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3 A FUNDAMENTAÇÃO PRAGMÁTICO-TRANSCENDENTAL DA ÉTICA:O

3.1 A filosofia transcendental kantiana

3.1.1 A validade do conhecimento em Kant

Na Crítica da Razão Pura220, lê-se que há dois tipos de conhecimento: o conhecimento a priori e o a posteriori. Este advém da experiência e, neste sentido, partindo do pressuposto de que ela, a experiência, consiste unicamente numa síntese de percepção, com relação a este tipo de conhecimento não há problema. Há problema em relação ao conhecimento a priori, pois este independe da experiência, inclusive, as condições de possibilidade da experiência se encontram nele. A questão fundamental é saber se tal tipo de conhecimento existe. Caso exista, por ser universal e necessário221, confirmar-se-ia como o fundamento de todas as formas de conhecimento. Neste sentido, inclusive o conhecimento vindo da experiência encontraria nele uma fundamentação com bases sólidas, ou seja, ao contrário da compreensão de Hume que entende serem estes conhecimentos fruto dos costumes, hábitos e da imaginação psicológica, ele possui, a partir desta compreensão kantiana, do conhecimento a priori, enquanto condição de possibilidade da experiência, uma base de validade objetiva222.

No mesmo contexto e importância, encontra-se a distinção feita por Kant entre juízos analíticos e sintéticos223. Quando afirmo que todos os corpos são extensos, que conhecimento novo trago a esta informação? Nenhum, pois é inerente ao corpo a extensão, diferentemente acontece quando me refiro às características inerentes a este corpo, tais como cheiro, textura, cor ou outras. Portanto, aqui, trata-se de juízos analíticos, ou seja, juízos que em nada acrescentam ao conhecimento, uma vez que insistem, desnecessariamente, numa ideia que está subtendida no sujeito224.

Os juízos sintéticos são aqueles, cujo predicado acrescenta uma informação que não está contida no sujeito, diferentemente dos analíticos225. Os juízos de experiência são todos

219 Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade. Tese

(Doutorado em Filosofia) – Programa de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 11.

220 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São

Paulo: Nova Cultura, 1996. Coleção Os Pensadores. p. 53-67.

221“Necessidade e universalidade rigorosa são, portanto, seguras características de um conhecimento a

priori e também pertencem inseparavelmente uma á outra”. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Op. cit., p. 55.

222 Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade. Op. cit., p. 11. 223 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Op. cit., p. 62.

224

Cf. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Op. cit., p. 48.

sintéticos. Quanto a essa questão não há nada de anormal. Entretanto, a originalidade kantiana e sua magna descoberta, inclusive dando-lhe condições para sua “revolução copernicana”226, consiste em sua pergunta pela possibilidade dos juízos sintéticos a priori.

É entendimento de Kant que na experiência só temos contingência e particularidade. Contingência, porque a experiência possibilita a constatação de determinada realidade e afirma que ela é isto ou que ela é aquilo, porém não possibilita o conhecimento do porquê desta realidade não poder ser de outra maneira227. Logo, no âmbito da experiência só temos proposições contingentes; particularidade, porque no campo da experiência as constatações serão sempre limitadas, mesmo que sejam realizados milhares de testes228. A experiência é o universo do contingente e particular, nela não há nada de necessário e universal. Necessidade e universalidade são campos peculiares de uma fundamentação a priori. A ciência, caso queira ser universal e necessária, impreterivelmente, tem que buscar um fundamento a priori. Assim sendo, tendo em vista que quem “fornece os princípios do conhecimento a priori”229

é a razão, Kant se volta para o exame desta faculdade, pois ela é a única fonte possibilitadora da universalidade e necessidade. A este exame da razão, Kant denominou filosofia transcendental.

Quando um conhecimento se detém na análise das condições de possibilidade do sujeito que conhece e não no objeto conhecido, e tal investigação é feita em vista de apreender a forma a priori deste conhecimento, trata-se de um conhecimento transcendental230. Isto significa dizer que a grandeza transcendental está no sujeito, enquanto a instância possibilitadora de um fundamento a priori, justamente porque é “o entendimento quem prescreve leis à natureza, ou seja, as leis existem não nos fenômenos, mas somente em relação ao sujeito em que inerem os fenômenos, cujo ponto supremo é o entendimento”231.

Conforme Kant, na Crítica da Razão Pura232, o conhecimento humano advém de duas fontes: a primeira é a sensibilidade, e nesta recebemos os fenômenos que serão transformados em objetos pela atividade do entendimento através de suas categorias. E as formas a priori pelas quais isso acontece são o espaço e o tempo; a segunda é o entendimento, e somente

226

Revolução esta que consiste numa posição contrária à da tradição, pois esta afirmava que nosso conhecimento se guia de acordo com o objeto. Para Kant, ao contrário, é o objeto quem se guia à luz do nosso conhecimento. PASCAL. George. O Pensamento de Kant. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 33-36.

227 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Op. cit., p. 54. 228 Cf. Idem.

229

Cf. Ibid., p. 65

230 Cf. Idem.

231 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A concepção de ética e direito na filosofia de Kant, in: Síntese v.

37, n. 119 (2010) p. 353.

neste nível ocorre o processo de objetivação do fenômeno. As formas a priori, neste caso, são as categorias do entendimento, pois, sem estas não existiria a ligação pensador e pensado233. Entretanto, não se trata de elementos opostos, ou seja, sensibilidade versus entendimento, muito pelo contrário, são necessários e, sobretudo, inseparáveis. O que significa dizer que, segundo Kant, ambas as fontes consistem em realidades que se coadunam no processo de fornecimento do conhecimento: “nenhuma dessas propriedades deve ser preferida à outra. Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamento sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”234

.

Ainda neste contexto, Kant afirma que o múltiplo das representações é receptividade e nada mais além disto. Porém, a ligação existente de um múltiplo em geral, em hipótese alguma, é procedente dos sentidos, haja vista que a citada ligação consiste num ato da espontaneidade da capacidade de representação. Ademais, toda ligação se configura como uma ação do entendimento, ação esta que ele denominou de síntese. Tal síntese, pode ser entendida como uma atividade em que diversas representações são acrescentadas umas às outras e nesta multiplicidade um conhecimento é originado. Por fim, designar-se-á síntese transcendental quando além de ser processada a priori ela for condição de possibilidade de outros conhecimentos a priori235.

A partir do conceito de atividade de síntese, encontra-se a radical diferença entre Kant e os pensadores empiristas no que diz respeito às faculdades subjetivas. Para estes, tais faculdades se limitavam, unicamente, a um papel de receptoras dos dados fornecidos pelos sentidos; na perspectiva kantiana, elas se revestem de uma atribuição eminentemente diferente, pois de uma mera atitude inerte, não autônoma, frente aos dados recebidos, as faculdades subjetivas operam sobre tais dados e os relaciona a conceitos, princípios, regras, enfim legisla sobre eles236.

Neste horizonte, outro conceito fundamental é o de imaginação. “A capacidade da imaginação é a faculdade de representar um objeto também sem a sua presença na intuição. Ora, visto que toda a nossa intuição é sensível, (...) a capacidade da imaginação pertence à sensibilidade”237

. Entretanto, para que tal representação seja considerada conhecimento, torna-se imprescindível a unidade sintética da consciência e sua relação necessária com o objeto.

233

Cf. PASCAL. George. O Pensamento de Kant. Op. cit., p. 71.

234 Ibid., p. 92.

235 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Op. cit., p. 120-121. 236

Cf. SILVA, Josué Cândido da. A Ética do Discurso entre a Validade e a Factibilidade. Op. cit., p. 14.

Portanto, fica então compreendido que a questão central de Kant, isto é, quais as condições de possibilidade da validade objetiva do conhecimento, consiste na atividade de síntese do entendimento, no sentido de que a unidade da apercepção transcendental é o princípio supremo de todo conhecimento humano, pois tal unidade assegura a validade objetiva do conhecimento, o que significa dizer que a universalidade e necessidade ficam garantidas. Nas palavras de Kant, lê-se:

A unidade sintética da consciência é, portanto, uma condição objetiva de todo conhecimento, de que preciso não apenas para mim a fim de conhecer um objeto, mas sob qual toda intuição tem que estar a fim de tornar-se objeto para mim, pois de outra maneira e sem essa síntese o múltiplo não se reuniria numa consciência238. A reconstrução da filosofia transcendental de Kant, à qual Apel se propõe, em vista da fundamentação de um princípio moral fundamental, consequentemente da ética, consiste em atingir esse ponto supremo da teoria kantiana do conhecimento, isto é, a síntese transcendental da apercepção será substituída pela síntese transcendental da interpretação mediada linguisticamente239. Esta empreitada reconstrutiva, dar-se-á, conforme Apel, à luz do conceito hermenêutico-transcendental de linguagem.