida/ Gozas do sumo bem, que tanto amaste”. O poeta lamenta-se, mas encontra forças para suportar a ausência da mulher, pois agora ela se encontra entre os anjos, no Céu. No soneto camoniano, temos o inverso, visto que não há lugar para conformismos. O poeta, ao contrário, solicita à amada que ela peça a Deus para que o leve em direção ao plano espiritual, pois não há solução para sua dor – a morte é inexorável, logo pôs um fim irreversível ao amor vivido no plano material. Portanto, a construção do poema camoniano não consiste num louvor à mulher amada. E, além do retratado inconformismo, encontramos também uma nostalgia em relação à condição anterior, ou seja, entreve-se que o poeta prefere o amor terreno ao amor espiritual, por nos sugerir a vivacidade

do amor entre dois corpos – o amor carnal, a seu ver, é puro: “Não te esqueças daquele amor ardente/ Que já nos olhos meus tão puro viste”. O soneto camoniano estabelece como cenário dos conflitos que atravessam o poema o ambiente terreno, já que, ao contrário dos versos de Petrarca e de Diogo Bernardes, encontramos um lamento pela perda do amor carnal. Por fim, notamos, de Petrarca a Camões, um processo de dessacralização da amada e do amor.

Quanto às variantes de leitura criativa, podemos concluir que elas contribuíram para engendrar obras que se remetem umas às outras, enovelando-as. O princípio da imitatio renascentista gerou oportunidade para tornar modelos e temáticas sempre à espera de novas configurações poéticas, proporcionando-nos uma rede de textos. E, o posterior cotejo entre as variantes de leitura criativa, proporciona-nos obras múltiplas, coletivas e inacabadas...