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A natureza missionária das cruzadas para Lúlio

3. Debatendo cruzada e missão em Raimundo Lúlio

3.2. As cruzadas para Raimundo Lúlio

3.2.2 A natureza missionária das cruzadas para Lúlio

Ainda mais polêmicas são as propostas de Raimundo Lúlio para o uso das cruzadas como meios úteis à evangelização dos povos, especialmente a dos muçulmanos. Teria o maiorquino defendido o uso da espada como instrumento de persuasão à fé cristã? Sobre este tipo de interpretação da proposta luliana, Bosh recomendaria cautela, pois afirma: “Até Raimundo Lulo [sic], que rejeitava toda tentativa de forçar muçulmanos e pagãos a converter-se à fé católica, apoiou a idéia de uma cruzada, dentro das fronteiras da cristandade, contra os hereges” (Bosch, 2002, p. 271).

No entanto, esta visão parece ter estado presente mais no início da sua vida e jornada, pois segundo estudiosos apontam, ele teria ampliado a sua perspectiva das possibilidades de uso das cruzadas, a ponto de alguns, como Reboiras levantarem o questionamento da hipótese de ter Lúlio até mesmo desistido do seu projeto original de levar os muçulmanos à fé cristã somente pela razão, sem o uso da espada, talvez por ter-se cansado de insistir em um caminho que dava tão pouco resultado.

Fato é que, segundo Reboiras, somente em uma obra posterior, o Liber de passagio,

discute Lúlio pela primeira vez (assim se vem confirmando) e trata detalhadamente de táticas militares, ou seja, do uso da força em confronto com o infiel, uma opção que ele claramente havia rejeitado em obras anteriores. Este será o primeiro de uma série de opúsculos que

aparecerão regularmente, [...] nos quais, com maior ou menor extensão e com mais ou menos diferenças acidentais de conteúdo, se formulam planos de missão e ações bélicas contra infiéis e cismáticos.

Este opúsculo e os tratados que sobre este tema cronologicamente o sucederam são a base textual de uma longa e prolífica discussão sobre o conceito de missão em Raimundo Lúlio e sua atitude ante a cruzada (Reboiras, 2009, p. XXII).

Apesar de Reboiras identificar esta mudança de tom de Lúlio de contrário para favorável às cruzadas em um dado momento da sua vida, algo devidamente identificado e datado a partir dos escritos lulianos, a pergunta essencial a ser respondida é: qual era o papel das cruzadas no plano missionário de Raimundo Lúlio? É aqui que se deve concentrar a pesquisa, visto que dependendo da resposta, se afeta consideravelmente toda a sua perspectiva de missão, de precursor do diálogo inter-religioso, etc.

Sobre a mudança de compreensão e atitude de Raimundo Lúlio diante das cruzadas, Jaulent assim explica:

Num primeiro momento, Lúlio não alimentava nenhum projeto a respeito da cruzada. Sua primeira obra sobre o tema, o Tractatus de modo

convertendi infidelis, fora escrito pouco depois de 1291, após a queda de

São João de Acre sob o poder dos egípcios. A conquista de São João de Acre foi uma hecatombe para o Ocidente. Nos anos seguintes, caíram os últimos baluartes do reino de Jerusalém [...].

Depois destes acontecimentos de graves conseqüências para a cristandade, Lúlio dedicou o Tractatus ao papa Nicolau IV, então empenhado na convocação da cruzada, dando-lhe a conhecer os seus planos estratégicos. Todavia, [...] nessa obra Lúlio encara as cruzadas apenas como um meio para atingir o principal objetivo que guiava a sua frenética atividade: a conversão dos infiéis. Admitia o domínio pela força apenas como meio de possibilitar o diálogo. Somente o diálogo seria capaz de levar à conversão Lúlio sempre defendeu a capacidade da razão humana de destruir erros e de alcançar a verdade da fé cristã (Jaulent, 2001a, pp. 12,13).

Embora se aproxime perigosamente de uma visão conversionista das cruzadas, seria mais apropriado entender a proposta de Lúlio de aproveitamento das cruzadas em seus propósitos de reconquista de terras como uma ferramenta útil à evangelização dos não- cristãos, uma vez que se poderia obrigá-los, pela força da espada, a ouvir a mensagem cristã, uma vez que dela eram ignorantes e não queriam saber, mas estavam sob o domínio da espada cristã. Esta visão reflete algo bem próprio à época de Lúlio, como já se discutiu anteriormente; contudo, tal proposta não tem nenhuma validade para um mundo pós- cristandade, além do que se mostra incompatível com a natureza espiritual do evangelho e a docilidade do seu convite.

Sobre o grande equívoco, a respeito da relação entre o ser cristão e o lutar por uma terra cristã, em oposição aos outros, enxergando-os como tendo menos direito, mentalidade própria ao conceito de cristandade, Comblin comenta:

Esse povo de Deus situa-se na mesma terra em que moram os outros povos, não dispõe de terra própria, mas é feito de pessoas que já pertencem a outros povos. É um povo entre os povos [...] Não substitui os outros povos nem os absorve, mas influi neles.

Na América Latina é difícil imaginar a Igreja católica fora da imagem de cristandade. O imaginário católico ainda é de cristandade (Comblin, 2002, p. 283).

Certamente seria exigir muito de Lúlio a compreensão necessária quanto à natureza não essencialmente territorial do Reino de Deus, não sobrescrita a um povo, cultura ou Estado; ocorre que neste missionário as cruzadas ofereciam oportunidade para se anunciar forçadamente a mensagem cristã àqueles que não a conheciam, conforme atesta Veiga, afirmando que ao não impor a fé pelas cruzadas, mas sim a pregação da fé, “Lúlio nos revela o grande respeito que tinha pela liberdade religiosa e pela liberdade das consciências” (Veiga, 2009, p. 93).

Para concluir-se a percepção de Lúlio acerca do uso missionário das cruzadas, não há mais elucidativas palavras do que as seguintes, de sua própria autoria, retirada do seu Tractatus de modo convertendi infideles, datado de cerca de 1292-1293, no qual afirma:

[...] com os sarracenos presos entre os cristãos, ordene-se que alguns dos próprios idôneos sejam recebidos, aos quais seja mostrada a nossa fé, e que outras razões nossas destruam a seita deles. Caso não queiram vir para a fé, que se discuta com eles por algum tempo e, depois disso, que possam ir livremente para sua terra com nossos empréstimos e presentes da corte, e eles mesmos contarão aos outros sarracenos nossa fé, as razões que temos e o modo de crer que mantemos. Assim as coisas preditas deveriam ser feitas; que todas essas coisas seriam semeadas entre eles e que eles fiquem em dúvida e preparem o caminho para sua conversão (Lúlio, 2009c, p. 19).

Esta citação de Lúlio elucida bastante e precisamente a distinção, assim como a conveniência da missão dentro do propósito cruzadista. Fato é que ele assumia a visão militar de cruzada, educando-a segundo os critérios da cavalaria, veja-se o Livro de ordem da cavalaria, que é a sua proposta normativa quanto à formação e atuação das ordens militares, recheada de orientações morais e religiosas que seriam uma espécie de simples modelo dos direitos civis em estados de guerra. Contudo, também é fato que para ele a

conversão só se dá e só deve ser buscada através de razões necessárias. Ninguém deveria ser forçado à mudar de religião, pois ainda que ele defenda a idéia de que no contexto cruzadista, poder-se-ia forçar os muçulmanos a ouvir a mensagem cristã, contudo, ele sempre respeitou a liberdade da consciência alheia, no que diz respeito ao direito inalienável à autonomia em questões de fé.

Lúlio era filho da sua época, e como tal, via nas cruzadas um meio legítimo de se lutar pelo direito de posse de terras; ele procurou regular humanizando o empreendimento; e se mostrou bastante sensível à consciência alheia quando assegura aos muçulmanos cativos das cruzadas o seu direito a permanência na fé maometana; no autêntico espírito cruzado, eles deveriam ser encaminhados em direção a terras sob domínio islâmico, financiado pelos cristãos, para, tendo a vida preservada e assegurada pelos cristãos, e o seu retorno às terras dos seus compatriotas financiado, levasse consigo o testemunho pessoal daquilo que ouvira da mensagem cristã, tornando-se assim, um “pré-missionário”, preparando os corações dos demais à futura audição da mensagem cristã.

É nítida a primazia da preocupação de Lúlio com a comunicação racional da mensagem cristã; nele, é inegociável o elemento da conversão pela razão, mesmo no mais tenso ambiente cruzadista e admitindo algum uso desta força para impor condição de audição; contudo, ele busca separar definitivamente a natureza das duas tarefas, uma é a da missão e outra é a da cruzada, ainda que até mesmo andassem juntas.

Quanto à contemporaneidade, contudo, é absolutamente inadequada a idéia do uso da força e da mentalidade de guerra que estava presente de alguma maneira no espírito cruzado dos dias de Lúlio, em contraste a isto, deve-se desenvolver um espírito de serviço e mansidão, como indica Fernando (2001, p. 295), que ressalta ainda através das seguintes palavras a conveniência de um estilo de vida mais simples, como também propunha Lúlio, por parte dos missionários cristãos contemporâneos, devido às instabilidades e deficiências econômicas que marcam a realidade da população residente em muitos dos países de destino destes, inclusive muitas nações de maioria populacional muçulmana:

Em tempos como este, uma vida de privação voluntária pelos ministros cristãos poderia ser um grande recurso para ganhar credibilidade. À medida que o pobre vê o rico ficar mais rico, enquanto eles ficam mais pobres, e também à medida que cresce a raiva deles contra o rico, seria refrescante para eles [os pobres] verem algumas pessoas que poderiam estar em um [sic] melhor situação de vida escolhendo se privar para servir o pobre (Fernando, 2001, p. 304).

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