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CAPÍTULO 9 FLEXIBILIZAÇÃO DA TIPICIDADE REAL

9.3 ALGUNS EXEMPLOS CONCRETOS

9.3.1 Multipropriedade imobiliária

Um dos mais significativos exemplos da nova compreensão da tipicidade dos direitos reais no Brasil é o da multipropriedade imobiliária, também chamada time sharing ou, no modelo português, direito real de habitação periódica.

O instituto em questão foi desenvolvido no mercado imobiliário como uma forma de viabilizar a custo mais baixo a aquisição de um segundo imóvel para

finalidades de turismo e lazer, datando os primeiros empreendimentos neste sentido dos anos 60, simultaneamente na Europa e nos Estados Unidos.275

Por meio dele, se permite que o sujeito adquira a propriedade compartilhada de um imóvel com direito a uso exclusivo durante um determinado período de tempo, normalmente uma ou mais semanas por ano.276 Ao invés da divisão condominial tradicional, que é feita por critério espacial, tem-se aqui uma divisão temporal.277

Embora se conheça uma espécie de multipropriedade societária,278 em que os multiproprietários são sócios detentores de ações ou cotas de uma sociedade empresária que detém a titularidade do imóvel, prevalece na doutrina brasileira a multipropriedade imobiliária, com estrutura de direito real, e é nessa forma que o instituto interessa a esta exposição.

Como direito real propriamente dito, a multipropriedade é obtida por intervenção da autonomia privada no tipo do condomínio edilício. Ao invés de individualizar os direitos dos condôminos sobre partes autônomas por meio de divisão espacial, faz-se a divisão temporal, estipulando o uso turnário (para lançar

275

LIMA, Frederico Henrique Viegas de. A multipropriedade imobiliária (aspectos doutrinários e registrários). Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro: Padma, a. 8, vol. 32, out./dez. 2007, p. 76-77.

276

Vide TASSONI, Giorgia. Multiproprietà. Rivista di diritto civile. Padova: CEDAM, ano XXXI, nº 4, 1988, p. 478 e segs.; OLIVEIRA JÚNIOR, Dario da Silva; CHRISTOFARI, Victor Emanuel.

Multipropriedade e timesharing: aspectos cíveis e tributários. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p.

1; TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária, cit., pp. 1-3; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. A multipropriedade imobiliária hoteleira e o direito internacional privado. Unijus. Uberaba, vol. 9, n. 10, 2006, p. 131-142.

277

Mais detalhadamente: “Com o termo multipropriedade designa-se, genericamente, a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua. (...) Através da multipropriedade imobiliária, diversos proprietários repartem o aproveitamento econômico de certo imóvel em turnos intercorrentes, geralmente semanas anuais, destinando-os discriminadamente a cada um dos titulares, com exclusividade e em caráter perpétuo, de tal sorte que a cada multiproprietário corresponda o direito de aproveitamento econômico de uma fração espaço-temporal, incidente sobre determinada unidade imobiliária em período certo do ano, sem o concurso dos demais.” (TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária, cit., p. 1 e 3).

278

LIMA, Frederico Henrique Viegas de. A multipropriedade imobiliária, cit., pp. 81-83; MORELLO, Umberto. Multiproprietà e autonomia privata, cit., p. 138-143.

mão da recorrente expressão italiana) por determinadas semanas anuais e delimitando, na convenção condominial, as regras que regerão o uso do imóvel na forma acordada.279

O tipo do condomínio edilício, tendo em conta o seu tratamento legal, mostra- se perfeitamente capaz de absorver a multipropriedade como uma modalidade válida e capaz de ser disciplinada sem implicar a adoção de um direito real atípico, como se vê.

A popularização da multipropriedade imobiliária280 demonstra que a flexibilização da tipicidade real se instala definitivamente na teoria do direito das coisas, tornando-se um dado indispensável para a compreensão de figuras reais efetivamente presentes na prática cotidiana.

279

TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária, cit., pp. 106-110; no mesmo sentido e abordando os pormenores da viabilidade registral do negócio, confira-se LIMA, Frederico Henrique Viegas de. A multipropriedade imobiliária, cit., pp. 105-109. Na doutrina italiana encontra-se posicionamento mais radical, que não atribui a mesma importância ao enquadramento em tipo pré- existente, o que não se deve considerar viável no sistema brasileiro, sob pena de ruptura com o princípio do numerus clausus, algo a que a nova concepção da tipicidade real não pretende e nem pode chegar. Confira-se: “La definizione della multiproprietà come una forma di comunione; o come una forma di proprietà temporanea; o come un diritto reale atípico (con i conseguenti problemi di identificare gli elementi struturali, non derogabili della comunione o di stabilire i tratti communi alla categoria generale ´proprietà temporanea´) diviene una fatica inutile, in questa prospettiva. (...) L´inquadramento è agevole, se diamo una nozione di proprietà non fondata su un nucleo minimo garantito ma consistente in un sistema di aspettative legittime e consolidate di sfruttamento e disposizione; se diamo una definizione di diritto reale ´funzionale´, non fondata su una contapposizione netta tra ´proprietà´ e altri ´diritti reali.´” (MORELLO, Umberto. Multiproprietà e autonomia privata, cit., p. 135-136).

280

Viegas de Lima observa que hoje há estimados 6,7 milhões de multiproprietários no mundo e que o uso deste direito real segue em expansão (LIMA, Frederico Henrique Viegas de. A multipropriedade imobiliária, cit., p. 78). No Brasil, embora inexista uma massificação da multipropriedade, os exemplos aumentam significativamente. Forte indicativo desta tendência é o aparecimento de decisões de tribunais brasileiros tratando a respeito da matéria. No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, há uma série de precedentes, vários comentados por Cláudia Lima Marques, que ressalta a importante questão da aplicabilidade do direito do consumidor aos contratos de incorporação imobiliária em regime multiproprietário (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de defesa

do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,