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CAPÍTULO 10 – DESPATRIMONIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES REAIS: A

10.2 A MULTIPLICIDADE ESTATUTÁRIA COMO PRESSUPOSTO DA

O segundo pressuposto a ser considerado para o exame da função social é o que diz respeito à multiplicidade de estatutos reais no sistema de direito das coisas contemporâneo.

Como visto na primeira parte deste trabalho, a noção de propriedade experimentou, ao longo de seu desenvolvimento, um movimento nitidamente pendular. Da propriedade unitária do direito romano justinianeu, passou-se às

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FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 51.

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“Com isso não se projeta a expulsão e a ´redução´ quantitativa do conteúdo patrimonial no sistema jurídico e naquele civilístico em especial; o momento econômico, como aspecto da realidade social organizada, não é eliminável. A divergência, não certamente de natureza técnica, concerne à avaliação qualitativa do momento econômico e à disponibilidade de encontrar, na exigência de tutela do homem, um aspecto idôneo, não a ´humilhar´ a aspiração econômica, mas, pelo menos, a atribuir- lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa.” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, cit., p. 33).

propriedades do direito medieval, seguindo-se a construção da propriedade abstrata e unificada da modernidade.

Utilizando a conhecida expressão da civilística italiana, caminhou-se da propriedade às propriedades, e novamente das propriedades à propriedade.

No direito contemporâneo, no entanto, a singularidade proprietária cede lugar ao renascimento da pluralidade.

Fala-se em uma crise da noção unitária da propriedade,291 uma segunda crise da noção unitária de propriedade que evidentemente nada tem que ver com a anterior.

Não há, como se percebe sem dificuldade, um novo sistema econômico a impor uma reabertura do esquema proprietário, como quando do advento do feudalismo, mas sim a percepção de que a abstração da propriedade moderna não corresponde mais à realidade.292

Na medida em que o sistema jurídico recepciona a existência de diversos modelos proprietários, enfatizando as suas características distintas e percebendo que não guardam precisa correspondência entre si, fica clara a impossibilidade de manter-se uma tutela jurídica unificada,293 o que conduz à revisão do método moderno de tratamento da propriedade.

Estes estatutos proprietários se especificam a partir do distinto tratamento jurídico emprestado pelo ordenamento à propriedade móvel e imóvel, urbana e

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CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas, cit., p. 160.

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“L´ipotesi della pluralità dei regimi, in altri termini, avrebbe avuto senz´altro l´effetto di spazzar via un concetto (il concetto astratto di proprietà come situazione che non tolera limiti) e una metodologia (quella formalística che lavorava sulla nozione unitaria di proprietà) ritenuti ormai superati dalla necessità di un´indagine realistica sui nuovi dati normativi e sugli interessi implicati dalle varie categorie di beni." (BARCELLONA, Pietro. Formazione e sviluppo del diritto privato

moderno.Napoli: Jovene, s/d, p. 183)

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TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. Temas de direito civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 316-317; GRISARD FILHO, Waldyr. A função social da propriedade (do direito de propriedade ao direito à propriedade). In RAMOS, Carmem Lucia Silveira.

agrária,294 de bens públicos e privados, de produção e de consumo, essenciais e não essenciais,295 et coetera.

Nesse ponto, é preciso pôr em relevo que o tratamento jurídico privilegiado que se empresta aos bens corpóreos e sobretudo aos imóveis não faz sentido diantem da realidade econômica atual.

Hoje é necessário que o ordenamento se volte também aos móveis e aos bens incorpóreos, enfrentando diretamente o problema do atendimento à sua função social.296

O direito civil clássico sempre priorizou o bem imóvel como destinatário de proteção especial, o que resta evidente do exame, por exemplo, das formalidades de transmissão.

Na atualidade, porém, inúmeros bens móveis alcançam acentuado valor (basta pensar no exemplo um tanto simplório de um helicóptero) e a propriedade chamada intelectual move a economia com suas patentes e privilégios de invenção, tendo não raro valor inestimável.

Esses bens precisam ser objeto de atenção do jurista e já suscitam há algum tempo debates cruciais acerca de sua função social, de que é exemplo a discussão brasileira acerca da quebra de patentes de medicamentos.

294

BARCELLONA, Pietro. Formazione e sviluppo del diritto privato moderno, cit., p. 203. Sobre as peculiaridades do estatuto proprietário urbanístico, confira-se CARDOSO, Fernanda Lousada. A

propriedade privada urbana obriga?: análise do discurso doutrinário e da aplicação jurisprudencial.

Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 53-126; FERREIRA, Dâmares. O aspecto funcional da propriedade urbana na Constituição de 1988. Revista de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 6, abr./jun. 2001, p. 36-48; BONIZZATO, Luigi. Propriedade urbana privada e direitos sociais. Curitiba: Juruá, 2007, p. 97-190.

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A essencialidade tem sido indicada como um importante elemento a ser considerado na teoria dos bens, com relevantes impactos no regime contratual que os envolva. A este respeito, consulte-se NEGREIROS, Tereza. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 380 e segs.

296

Vide, a respeito, TEPEDINO, Gustavo; Schreiber, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos. Campos, ano 6, n. 6, jun. 2006, p. 110.

Deve-se considerar a propriedade, portanto, na dimensão concreta de sua variação, para que se possa buscar no sistema o tratamento jurídico a ela aplicável. Isso importa examinar o elemento objetivo do direito sob a ótica qualitativa e quantitativa, e também seu elemento subjetivo,297 de modo que o sujeito titular do direito também é importante para a definição de sua concreta proteção pelo ordenamento.

O direito contemporâneo exige, portanto, que o intérprete absorva a necessidade do sistema de direito das coisas de operar com o dado da multiplicidade estatutária.298 Todos os direitos reais, e não apenas a propriedade, como pode dar a entender a leitura mesmo da doutrina mais atual, estão sujeitos a variação de tutela jurídica em conformidade com sua diversidade objetiva e subjetiva.

Isso, evidentemente, terá impactos de grande efeito no que toca à função social dos direitos reais, que não poderá ser buscada em uma fórmula abstrata, tendo ao contrário de se especificar na concretude do estatuto real examinado, que determinará as exigências para a funcionalização.

297

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., pp. 925-927. Barcellona observa que a teoria da pluralidade de estatutos proprietários constitui um terreno irrenunciável para o estudioso de hoje, mas alerta que, a seu ver, a superação do princípio proprietário moderno pode ser buscada na análise das zonas de conflito que refutam a lógica proprietária (BARCELLONA, Pietro. Formazione e sviluppo del diritto privato moderno, cit., p. 205).

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“É forçoso evitar a tentativa de reduzir qualquer regime de titularidade e apropriação dos bens, quanto mais se plurissubjetivo, ao paradigma da propriedade solitária.” (MATTIETTO, Leonardo. Função social e diversificação do direito de propriedade. Revista da Faculdade de Direito de