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As condições de tradução da obra: o contexto de Portugal no final do século XIV

1 CONFISSÃO COMO FORMA DE REDENÇÃO EM UM CONTEXTO MARCADO

1.2 A PENÍNSULA IBÉRICA ENTRE OS SÉCULOS XIII E XIV

1.2.3 As condições de tradução da obra: o contexto de Portugal no final do século XIV

Para analisar as condições de tradução do Livro das Confissões, datada de 1399, recortamos a apresentação do contexto sociopolítico de Portugal à segunda metade do século em análise. Mais precisamente, limitamo-nos aos reinados de Dom Pedro I (1357-1367) e Dom Fernando (1367-1383), ambos da dinastia de Borgonha, aos anos inter-dinásticos (1383- 1385) e aos primeiros anos do reinado de Dom João de Avis (1385-1433).

Ao conceituar nobreza, podemos dizer que esta nada mais é que aquela camada social capaz de exercer as prerrogativas senhoriais, ou pelo menos possui o direito a exercê-las. Ou seja, ela pode ser uma autoridade pública capaz de “julgar, exigir o serviço militar e lançar taxas ou impostos” (MATTOSO, 1981, p. 21). Entretanto, para exercer as prerrogativas senhoriais é preciso ter recursos econômicos, proteção real ou força militar.

Para entender esse período é preciso ter em mente que todo nobre está buscando sempre uma ligação forte e lucrativa com a Coroa (FERNANDES, 2003, p. 95), por isso oscila de fidelidade em fidelidade. Ora, por muitas vezes, o rei de Castela se mostrava mais capaz de propiciar lucros e ascensão que os monarcas portugueses no conturbado derradeiro quartel do

século XIV (1375-1400). Ao explicar as relações nobiliárquicas ibéricas, um dos conceitos- chave é privança.

O conceito de privança (OLIVEIRA apud BLUTEAU, 1713, p. 314) é o fruto de uma cultura política que tinha no clientelismo e no favorecimento seu fundamento. Esse fenômeno, também chamada de valimento, era compreendido como parte da dádiva régia. Neste sentido, a privança é um polo de concentração da graça e da benevolência régia, e integra o universo da fala: “a graça de um Príncipe é um templo cuja porta são seus validos”, porque estes “são os olhos e as orelhas do Príncipe, porque por eles os Reis vêem e ouvem tudo”.

Estudar essa nobreza e seu relacionamento com a casa real portuguesa exige alargar nossa análise ao reino de Castela, já que os reinados de D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando (1367-1383) foram dominados pela questão castelhana dos conflitos sucessórios constantes pelo trono (SALES, 2008, p. 17). Partimos, então, do reinado de D. Pedro I de Portugal.

Conhecido como um infante participativo no reinado de seu pai, Pedro não deixou de fazer jus a sua fama, se levarmos em conta o “episódio de seu quase envolvimento na guerra civil castelhana ao lado de famílias que haviam sido opositoras de D. Afonso IV em sua guerra contra D. Dinis” (SCHIAVINATTO, 2013, p. 202). Dom Pedro I herdou um trono conquistado a duros desentendimentos com a Coroa de Castela. D. Afonso IV havia prometido seu filho e futuro rei Pedro I em matrimônio à castelhana D. Constança, filha de Juan Manuel, desafeto e irmão de Afonso XI de Castela, que desaprovou o casamento e em retaliação iniciou nova guerra contra Portugal. Para García Fernandez (2008. p. 52), o embate já vinha se delineando tempos antes. Segundo o autor,

D. Afonso IV já estava descontente com o rei castelhano por este ter repudiado sua filha, D. Maria. Nessa teia, a família castelhana de Manuel passou a ser aliada do rei de Portugal. A paz de Sevilha foi assinada em 1339; D. Pedro se casaria com D. Constança e Afonso XI reassumiria D. Maria. (GARCÍA FERNANDEZ, 2008, p. 52).

Ainda no reinado de D. Afonso IV, Pedro I se envolveu com Inês de Castro, o que irritou profundamente o rei português, já que este também inimizava para com a família dos Castros. Os Castros e Afonso IV estavam em lados opostos mesmo antes reinado de D. Pedro, já que D. Dinis (pai de Afonso IV) preferia o filho bastardo (Afonso Sanches) e teve os Castros como aliados na guerra civil empregada contra seu próprio filho. A aliança da casa real portuguesa com os Castros não estava nos planos de D. Afonso IV, que mandou matar a amante de seu filho e futuro rei, Pedro I. Houve tentativa de guerra civil entre Afonso IV e

Pedro I após a morte de Inês, mas o conflito foi resolvido no ano de 1355 com o tratado de paz assinado entre os dois. No período em que D. Pedro I exerceu o reinado

[...] suas opções foram no sentido de continuidade política ao reinado de seu pai, porém aquele foi mais favorável à nobreza do que D. Afonso IV. As alianças com as famílias castelhanas Castros e Teles de Menezes foram reforçadas. Um exemplo foi a nomeação em 1357 do castelhano D. João Afonso Teles a Conde de Barcelos, com o poder de transmitir o título e os direitos por hereditariedade, fato inédito até aquele momento e que revelaria a benevolência que o direcionamento de seu reinado teria com a classe dirigente peninsular. O governo de Pedro I foi caracterizado pela historiografia como de relativa paz externa e a constante preocupação com a segurança interna, pesando pela neutralidade em relação à Guerra dos Cem Anos e aos conflitos sucessórios dos reinos ibéricos vizinhos a Portugal. A opção pela paz pode ter decorrido da quase guerra civil iniciada contra seu pai, o que poderia pôr em risco a própria dinastia e a independência portuguesa (SCHIAVINATTO, 2013, p. 208).

Após entendermos os pontos que marcaram a vida e o governo de Dom Pedro I, propomo-nos a analisar o governo de Dom Fernando, como meio de averiguar como se deu o processo de queda da dinastia de Borgonha e os anos chamados por algumas vertentes historiográficas de “revolucionários”, entre 1383 e 1385.

Algumas medidas de cunho administrativo, legislativo e jurídico foram decretadas por esse monarca com vistas a conter os abusos dos senhores locais, incrementar a economia do reino e favorecer os poderes municipais. No entanto, na medida em que a política externa régia adentrava um cenário de guerra com a Espanha, o primordial apoio das hostes nobres forçou o rei a retroceder e sucumbir às exigências da alta nobreza (FERNANDES, 2003, p. 28).

Esse cenário conflituoso ficou conhecido como guerras fernandinas (MONTEIRO, 2000, p. 3). Essa disputa teve como objeto de desejo o trono de Castela entre o fatídico Fernando I de Portugal e Henrique II de Castela (substituído posteriormente por seu filho João I de Castela, que mantém o conflito). Henrique II subiu ao trono castelhano por ter assassinado Pedro I de Castela, seu meio irmão. Esse conflito luso-castelhano pode ser dividido em três principais fases e seus respectivos tratados de conciliação: 1369-1370 – Tratado de Alcoutim (1371); 1372-1373 – Tratado de Santarém (1373) e 1381-1382 – Tratado de Elvas (1382).

Quando os laços pessoais e de amizade interferem nas decisões políticas (privança), a consequência imediata é um ambiente de disputas como o que marcou a vida da Corte nas monarquias, visto que o caráter efêmero e a instabilidade da graça régia eram bastante frequentes. Assim, “no conturbado período sociopolítico que marca a transição dinástica

portuguesa, havia grandes oportunidades para que uma nobreza secundogênita atingisse o prestígio que o sangue não ofertava” (ZÉTOLA, 2003, p. 272).

Com a morte de Dom Fernando I, em 1383, a herdeira direta do trono, Beatriz, estava casada Dom João I de Castela. O então rei castelhano reivindicou para si mesmo e para sua esposa, a coroa de Portugal. A nobreza, que possuía laços com a casa real castelhana, apoiou o rei de Castela nessa reivindicação. Já outros setores sociais como os comerciantes e os pequenos nobres não desejavam perder a independência adquirida e declararam seu apoio ao irmão bastardo de Dom Fernando I, João, conhecido como o Mestre de Avis (ZIERER, 2014, p. 37). A guerra passou por três fases principais, segundo Oliveira Marques (1977, p. 110),

[...] na primeira Guerra (Janeiro-Outubro de 1384), D. João I invadiu Portugal, alcançou Lisboa e cercou-a em vão durante quatro meses; entretanto, os Portugueses, chefiados por Nuno Alvares Pereira, filho ilegítimo do Mestre dos Hospitalários, derrotou os Castelhanos em Atoleiros, no Sul (Alentejo). Na segunda fase (Maio-Outubro de 1385), D. João I de Castela invadiu Portugal de novo, para sofrer completa derrota em Aljubarrota, às mãos de um exército menor, mas dispondo de organização superior e se beneficiando do apoio dado por arqueiros ingleses e acaso por conselheiros da mesma nacionalidade; algures, os Portugueses também derrotaram os Castelhanos em lides menos significantes (Trancoso, Valverde). Na terceira e última fase (Julho de 1386-Novembro de 1387), uma primeira trégua foi assinada em 1387. Ainda se deram em 1396-97 escaramuças pouco importantes, a que logo se seguiu uma trégua de dez anos, renovada por períodos sucessivos. A paz, porém, só viria a ser assinada em 1432.

O Mestre de Avis fizera-se proclamar rei como Dom João I, em 1385, em cortes convocadas para Coimbra, nas quais conseguiu lograr êxito contra mais dois supostos pretendentes, bastardos de Dom Pedro I com Inês de Castro (ZIERER, 2014, p. 38). Para obter o reconhecimento exterior, Dom João aproveitou o cenário de instabilidades entre os papas de Avignón e Roma para que o papa romano se apressasse em aprovar seu casamento com Filipa de Lencastre.

A vitória do Mestre de Avis significou uma nova dinastia com uma nova classe dirigente. D. João rodeou-se de legistas experimentados e de burocratas e procurou apoio entre os mercadores portugueses e estrangeiros. Concedeu posições importantes a pessoas que antes possuíam pouco ou nenhum prestígio, oriundas dos mercados, da pequena nobreza e até do artesanato (OLIVEIRA MARQUES, 1977, p. 112). De acordo com Zierer (2014, p. 39), “[...] fazendo um balanço, embora o governo joanino tenha tido várias dificuldades, [...] a época foi vista por seus contemporâneos e também na posteridade como um Novo Tempo, marcado por eventos favoráveis”.

Assim se delineia o ambiente sociopolítico do entorno da tradução do Livro das

Confissões no mosteiro de Alcobaça.