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2.1 A Condição Humana

2.1.4 A multidimensionalidade do gênero humano

O gênero humano, na sua individualidade, reúne a sua coletividade e a sua cultura. Essa afirmação sem qualitativos ou adjetivações pode ser aceita como perene assim como parecer de uma banalidade próxima ao absurdo. Mas é também na perspectiva do absurdo, do espanto, que a existência humana se caracteriza por processos criativos, reinventando, a partir do subterrâneo das aparências do cotidiano, o seu propósito de realidade.

O gênero humano, em suas múltiplas dimensões, é na individualidade o coletivo reconstruído pelas mediações da própria cultura elaborada pelo homem. Assim, o homem é, no seu conjunto complexificado, feito de conceitos e arranjos sociais que o circundam desde a realidade apreendida à abstração do trabalho, da arte, da ciência, autor e sujeito de suas produções.

Escolho discorrer agora, por gosto, sobre a dimensão da arte no artista, lembrando a advertência feita por Rubem Alves (1999, p. 37) de que “gosto, como se sabe, é uma categoria não científica, não podendo ser objeto de pesquisa”. No entanto, tão necessário é o gosto, não somente como desejo de querer, de decidir, de politizar o aconselhamento, mas até mesmo diante das referências objetivas da ciência!

A arte é o artista. O artista não está fragmentado; antes, o artista recompõe, por meio do belo, do inusitado, do gesto, da palavra, a dimensão plena do gênero humano. O homem

faz-se estético no reflexo da arte-cultura que produz porque a incorpora. Na produção da arte, em suas dimensões de múltiplas linguagens, afeiçoa desde o concreto da literatura, da pintura, da estética, do gesto do teatro, do cinema, do lúdico, da música até o abstrato da literatura, da pintura, da estética e do gesto do teatro, do cinema, do lúdico, da música.

Na dimensão do artista está a dimensão da arte e, assim, entrelaçam-se possibilidades de desvelar outras realidades ainda não pensadas, que sugerem a não fragmentação do gênero humano, mas sim a constituição de uma manifestação filosófica. Portanto, o gênero humano, na busca de expressar sua compreensão sobre a sua própria humanidade incorporada pelo ser, pensa o próprio ser, de modo que:

No poetar do poeta, como no pensar do filósofo, de tal sorte se instaura um mundo, que qualquer coisa, seja uma árvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um pássaro, perde toda monotonia e vulgaridade (HEIDEGGER, 1969, p. 55).

Assim, o ser humano, para além da liberdade do gesto criativo, para além da produção da cultura e apropriação da produção humana, recria sua história, sua visão de mundo e muitas vezes opõe-se radicalmente ao existente, tornando belo o vulgar, dinâmico o monótono, visível o insensível. No esparramar de tantos contrários, mostra sua unidade, sua síntese, suas referências, suas ancoragens. O que aparenta ser fragmento impõe-se como unidade quando questiona, sugere, afirma ou nega por meio da impressão da síntese criativa artístico-cultural ou científico-cultural em sua produção humana. Desse modo, ao tentar procurar em partes as partes dessa totalidade única e inexorável, o gênero humano esvazia-se em sua essência, buscando nas sínteses os vários recomeços. Está nesse gesto o movimento das afirmações de suas múltiplas negações. Esta possibilidade dos contrários é relatada no mito de Sísifo:

Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até o cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em conseqüência de seu peso. Tinham pensado com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. (...) O rochedo ainda rola. Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo, enfim sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo Feliz (CAMUS, s/d, p. 147, 152).

Escapar à condenação da morte pelo recomeço incessante de sua condenação ilustra de maneira significativa que somente o homem, como ser multidimensional, é capaz de fazer-

se feliz diante do tormento. Essa não é somente uma visão ingênua e romântica do homem em relação à diversidade humana existente, mas é também uma visão que comporta a existência de um fardo, de uma opção, de um movimento necessário e não linear de constituição do homem de reflexão: refazer-se por rupturas pode apenas parecer absurdo.

Negar uma dada situação é argumentar em favor de seus contrários e, assim, negar os deuses é ressignificar o mundo humano em cada estilhaço. É preciso, portanto, imaginar. Somente o homem, como gênero humano em múltiplos gestos de ser, é capaz de rever-se, de refletir e de relativizar entre o estéril e a possibilidade de outros mundos.

O gênero humano, na multiplicidade artística, não constitui apenas a representação do seu tempo, nem o tempo do seu trabalho, mas sim o tempo da sua construção no ir e vir não do contexto imediato, mas do existir do gênero.

O homem arte, o homem artista, a arte-homem é o homem pleno de todos os homens, porque simultaneamente constrói amplas relações de produtividade ou esvazia-se em perdas reparáveis. Mesmo assim, constitui-se em síntese de totalidade e diversidades. Assim, o gênero humano, na sua individualidade, reúne a sua coletividade e a sua cultura. E desde que seja possibilitada a ele, nas dimensões do conhecimento, uma determinada busca, de sentidos e significados por qualquer objeto do conhecimento, definido ou indefinido, esta se converterá na enunciação de uma objetividade, de uma pluralidade, de uma referência. Saramago enfatiza que:

sentido e significado nunca foram a mesma coisa; o significado fica-se logo por aí, é direto, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-me com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições (SARAMAGO, 1997, p. 134).

O homem se comunica por meio da palavra, espalhando sentidos e significados, buscando sempre a inquietude frente às possibilidades de todos usufruírem a totalidade cultural produzida pelos próprios homens. Mesmo as implicações reducionistas de objetividade derivadas da própria subjetividade humana, designação de ciência ou arte, são superadas pela permeável referência do pensar em algo ainda ausente. Essa projeção de realidade é única no gênero humano e característica essencial do ser que constrói artefatos na relação que se estabelece entre o ser de reflexão e o ser que busca conhecer pelo pensar – momento-monumento audacioso da singularidade humana, a transgressão do instinto para o ser de reflexão, a transgressão entre o dilema de ser um e o de ser muitos.