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CAPÍTULO 10 – DESPATRIMONIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES REAIS: A

10.6 A TEORIA DE RICARDO ARONNE: ANÁLISE CRÍTICA

Na literatura nacional contemporânea, visando alcançar um melhor cumprimento da função social, foi desenvolvida uma proposta original de superação da teoria tradicional da relação jurídica real. Trata-se da tese do Prof. Dr. Ricardo Aronne, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que se procurará sintetizar, em seus aspectos centrais, nas linhas que se seguem, para depois examiná-la sob uma perspectiva crítica e assim verificar se pode ser adequada ao sistema e se atende às suas necessidades.

Aronne parte da idéia de que as teorias realista e personalista são incongruentes cada uma a seu modo, não solucionando os problemas trazidos ao intérprete com o manejo dos direitos reais.327

A evolução doutrinária, a seu ver, consiste em operar uma espécie de junção entre as teorias dos realistas e dos personalistas. Para tanto, sua premissa essencial é a distinção conceitual entre domínio e titularidades,328 categoria na qual se insere a propriedade. Na posição específica em que um indivíduo detém o direito mais amplo sobre o bem, portanto, coexistem propriedade e domínio, com sentidos não apenas distintos entre si, mas sobretudo distintos daqueles que lhe costuma atribuir a doutrina.329

327

ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio, cit., p. 33.

328

O conceito de titularidade não é criação de Ricardo Aronne, mas as conseqüências que ele extrai de seu manejo são sem dúvida originais. Entre outros, pode-se encontrar a referência à problemática das titularidades em PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 715-725; FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil, cit., p. 155-157. Confira-se ainda CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. Ensino jurídico e titularidades: o lugar do professor. In TEPEDINO, Gustavo (org).

Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas,

2008, p. 352-355.

329

Conquanto ainda carente de mais desdobramento e explanação, esta é a teoria central defendida em ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio, cit., passim; ARONNE, Ricardo. Por uma nova

hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos contemporâneos. Rio de

Sua concepção de domínio é tipicamente realista. Para ele, o domínio não tem sujeito passivo, consistindo na junção de todos os direitos330 que se podem exercer diretamente sobre uma coisa.331 Abraçando sem pudores o legado realista, a visão de Aronne sobre o domínio implica, portanto, em concebê-lo como uma simples relação entre pessoa e coisa.

O conceito de propriedade, descrito como complementar ao de domínio, se aparta entretanto do realismo e vai se identificar com a tradição personalista.

Aronne descreve a propriedade como uma forma de titularidade. Nela a relação se estabelece entre pessoas e não com diretamente com a coisa que é objeto do direito, e por isso diz o autor que a propriedade (todas as titularidades, de modo geral) instrumentaliza o domínio.332

Os direitos reais limitados são constituídos por desmembramento do domínio, a partir dos poderes (ou “direitos”, na terminologia do professor) que o compõem. De tal sorte que, enquanto o domínio é instrumentalizado pela propriedade, os direitos reais menores constituídos a partir de compressão do conteúdo do domínio são instrumentalizados por outras titularidades, como o usufruto, o uso, a habitação, a servidão, o direito de superfície, e tantos quantos instituir o ordenamento.333

Ocorre que, e esta é talvez a mais original contribuição da obra, domínio e titularidades não compartilham a mesma natureza jurídica.

Em conformidade com a exposição de Ricardo Aronne, o domínio e todos os seus desdobramentos são, propriamente, direitos reais. A propriedade e as demais titularidades não o são, pois são relações intersubjetivas pertencentes ao campo dos

330

A opção terminológica é pouco feliz. Parece melhor fazer referência ao termo “poderes”, utilizado neste trabalho em seguimento à terminologia pontiana, ou mesmo a expressão “faculdades” do domínio.

331

ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio, cit., p. 89, 111 e 115.

332

ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio, cit., p. 165.

333

direitos obrigacionais, uma vez que o dever de abstenção teria natureza obrigacional.334

O domínio ou seus poderes destacados para a constituição de direitos limitados se exercem diretamente sobre a coisa, ao passo que a propriedade ou as demais titularidades se exerce erga omnes, contra todos os terceiros.335

Concretizando-se a construção descrita no plano, por exemplo, do usufruto, o que se tem é que os “direitos” de usar e gozar serão exercidos diretamente sobre o bem, têm natureza de direito real e não dispõem de sujeito passivo. O usufruto em si, como titularidade que é, tem natureza obrigacional e se compõe de deveres negativos e positivos impostos a toda a coletividade.

Com este caráter obrigacional, as titularidades são intersubjetivas, dinâmicas e relativas, enquanto o domínio e os desdobramentos dominiais são absolutos, reais e dispensam a abstenção de terceiros.336

Fica clara, portanto, a associação entre as teorias realista e personalista promovida pela tese de Aronne, que se faz com acréscimos originais como a cisão entre as esferas coexistentes e o caráter obrigacional das titularidades.

Para o autor citado, a perspectiva teórica desenvolvida permite atender às necessidades decorrentes da repersonalização do direito civil, servindo diretamente à função social dos direitos reais, por valorizar a dinâmica intersubjetiva do exercício dos direitos sobre os bens.337

334

ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio, cit., pp. 88, 94 e 101; ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados, cit., p. 129-130 e 188-189.

335

ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados, cit., p. 199.

336

ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados, cit., p. 177.

337

Para ele, a divisão entre as esferas real e obrigacional diretamente interligadas é essencial e não pode ser afastada,338 pois é o elemento central para viabilizar esta funcionalização.

A teoria aqui sumariamente exposta tem conseqüências interessantes, justamente por enfatizar o aspecto relacional e por procurar desenvolver os deveres impostos a terceiros em decorrência dos direitos reais, para além do elementar dever de abstenção.

Nada obstante, não deve ser adotada, por apresentar consideráveis dificuldades técnicas.339

Com efeito, não é factível a pretendida cisão entre os planos real e obrigacional na mesma situação jurídica.

Ao se examinar a propriedade, o usufruto, o direito de superfície, o que se tem é uma figura jurídica unitária. Em sua descrição, seus elementos estruturais e funcionais podem constituir um todo complexo (e de fato constituem, como mais à frente se assinalará) mas não se bipartem em dois direitos distintos, como leva a entender a proposta teórica em questão.

Além disso, não é razoável inserir conteúdo obrigacional na relação jurídica real.

Como foi observado anteriormente neste trabalho, direitos reais e e crédito se aproximam consideravelmente no direito contemporâneo, diluindo as velhas fronteiras. Esta proximidade não foi capaz, como igualmente demonstrado, de

338

ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio, cit., p. 132.

339

Em que pese tido repercussão e sido inclusive adotada por outros autores, como GARBI, Carlos Alberto. Relação jurídica de direito real e usufruto. São Paulo: Método, 2008, p. 54-59.

apagar a categoria eficacial correspondente aos direitos reais, que atende a necessidades próprias e mantém-se no sistema com suas vicissitudes próprias.340

Persistindo a distinção com todo o seu peso ideológico, semântico, prático, não há como caracterizar a propriedade ou uma servidão como um direito de crédito, ainda que mantendo em apartado o conteúdo de realidade. Nem Ginossar, em sua criativa iconoclastia, ousou tanto.

340

Não se trata aqui de uma apologia ingênua à figura do direito real no sistema do direito privado e a uma sua suposta imutabilidade ou insuperabilidade, mas sim de verificar que, refletindo uma construção histórica sedimentada, ela atualmente segue servindo a finalidades específicas que o direito de crédito não atende suficientemente bem, e enquanto serví-las deve ser mantida. Daí dizer- se que “la figura del diritto reale, svalutata nella sua forma ideologica e nel suo valore ontologico, sembra ridursi adesso ad un dato meramente relativo, ad un termine convenzionale com cui si individua un particolare tipo di disciplina giuridica, previsto per uno stabile ancoraggio di certe situazioni alla cosa, con sicura efficacia nel tempo e valida opponibilità ai terzi.” (COMPORTI, Marco. Diritti reali in generale, cit., p. 69-70).