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Segundo o site do The World Bank (2019), considerando o intervalo de tempo entre 1960 até 2016, a quantidade de filhos por mulher em idade reprodutiva caiu de 5 filhos para 2.5. Referente apenas ao Brasil o IBGE (2013) aponta que de 2000 a 2015 a quantidade de filhos variou de 2.4 para 1.8. Para Alves e Cavenaghi (2012), essa diminuição do número de filhos por mulher, parece ter uma relação com a inversão de alguns valores. Antes, as famílias tinham muitos filhos por trazerem benefícios como mão de obra para os pais e devido à alta taxa de mortalidade. Hoje, os benefícios recebidos diminuíram consideravelmente, ao passo que os custos de sustentar um filho aumentaram ainda mais.

Para os autores, a diminuição do número de filhos por mulher começou a cair em 1970. Atualmente, ainda há crescimento da população devido a base jovem, porém em 2030 começará um processo de decrescimento (ALVES, 2004; ALVES; CAVENAGHI, 2012). Para Caetano (2004), a quantidade de filhos por mulheres em idade reprodutiva já se encontra abaixo do nível de reposição. A renda, a escolaridade e a raça são fatores que influenciam diretamente a taxa de natalidade, podendo apresentar variações no caso de considerar uma população específica, como por exemplo, a taxa de natalidade na adolescência. Apesar disso, vários autores concordam que a diminuição da taxa de fecundidade abaixou em todos os grupos e quando não, estão caminhando para isso. Esse pode ser um dos principais motivos da transição demográfica que, culminará no aumento da taxa de mortalidade e diminuição da taxa de natalidade, ocasionando uma inversão das duas curvas demográficas (BERQUÓ; CAVENAGHI, 2004; CAETANO, 2004; ALVES; CAVENAGHI, 2012). Segundo Alves (2004), para os estudos demográficos, as taxas sobre fecundidade são feitas tomando as mulheres como referência porque é mais fácil a comprovação da maternidade do que da paternidade. No entanto, pode-se considerar esse, mais um fator que confirma a mulher como responsável pela reprodução.

Com os recursos oferecidos atualmente pela tecnologia médica, a experiência reprodutiva passa a ter um caráter de liberdade de escolha, planejamento e vontade, dissociada

da sexualidade por meio de técnicas contraceptivas e conceptivas. O que não deixa de ser uma ideologia individualista onde o desejo por filhos está atrelado a uma realização pessoal ou escolha do casal (VARGAS, 1999, 2012; VARGAS; RUSSO; HEILBORN, 2010). Todavia, retomam a ideia de reprodução familiar e continuidade de valores geracionais, o filho além de uma realização individual passa a ser importante para a constituição de um casal e não está mais relacionado com a família estendida (VARGAS, 1999, 2012).

Para Szapiro e Féres-Carneiro (2002) o indivíduo moderno desenraiza-se com relação à filiação, sendo assim, acredita-se ser um senhor absoluto de seus projetos. A crença da liberdade de escolha é valorizada pelo ideário moderno e qualquer coisa que esbarre nisso, qualquer restrição que afete a liberdade de escolha e autonomia do indivíduo, é vivida com sofrimento. Segundo Vargas (2012) um impedimento biológico na reprodução hoje, esbarra nos limites da liberdade de escolha do casal e a não gestação involuntária intensifica o desejo de ter filhos.

Os recursos de inseminação artificial fizeram com que as mulheres questionassem a necessidade de um pai, já que agora é possível uma produção independente, onde biologicamente é a mulher quem decide se quer ou não seguir com a gravidez. Porém, a reprodução não é só biológica, e hoje a gravidez vem sendo considerada como um evento do ‘casal grávido’ e não um episódio puramente biológico que diz respeito somente à mulher (SZAPIRO; FÉRES-CARNEIRO, 2002; TOURINHO, 2006). Para Vargas, Russo e Heilborn (2010) a reprodução pode ser uma questão de escolha, mas, da mesma forma que se escolhe ter filhos, não ter filhos também precisa ser escolhido, caso contrário, se torna um impedimento imposto e irá gerar sofrimento e frustração.

O desejo de ter filhos e a ausência da gestação após diversas tentativas é o que se denomina de infertilidade. Segundo a World Health Organization (2019) a infertilidade se define como “uma doença do sistema reprodutivo definida pela falha em alcançar uma gravidez clínica após 12 meses ou mais de relações sexuais regulares desprotegidas”. Essa afeta 10% das mulheres do mundo e ainda há pouco conhecimento e informações com relação a infertilidade masculina. O mais preocupante é que em um período de 20 anos, de 1990 a 2010, a infertilidade não demonstrou nenhuma diminuição, mostrando ser essa uma condição que vem sendo subestimada, o que indica que pessoas que precisam de ajuda para reprodução não estão tendo suas necessidades atendidas, principalmente em lugares com baixos recursos.

Estudos como o de Lopes e Leal (2012) têm feito associações em relação ao aumento da temperatura global que, segundo eles, interfere na qualidade dos espermatozóides

por serem sensíveis ao calor, assim como o contato com substâncias toxicas também interfere. De forma semelhante, Cremose (2014) afirma que devido as altas taxas de uso de agrotóxico no Brasil, o consumo dessas substâncias pode interferir tanto no sistema reprodutivo da mulher, quanto na qualidade seminal dos homens, ocasionando a infertilidade. Santana et al. (2008) ressaltam que a obesidade em decorrência do estilo de vida, pode ser um complicador da síndrome de ovários policísticos, que por sua vez, pode ocasionar a infertilidade. E ainda considerando o estilo de vida, Lopes e Pinto (2012) relatam que o consumo de tabaco, álcool e drogas, as doenças sexualmente transmissíveis, o estresse e a exposição à poluição interferem diretamente na fertilidade humana.

No entanto, a infertilidade ultrapassa a questão biológica e envolve diversas questões simbólicas que devem ser consideradas. Para Lopes e Pinto (2012) o desejo de ter filhos pode ser central na vida de um casal, mas pode ser adiado até o cumprimento de certas exigências, como por exemplo, estabilidade profissional e financeira. Com isso, o investimento emocional para se ter filhos inicia muito antes da fecundação em si, e todo esse investimento pode se transformar em frustração caso a fecundação desejada não aconteça.

Para Lopes e Leal (2012) a infertilidade está relacionada com diversas perdas: do corpo grávido, do bebê imaginado e de um projeto futuro, o que pode causar fortes danos ao casal que vivencia essa situação. Por ser uma situação de intenso sofrimento, algumas pessoas podem negar essa situação justificando que a gravidez não ocorre por motivos de escolha do casal, que estão esperando se estabilizarem financeiramente. Essa recusa de entrar em contato com o impedimento real intensifica ainda mais o sofrimento, além de impedir a busca por alternativas e cuidados adequados.

Os efeitos emocionais em decorrência dessa situação são vários, como: sofrimento, ansiedade, constrangimento, perda de autoestima, medo, ira, tristeza, vergonha, culpa, sentimento de inadequação, crise de identidade e depressão (VARGAS, 1999; SANTOS; ROSENBURG; BURALLI, 2004; BOEMER; MARIUTTI, 2003; ESPINDOLA et al., 2006; LOPES; LEAL, 2012). A World Health Organization (2019), ressalta que a infertilidade afeta também a saúde mental, há altas taxas de sintomas clinicamente significativos de depressão e ansiedade, tendências suicidas e uma forte conceituação de luto. Ainda é importante considerar o estigma oriundo da situação de infertilidade, sendo esse um assunto tabu e evitado pela maioria das pessoas, podendo ainda ser motivo de divórcio.

A fecundidade sempre foi valorizada e vista como uma benção e a infertilidade como um castigo (MALDONADO, 1991; CORREIA, 1998). Para Azevedo (2017), a

maternidade ainda tem um forte viés ligado à religiosidade, ao divino, onde o amor está associado ao sacrifício e, quando a mulher não se enquadra nesse papel, aparece a culpa e o sofrimento. Alguns autores apontam que na bíblia o filho é representado como benção divina e a mulher que não engravida é considerada seca por dentro (VARGAS, 1999; LINS et al., 2014). Vargas (1999) faz referência ao uso da denominação de “figueira do inferno” que apesar de ligada à bíblia popularmente, não se encontra na mesma, mas se sustenta como uma representação social. Além disso, há uma diferença entre a mulher que não tem filhos e a que nunca engravidou, sendo que a que conseguiu engravidar, mesmo que o tenha perdido, pode sair da posição de ser mulher seca, por ter comprovado que existe nela a possibilidade da procriação (VARGAS, 1999). Entendendo que a mulher infértil era considerada como um corpo entupido e cheio de forças estranhas, atrapalhando o ciclo das gerações em cenários mais tradicionais, cabe ressaltar que nem na bíblia, nem no popular, existem expressões para designar o homem infértil (VARGAS, 1999; DEL PRIORE, 2004).

Mesmo que a infertilidade afete o casal, o peso dela não recai de forma igual para ambos, mas principalmente sobre a mulher (VARGAS; MOÁS, 2010; VARGAS, 2012; LEITE; FROTA, 2014). A esterilidade masculina só foi reconhecida em nossa sociedade recentemente (VARGAS, 1999, 2012). E assim como é apontado por Faria (1990), há pouco tempo não eram nem feitas investigações médicas sobre a possível infertilidade nos homens. O próprio discurso médico sempre reforçou essa ideia, uma prova disso é que, mesmo com a constatação que cada um do casal tenha 50% de responsabilidade sobre a infertilidade, os exames de diagnóstico ainda são indicados primeiro para a mulher (VARGAS; MOÁS, 2010; VARGAS, 2012; LEITE; FROTA, 2014). Vargas, Russo e Heilborn (2010) reforçam que a realização dos exames relacionados com a infertilidade gera constrangimento, porém, considerando a forte influência social de gênero considera-se que a mulher pode lidar melhor com isso, pois a prática de exames ginecológicos é mais naturalizada.

Para a mulher, a infertilidade possui um significado simbólico ligado com sua feminilidade. Por sentir que não conseguiu cumprir sua vocação natural materna, pode ferir e desestruturar a representação da autoimagem feminina com a ideia de que alguma coisa está errada ou danificada, gerando sentimentos de incompletude, inferioridade, inutilidade e incapacidade (COSTA, 2002; DELGADO, 2007; LEITE; FROTA, 2014). Para as mulheres essa situação pode ser sentida com muita culpa, além disso, existe um valor cultural onde na ausência de gravidez a mulher se mantém na posição de menina, como se não estivesse autorizada a ser mulher de verdade (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2009).

McQuillan et al. (2003) apontam que a infertilidade a longo prazo pode significar uma ameaça vital a identidade da mulher, além disso, o sofrimento da infertilidade é ainda maior no caso de não haver nenhum filho vivo. Quando em contato com a infertilidade a mulher pode sentir um profundo mal-estar referente a uma ferida narcísica que pode ser intensificada por outras perdas mal elaboradas gerando ainda mais sofrimento (MIRANDA; MOREIRA, 2006; LOPES; LEAL, 2012).

Vargas (1999) em sua pesquisa identificou que as mulheres que não conseguem engravidar falam do constrangimento em interações com mulheres que já tem filhos ou estão grávidas. O que reforça, mais uma vez, o quanto o fato da reprodução está associado com a identidade feminina e pode gerar o sentimento de incapacidade e inferioridade. Algumas mulheres que não conseguem engravidar ficam incomodadas com o fato de outras mulheres, que talvez nem queriam tanto quanto elas, conseguem ter filhos e elas não, como se o direito delas fosse mais legítimo por desejarem mais (VARGAS, 1999).

No entanto, apesar de menos frequente, a masculinidade também pode ser colocada à prova, já que não conseguir ter filhos para o homem é uma ameaça a sua virilidade e continuidade, além de estar associada a impotência sexual. Sendo assim, ambos podem se sentir com o orgulho ferido por não terem a capacidade de gerar um filho. A infertilidade é sentida como defeito e gera vergonha perante uma sociedade que espera pela reprodução (COSTA, 2002; DELGADO, 2007; LEITE; FROTA, 2014).

Para Wright (1991) a forma como o homem e a mulher lidam com a infertilidade é muito diferente e isso pode gerar conflitos no relacionamento entre eles. A mulher pode ficar desapontada por não ver o marido tão preocupado quanto ela, enquanto o marido pode ficar chateado com o quanto a mulher se mostra afetada com a situação. O que intensifica esse conflito é o fato de um esperar que o outro reaja da mesma forma. Para Wiersema (2010) a situação de sigilo e a pressão social afeta ambos da mesma maneira, sendo assim, homem e mulher necessitam de igual apoio psicológico. Vários autores consideram que a fonte de maior apoio vem do parceiro e que a situação de infertilidade aproxima o casal e fortalece a relação (WIERSEMA; 2010; FARIA; GRIECO; BARROS, 2012; MARTINS et al., 2011).

Paralelo a isso, Vargas, Russo e Heilborn (2010) relatam que a reprodução ainda assume a ideia de um evento natural, dentro de uma lógica naturalizante, em que para ser válido o filho tem que vir da maneira natural. Isso faz surgir uma posição ambivalente quanto à necessidade de recorrer às tecnologias para lidar com a ausência de filhos, pois pode comprometer o ideal da naturalidade e espontaneidade das relações sexuais entre o casal.

Vargas e Moás (2010) afirmam que a obrigatoriedade das relações programadas fere a exigência de um prazer natural e espontâneo, base dos relacionamentos afetivo-sexuais contemporâneos. Leite e Frota (2014) e Azevedo (2017) apontam que o filho biológico continua sendo visto como uma extensão dos pais, garantindo a manutenção da cadeia de gerações da família e é uma maneira de perpetuação da própria existência.

No geral, os casais inférteis evitam falar sobre o assunto enquanto buscam por tratamento, por ser constrangedor e para evitar cobranças (FARIA, 1990; VARGAS, 1999; TRINDADE; ENUMO, 2002; DELGADO, 2007). Para Leite e Frota (2014), os efeitos da infertilidade podem afetar no âmbito pessoal e conjugal, mas também afetar as relações com o entorno social. Além disso, segundo Vargas (2012) as interferências familiares ou sociais ferem a ideia disseminada atualmente de uma autonomia do casal com relação à reprodução. Azevedo (2017) afirma que as redes sociais hoje têm-se transformado num espaço onde os sujeitos podem se manifestar abertamente, e que nesse contexto da infertilidade a internet pode surgir como um meio eficiente para que esses casais e ou mulheres possam expor suas angústias de forma segura, compartilhar suas vivências e se fortalecerem ao constatar que não são as únicas pessoas nessa situação, criando redes de apoio e significação.

2.5. A TECNOLOGIA E AS NOVAS FORMAS DE RELACIONAMENTO