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A moderna lógica da ciência e a base sintático-semântica

3 A FUNDAMENTAÇÃO PRAGMÁTICO-TRANSCENDENTAL DA ÉTICA:O

3.3 A transformação semiótica de Kant por Peirce: da insuficiência sintático-

3.3.1 A moderna lógica da ciência e a base sintático-semântica

Conforme Apel, o objetivo da filosofia de Kant consiste na validação objetiva do conhecimento da ciência. Para tanto, ele procede desta forma: ao invés de partir da psicologia empirista do conhecimento, à época comum entre, por exemplo, Locke e Hume, toma um caminho diferente no sentido de que substitui a citada psicologia por uma lógica transcendental cognitiva, ou seja, seu método investigativo encontra um ponto supremo na unidade transcendental da apercepção333.

No que diz respeito à lógica da ciência moderna, Apel afirma que, ao se fazer uma comparação entre a teoria da ciência kantiana, ou seja, tomando sua filosofia teórica como tal, com a atual lógica da ciência, percebe-se que há uma diferença fundamental: em Kant, trata- se de uma análise da consciência; na lógica da ciência, trata-se de uma análise da linguagem334. Outra diferença que se constata, ao se continuar nesta comparação, segundo a percepção de Apel, diz respeito à exclusão da consciência enquanto sujeito do conhecimento por parte da lógica da ciência, ao contrário do que acontece no pensamento kantiano335.

Em que sentido acontece essa supressão da problemática da consciência enquanto sujeito do conhecimento? Podemos responder com Apel que, ao invés dos requesitos da lógica transcendental kantiana, fala-se, agora, como substrato das regras a priori, da sintaxe e semântica lógica das linguagens científicas. O que significa afirmar que tais linguagens, como os semantical frameworks de Carnap, passam a decidir acerca das descrições e elucidações

332

Cf. CARMO, Luís Alexandre Dias do. Discurso filosófico e a arquitetônica da ética do discurso: Apel versus Habermas. Fortaleza: EDUECE, 2011, p. 89.

333 Cf. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: Op. cit. p. 179. 334

Cf. Idem.

das coisas, conforme haja uma conexão legal336. O que acontece é que a questão de Kant, ou seja, quais as condições de possibilidade do conhecimento científico e de sua validade objetiva, problemática que, neste, remete para uma consciência em geral, na moderna lógica da ciência, linguisticamente articulada, tal problemática é solúvel por intermédio da ‘“justificação’ lógico-sintática e lógico-semântica de proposições (hipóteses) ou teorias científicas, ou seja, pelo asseguramento de sua consistência lógica e de sua verificabilidade empírica (ou, para ser mais cauteloso: de sua confirmabilidade empírica)”337

.

Segundo Apel, tendo em vista que a lógica linguístico-científica substitui o sujeito transcendental, anteriormente tido como condição de possibilidade e validade da ciência, conclui-se que, realmente, tal sujeito passa a ser não somente prescindível como também é suprimido, no sentido de que a lógica da linguagem e a comprovação empírica fazem as vezes da experiência transcendental kantiana338.

Entretanto, é do entendimento de Apel que a tentativa de substituir o sujeito transcendental, nos parâmetros kantianos, pela sintaxe e semântica lógica não logrou êxito no que diz respeito a assegurar a validade intersubjetiva do conhecimento empírico. Em outras palavras, segundo Apel, o empirismo lógico fracassou quando trocou a lógica transcendental pela lógica da linguagem científica, pois a sintaxe e a semântica de uma linguagem factual não conseguem garantir seja a consistência lógica seja a testabilidade intersubjetiva e empírica da ciência339.

E por que fracassou a tentativa de substituição da função do sujeito transcendental pela lógica da linguagem científica?

Primeiramente, no que diz respeito à questão da verificação, pois nesta se exige que linguagem científica reconstruída e que fatos estejam ligados. Neste contexto, constatou-se que há aí uma impossibilidade, tendo em vista que, tomando como referência os parâmetros analíticos linguísticos da moderna teoria da ciência as teorias da ciência não são testadas em um confronto com os fatos nus e crus, mas, unicamente, com as sentenças de base. Para tanto, conforme Apel, faz-se necessário, para que tais teorias sejam realmente válidas, que os cientistas, enquanto sujeitos da ciência, que nunca podem ser reduzidos a objetos de interpretação empírica, entrem num acordo mútuo340.

336 Cf. Ibid., p. 180. 337 Idem. 338Cf. Idem. 339 Cf. Ibid., P. 181-182. 340 Cf. Ibid., p. 182.

A segunda razão do insucesso da supracitada substituição é perceptível quando se vê que a intenção do Wittgenstein da primeira fase não logrou êxito, ou seja, a investida de fazer com que “a linguagem formalizada da ciência faça uso da forma lógica e que resulta na impossibilidade de uma reflexão sobre si mesma”341

. Para Apel, o que deve acontecer é que tal forma lógica, como um semantical framework, deve ser usada e empregada pelos cientistas que em uma metalinguagem a interpretam de maneira pragmática342.

A consequência a que Apel chega a partir das respostas, acima expostas, ao porquê do fracasso do empirismo lógico na postulada substituição é que: 1) a consistência lógica e a testabilidade empírica da ciência, caso se queira assegurá-las, tal garantia não pode ser confirmada tomando como referência a sintaxe e a semântica linguístico causal; 2) como também, a condição de possibilidade e validade dos enunciados científicos, na lógica da ciência, é a introdução da dimensão pragmática da interpretação dos signos que as pessoas fazem, sob o título de convenções práticas343. Ora, a partir destas consequências, fica evidente a centralidade que tem a dimensão pragmática da interpretação dos signos.

Neste contexto, conforme Apel, a introdução da dimensão sígnica pragmática feita por Ch. Morris tem um grande significado, pois, contrariamente ao empirismo lógico que entende tal dimensão como um tema da psicologia empírica, Apel vê a dimensão pragmática da interpretação dos signos como sendo condição de possibilidade e validade do conhecimento científico, no sentido de que tal dimensão é comparável ao ponto supremo da lógica de Kantiana, ou seja, à síntese transcendental da apercepção344. Neste contexto, conforme Apel, provavelmente, surja a seguinte contestação: quanto à interpretação dos enunciados da ciência, feita pelos especialistas, é impossível exigir uma unidade transcendental da interpretação do mundo, consequentemente, ao invés disto, um convencionalismo crítico seria a opção mais viável. A esta objeção dos representantes da filosofia analítica moderna, Apel responderia que:

‘(...) um convencionalismo crítico’, ao contrário de um convencionalismo dogmático (metafísico), não pode ter o sentido de pretender reduzir a cognição a uma mera convenção; ele pode ter o sentido, sim, de diferenciar entre si as convenções dos especialistas (conquistadas aqui e agora por meio de uma prevenção falibilista) e o

341

CARMO, Luís Alexandre Dias do. Discurso filosófico e a arquitetônica da ética do discurso: Apel versus Habermas. Op. cit. p. 92.

342 Cf. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: Op. cit. p. 182. 343

Cf. Ibid., p. 181-182.

consenso pura e simplesmente intersubjetivo sobre a validação de proposições científicas, almejado desde sempre345.

Desse modo, caso seja adequadamente compreendido, o convencionalismo crítico não tem que, necessariamente, negar a unidade transcendental da interpretação de mundo ou esta negar aquele, muito pelo contrário, o que acontece é que ela o pressupõe.

A tese de Apel, neste contexto, é que “o falibilismo é sempre meliorismo”346. Ora, isto implica afirmar que o entendimento de Popper, em momento algum significa a inutilidade dos esforços cognitivos humanos, muito pelo contrário, aí está contido, conforme Apel, um pressuposto metodológico que afirma a possibilidade de que todas as teorias científicas sejam corrigíveis e factualmente alcançáveis, como também, nesta pressuposição, subjaz um princípio regulativo da pesquisa: a interpretação de mundo unificada, enquanto postulação quase kantiana347.

Após expor a situação da moderna lógica analítica da ciência, Apel conclui que tal lógica, através da pragmática dos signos e da intersubjetividade da interpretação do mundo, remete à perspectiva kantiana, ou seja, à sua filosofia transcendental. Por conseguinte, faz-se necessário um retorno a Kant no sentido que se renove a sua pergunta fundamental: quais as condições de possibilidade e validade do conhecimento científico. Porém, esta pergunta se faz, agora, nestes termos: quais as condições de possibilidade de um acordo mútuo intersubjetivo quanto ao sentido e à verdade de proposições ou sistemas proposicionais. Assim, esta questão significa realmente um retorno à questão de Kant e não simplesmente um retorno histórico ao autor da Crítica da razão pura, mas, conforme as palavras de Apel, significa sim uma transformação linguístico-analítica ou semiótica da filosofia transcendental348. Em síntese, esta renovação pode ser expressa assim: transforma-se a crítica kantiana do conhecimento, enquanto análise da consciência, em crítica dos signos. E o ponto supremo, agora, após esta conversão da filosofia transcendental, não é mais, como em Kant, a unidade objetiva de representações em uma consciência em geral intersubjetivamente presumível, passa a ser a unidade do acordo mútuo em um consenso intersubjetivo, atingível via interpretação sígnica349.

345 Idem. 346 Idem. 347 Cf. Idem. 348

Cf. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: Op. cit. p. 186.