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A transformação semiótica de Kant por Peirce

3 A FUNDAMENTAÇÃO PRAGMÁTICO-TRANSCENDENTAL DA ÉTICA:O

3.3 A transformação semiótica de Kant por Peirce: da insuficiência sintático-

3.3.2 A transformação semiótica de Kant por Peirce

Para Apel, a transformação da filosofia kantiana pelo viés hermenêutico, conforme o delineamento feito anteriormente, é uma investida que encontra em Ch. S. Peirce, o Kant da filosofia americana, um meticuloso desenvolvimento. Foi Ch. Morris quem introduziu a semiótica tridimensional na lógica da ciência moderna, entretanto, quem a inaugurou, como fundamento triádico de uma lógica da pesquisa científica, foi Ch. S. Peirce, constituindo-se como reconstrução crítica da Crítica da razão pura350.

Há em Peirce, segundo a visão de Apel, duas questões fundamentais. Por um lado, são notórias em Peirce as principais características da moderna lógica linguístico-analítica da ciência: a diferenciação do problema da validade respectivamente da justificação na pergunta pelos critérios de sentido e na pergunta pelos critérios de confirmação das sentenças científicas como também a substituição da crítica à metafísica como crítica cognitiva pela crítica à metafísica enquanto crítica de sentido; por outro lado, não obstante esta imersão nas características da lógica da ciência analítica ele se opõe a esta mesma lógica ao mostrar que o esclarecimento das condições de possibilidade e validade do conhecimento científico vai além da formalização sintática de teorias e da análise semântica da relação bivalente entre teorias e fatos; por conseguinte, faz-se imprescindível para este esclarecimento pensar uma dimensão pragmática trivalente da interpretação dos signos que, em última instância, assemelha-se à unidade transcendental da consciência kantiana351.

Neste contexto, Apel afirma que Peirce transformou a filosofia kantiana através da base trivalente de uma lógica científica semiótica. Esta transformação teria ocorrido muito antes que a sintaxe e a semântica, enquanto base bivalente peculiar à lógica da ciência moderna, fossem comprovadas como insuficientes para garantir a consistência lógica e a comprovação empírica da ciência. Apel insiste, ainda, na necessidade de deixar evidente que a perspectiva peirciana consiste numa transformação semiótica da lógica transcendental e não de uma interpretação histórico-filológica de Kant352.

Jürgen von Kempski, a quem Apel atribui o mérito de ter sido o primeiro a, seriamente, analisar a estreita relação entre Peirce e Kant, análise feita no livro Ch. S. Peirce e o pragmatismo, atentou para o fato de que Peirce teria encontrado, na categoria da

350 Cf. Ibid., p. 187. 351

Cf. Idem.

terceiridade, enquanto representação de algo mediado por signos, o substituto do ponto supremo de uma dedução transcendental353.

Para Apel, é verdade que Peirce recusa o transcendentalismo, porém isto não significa dizer que esta renúncia é a mesma coisa que rejeitar a concepção de um ponto supremo da dedução transcendental. O que Peirce recusa é o tipo de procedimento de Kant que é, no seu entendimento, psicologista e circular. Tal ponto, e a busca por ele, é perceptível quando ele trata da “unity of consistency”, ou seja:

A expressão “unity of consistency”, que Peirce utiliza em sua crítica de Kant, aponta de fato para a direção em que ele mesmo procura o “ponto mais alto” de sua “dedução transcendental”: trata-se para ele não da unidade objetiva de “representações” e de uma ego-consciência, mas sim da consistência semântica de uma “representação” intersubjetivamente válida dos objetos por meio de signos, que segundo Peirce só se decide na interpretação dos signos354.

Na expressão unidade da consistência, almejada por Peirce, está mais um substituto da perspectiva transcendental kantiana, no sentido de que em Kant, o ponto mais alto consistia na unidade da consciência, em Peirce, tal ponto é a citada unidade semiótica da consistência355. E com isto ele alcança o ápice da transformação da lógica transcendental de Kant, ou seja, na concepção da ultimate opinion da indefinite Community of investigators. E aqui, nesta unidade postulada, o sujeito-semitranscendental é a ilimitada comunidade de experimentação

que é, concomitantemente, uma comunidade interpretativa ilimitada356.Conforme Apel, nesta concepção “convergem o postulado semiótico de uma unidade supra-individual da interpretação, de um lado, e o postulado próprio à lógica da pesquisa de um asseguramento

experimental da experiência “in the long run”, de outro”357

.

O entendimento de Apel é que, partindo do pressuposto da “ultimate opinion da indefinite Comunity of investigators”, Peirce não efetivou nenhuma dedução transcendental de princípios da ciência, conforme os parâmetros kantianos. O que acontece em Peirce é que ele, ao invés dos princípios da experiência de Kant, postula os princípios regulativos. E, nesta transposição, “necessidade e universalidade das proposições científicas sejam deslocadas para a meta do processo de investigação”358

. Para Apel, à Peirce está posta a possibilidade de esquivar-se do ceticismo humesiano, pois as proposições científicas são demonstráveis em sua

353 Cf. Ibid., p. 189-191. 354 Ibid., p. 192. 355

Cf. Ibid., p. 193.

356 Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Op. cit., p. 51. 357APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: Op. cit. p. 197.

358

CARMO, Luís Alexandre Dias do. Discurso filosófico e a arquitetônica da ética do discurso: Apel versus Habermas. Op. cit. p. 97.

universalidade e necessidade, porém, diferentemente de Kant, o qual exigia que tal demonstração acontecesse imediatamente, em Peirce, tal exigência faz parte de um processo investigativo e, por isso, são corrigíveis uma vez que subordinadas ao caráter falibilista359.

Neste contexto há uma estreita semelhança entre Peirce e Karl Popper. Entretanto, esta similitude, obviamente, tem suas diferenças. A semelhança consiste em que o princípio do falibilismo, em ambos, é compreendido como uma teoria evolutiva do saber. Isto significa que o saber, em longo prazo, tende a melhorar. Em outros termos, o conhecimento científico é uma busca da verdade e desta nos avizinhamos, lenta e infinitamente360, contudo, deve-se evidenciar que esta afirmação não significa, nem mesmo, resquício de ceticismo361. Ademais, análogo à Popper, para Peirce, é possível que se refute uma hipótese a partir de um único experimento, não obstante sua magna importância362; a diferença está em que Peirce não nega a validade das hipóteses, muito pelo contrário, ele a pressupõe, como também pressupõe uma teoria normativa e um consenso363. Para Apel, e isto lhe será determinante em sua teoria pragmático-transcendental da verdade, Peirce, simultaneamente, fundamenta o princípio do falibilismo da ciência empírica e uma teoria da verdade como consenso364.

Ao ver de Apel, a crítica de Peirce contra o conceito kantiano das coisas em si incognoscíveis, inclui-se entre a mais forte já apresentada contra Kant, desde Jacobi. Neste sentido, a transformação operada por Peirce da distinção kantiana é, conforme Apel, ainda mais expressiva, ou seja, Peirce não faz a distinção entre objeto cognoscível e incognoscível, como em Kant. Sua distinção consiste em diferenciar reais cognoscíveis in the long run e o circunstancial e factualmente conhecido, sob a reserva falibilista365. Neste sentido, conforme Apel, Peirce pode “(...) manter para si a principal conquista de Kant, a fundação transcendental da objetividade possível da science em geral, e não obstante postular a possibilidade de uma correção empírica de todas as proposições, como hipóteses (...)”366. Assim, tomando como referência a citada distinção kantiana, tem-se o pressuposto fundamental em que Peirce efetiva a transformação da filosofia de Kant.

Conforme Apel, a definitiva transformação da filosofia de Kant, operada por Peirce, dá-se quando este recusa a distinção feita por aquele entre teoria e prática. Para Peirce,

359Cf. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: Op. cit. p. 198.

360 Cf. CARMO, Luís Alexandre Dias do. Discurso filosófico e a arquitetônica da ética do discurso: Apel

versus Habermas. Op. cit. p. 97.

361 Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Op. cit., p. 340. 362

Cf. Ibid., p. 340-341.

363 Cf. Ibid., p. 341.

364 Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Op. cit., p. 340. 365

Cf. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: Op. cit. p. 199-200.

princípios regulativos e postulados morais não são questões postas uma ao lado da outra separadamente. Ele as vê como questões que, desde sempre, estão coadunadas e, portanto, esta transformação semiótica da lógica transcendental desemboca na compreensão de que o ilimitado processo do conhecer, enquanto processo que acontece socialmente, cujo resultado é incerto, é, simultaneamente, objeto da lógica e da ética367.

Assim, com o postulado do “socialismo lógico”368

, chega-se ao ápice da transformação da lógica transcendental de Kant, realizada por Peirce, que, em síntese, pode ser assim expresso: quem levantar a pretensão de se comportar logicamente deve renunciar às motivações individuais em nome da comunidade ilimitada de comunicação, tendo em vista que a verdade das coisas só é atingível nela369. Isto para Apel tem um significado fundamental, pois seu grande adversário ou empecilho no processo de articulação do princípio moral e, por conseguinte, de uma ética conforme as exigências impostas hoje, ou seja, o solipsismo metódico, encontra em Peirce uma superação370, pois quando este assevera que ao indivíduo é impossibilitado o uso de uma comunidade para a efetivação de suas convicções particulares, em detrimento a um compromisso social, moral e coletivo na comunidade de investigação em busca da verdade consensual371, enquanto garantia da objetividade do conhecimento, com esta compreensão ele rompe, definitivamente, com o solipsismo metódico. Ora, nesta perspectiva, supera-se, também, o irracionalismo ético, uma vez que à lógica da investigação recai a imposição de assumir uma atitude moral e que a razão teórica não pode prescindir da razão prática na busca pela efetivação dos seus objetivos372.

Portanto, é neste contexto que emerge a relevante contribuição peirciana na demonstração do princípio moral fundamental na filosofia de Apel, pois o caminho que leva a tal demonstração é construído a partir da absorção do socialismo lógico, porém superando-o no sentido de que a comunidade de investigação precisa ser estendida à humanidade como um todo. Em síntese, esse caminho pressupõe uma inter-relação entre Kant e Peirce, em vista da

367 Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Op. cit., p. 52.

368 Há neste postulado um conjunto de atitudes, quais sejam: auto-renúncia, reconhecimento,

compromisso e esperança. Renunciar aos interesses particulares; imergir-se na consciência de que todos os outros participantes da mesma comunidade real de investigação são interlocutores cujos direitos são iguais e por isso mesmo devem ser reconhecidos; por fim, a busca da verdade é um compromisso inalienável em que um consenso definitivo é uma esperança constante. Cf. SILVA, Antonio Wardison C. Karl-Otto Apel: itinerário formativo da ética do discurso. Op. cit. p. 101.

369 Cf. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: Op. cit. p. 201. 370

Cf. SILVA, Antonio Wardison C. Karl-Otto Apel: itinerário formativo da ética do discurso. Op. cit. p. 101.

371 Cf. COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Op. cit., p. 52. 372

Cf. CARMO, Luís Alexandre Dias do. Discurso filosófico e a arquitetônica da ética do discurso: Apel versus Habermas. Op. cit. p. 105.

articulação da ética do discurso e exige um caminhar com Peirce para além de Kant e com Kant para além de Peirce373.

3.3.3 A comunidade de experimentação e interpretação (real, mas ilimitada) como sujeito