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A morte no cotidiano: a proximidade da Guerra de Reconquista e as pestilências

1 CONFISSÃO COMO FORMA DE REDENÇÃO EM UM CONTEXTO MARCADO

1.2 A PENÍNSULA IBÉRICA ENTRE OS SÉCULOS XIII E XIV

1.2.2 A morte no cotidiano: a proximidade da Guerra de Reconquista e as pestilências

Antes de discorrer acerca da Guerra de Reconquista em si, é importante destacar a explicação construída pela Igreja para a invasão muçulmana à península Ibérica no século VIII. A primeira informação a ser destacada é que a formação do reino peninsular ibérico castelhano está ligada intrinsecamente ao discurso religioso. A Igreja, ao se coadunar com os visigodos, monta uma estrutura conciliada com a hierarquia de poder dos que haviam conquistado a península. Dessa forma, a perda do território para os muçulmanos é também uma perda para a instituição eclesiástica.

Ao longo do período de formação da monarquia astur-leonesa32 (718-1037), elementos do discurso religioso, como o milenarismo, profecias, providencialismo, culto a Santiago e uma complexa sociedade monástica, desempenham uma função decisiva no processo de consolidação do reino e da Igreja astur-leoneses (NOGUEIRA, 2001, p. 286). Sendo assim, os elementos religiosos certamente marcavam a cultura social ibérica, e não seria diferente com a invasão do território.

Para Rucquoi (1995, p. 215-216), a Reconquista tinha um caráter de missão divina e os reis legitimaram seu reinado por meio das conquistas contra os muçulmanos, caracterizando- as como “[...] uma prova da sua submissão a Deus e aos seus mandamentos”. A Reconquista adquire contornos de guerra santa e se constitui como uma tônica de unificação e identidade dos diferentes reinos ibéricos.

A guerra contra o infiel [...] foi igualmente um mito em que se baseou a justificação do poder dos reis e tem uma função unificadora. Para além das diferenças e das rivalidades, das guerras entre Portugal e Castela, entre Castela e Aragão ou Navarra, para além ainda da flutuação das relações de uns e outros com o reino de Granada, todos os cristãos do Norte da península se identificavam na luta contra o Islã, participando de um mesmo projeto militar, religioso e econômico, projeto existencial que se tornou essencial (RUCQUOI, 1995, p. 216).

Há outro discurso sobre a invasão muçulmana ainda mais interessante quando se está observando o peso simbólico da guerra de Reconquista. O discurso religioso atribuiu a invasão muçulmana a dois fatores, entre os quais está a degeneração da sociedade visigoda. Segundo Nogueira (2001, p. 286), “Mais importante, contudo, pela aparição nas três crônicas, e constituindo-se a grande novidade do século XIII, é a culpabilidade dos judeus na

degeneração da sociedade goda e sua traiçoeira colaboração com o muçulmano invasor”

(grifo nosso). Com destaque para a ideia de degeneração, Nogueira (2001, p. 294) mostra que há trechos, em diferentes documentos, que atribuem a invasão do reino da Hispânia visigoda a práticas sexuais desregradas:

Deste modo, se a Crônica Profética e com mais objetividade a Crônica de Alfonso

III, já apontam para a “Grande Transgressão”, o pecado dos pecados, o pecado da

carne na origem da tragédia do reino cristão de Toledo, neste relato o pecado se personaliza e adquire contornos mais definidos. Conjugando a Luxúria com a Felonia, como aparecerá em Tristão e Isolda, – mas sem a mediação (desculpa?) do filtro mágico. A queda dos Godos imita a Queda do Homem, numa traição explícita ao Senhor e por intermédio da sedução da mulher, responsável pelo aviltamento da

32 O Reino de Astúrias foi a primeira entidade política cristã estabelecida na Península Ibérica depois do colapso

do reino visigodo de Toledo. O reino de Astúrias é o precedente histórico da Coroa de Castela e é considerado o embrião da Espanha.

Cristandade hispânica, até a sua redenção, iniciada por um “messias visigodo” Pelayo e amparada pelo Apóstolo Tiago. Aqui a “reconquista” assume uma forma de penitência, que culminará com a expulsão dos infiéis e a restauração do reino cristão de Toledo.

É dessa penitência que pretendemos tratar: o processo de restauração da hegemonia cristã na península Ibérica. A partir do proposto por Nogueira, podemos presumir que, no âmbito do discurso religioso, a Reconquista adquiriu certo caráter moralizante. Essa moralidade foi aplicada à guerra em um aspecto simbólico, a fim de levar os cristãos ibéricos a retornarem ao comportamento anterior à invasão muçulmana, merecendo a conquista do território novamente.

Embora os autores Iradiel, Salustiano e Sarasa (2010, p. 394) destaquem que sociedade castelhana dos séculos XIV e XV “[...] continuou escutando os gritos de guerra santa, de cruzada contra os muçulmanos”, a grande expansão dos reinos cristãos do norte, fenômeno denominado tradicionalmente de Reconquista, foi o evento mais relevante na História da Espanha durante os séculos XII e XIII. Essa expansão foi um processo de aquisição de território, marcado por lutas esparsas, em diferentes ocasiões (BORGE, 2010, p. 9). Alguns setores da nobreza e ordens religiosas se beneficiaram dessas conquistas por meio das concessões de terras realizadas pelos reis, “[...] chegando a alcançar em seus novos domínios um poder equiparável ao da própria coroa” (MARTIN, 1990, p. 10). Após os reinados de Fernando III (1217-1252) e Afonso X (1252-1284), a obtenção de territórios cessou (RUCQUOI, 1995, p. 177).

Diante disso, a Reconquista apresenta-se como um dos fatores das futuras revoltas nobiliárquicas e, por consequência, da necessidade de ações enérgicas dos reis para centralizar o poder dentro do reino. Martin (1990, p. 42) afirma que o poder adquirido pela nobreza castelhana, em face das instabilidades políticas que marcaram o reino entre 1282 e 1325, permitiu que em pleno século XIV fosse possível que os nobres fizessem guerras locais contra muçulmanos e a outros nobres sem a permissão da monarquia. Sendo assim, os conflitos não deixaram de estar presentes no cenário ibérico. Os conflitos prosseguiram sendo protagonizados “[...] por nobres que se sentiam lesados pelo seu rei legítimo, guerras entrecortadas de tréguas e de paz à mistura com casamentos” (RUCQUOI, 1995, p. 177).

González Mínguez e Palacios Martínez (2006, p. 458) ao trabalharem as crises demográficas presentes na Coroa de Castela, contribuem para pensar os efeitos da guerra de reconquista. Para os autores,

Resulta difícil medir a incidência dos conflitos bélicos na demografia, já nos referimos aos efeitos diretos das guerras como as sequelas que estas deixam, afetando a produção econômica e a vida cotidiana dos contemporâneos. […] Diferente valoração merecem as sequelas ou efeitos secundários das guerras, pois nos lugares onde se localizam os conflitos bélicos a destruição de bens do entorno é muito importante.

Dessa forma, conflitos frequentes só resultariam em agravamento das crises sociais. Desde 1275, desembarques frequentes de muçulmanos advindos do Sultanato de Benimerín ocasionavam contínuos conflitos e guerras, dando apoio a Granada para que esta mantivesse o domínio de suas fronteiras. Nesse contexto, os monarcas castelhanos programaram diversas campanhas que, além de serem custosas para a coroa, “[...] acabavam em fracassos ou em êxitos militares de curta duração” (IRADIEL; SALUSTIANO; SARASA, 2010, p. 403). Sendo assim, apenas a pacificação interna de Castela permitiu a Afonso XI recuperar o território anterior às invasões e resolver as questões da fronteira com Granada, além de abrir o estreito de Gibraltar à navegação dos cristãos (IRADIEL; SALUSTIANO; SARASA, 2010, p. 404).

O século XIII e a primeira metade do século XIV foram, portanto, temporalidades conturbadas que mantiveram presentes os sentimentos de guerra, conflito e proximidade com a morte. Este último esteve vinculado não só aos conflitos de reconquista e às instabilidades políticas, mas também à recorrência de pestilências, cujos episódios eram frequentes na baixa Idade Média. Conforme indica Iradiel e outros, “[...] as crônicas aludem repetidamente a destruições e catástrofes produzidas por fenômenos meteorológicos anormais: chuvas torrenciais e inundações ou sequidade dos tempos”. Agravavam tal situação “[...] as más condições higiênicas, os níveis de vida baixos e as medidas sanitárias que eram insuficientes como forma de luta contra as enfermidades mais graves” (IRADIEL; SALUSTIANO; SARASA, 2010, p. 464). Toda a situação de fome também fazia com que a população estivesse suscetível ao acontecimento dessas epidemias.

A população européia passou por gravíssimas dificuldades ao longo da primeira metade do século XIV: a produção agrária era insuficiente para atender uma população cada vez mais numerosa e com maiores necessidades, e o comércio se viu afetado pelas guerras mediterrâneas e atlânticas que aumentavam os riscos e encareciam os preços de toda classe de artigos, incluindo os alimentícios. Mal alimentada e sem recursos, a população ficava exposta a uma maior incidência de qualquer tipo de enfermidades e epidemias (MARTIN, 1990, p. 46).

É consenso entre os autores consultados para este trabalho que a grande vilã demográfica do século XIV foi a peste negra. É válido destacar que, em relação ao Livro das

Confissões, o surto epidêmico dessa pestilência ocorre no período relativo à recepção do livro:

Finalmente, a enfermidade de maior impacto social na baixa Idade Média foi a peste negra, causa das grandes mortalidades da época e origem de uma morte fulgurante e súbita. Os textos literários e científicos do período manifestam a absoluta impotência do homem frente a enfermidade que chegava a dizimar populações inteiras, destruía famílias e acabava com quarentenas, medidas higiênicas ou isolantes, etc. Mas, na maioria dos casos, o único recurso disponível foi recorrer à ajuda, à procissão, à penitência e inclusive à violência (GARCÍA; NAVARRETE, 2008, p. 324).

Então, podemos afirmar com clareza que o homem baixo-medieval estava acostumado com a morte, pois convivia habitualmente com ela por efeito das pestes, fomes e guerras. A ausência de condições materiais de sobrevivência adequadas para população facilitava a proximidade com o fim da vida e, a partir disso, a construção de determinados pesos simbólicos que aprofundavam a religiosidade e, por conseguinte, o poder da Igreja. Sendo assim, buscamos analisar os fenômenos simbólicos construídos no confronto com a morte como evento cotidiano, algo que suscita o medo e a preocupação, sobretudo porque quando associado à possibilidade da danação eterna.