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A NEUTRALIDADE : O CONFLITO DO INTÉRPRETE

No documento E MELI MARQUES COSTA LEITE (páginas 47-52)

3.1 C ARACTERIZANDO A INTERPRETAÇÃO

3.1.1 A NEUTRALIDADE : O CONFLITO DO INTÉRPRETE

Ser exato, fiel, neutro e atuar como retransmissor de in- formações são noções que influenciaram o início do trabalho de interpretação em língua de sinais no Brasil, conforme regis- trado na primeira publicação da Feneis, já mencionada, sobre esse tema. Nela se afirma que a presença do intérprete de lín- guas de sinais é fundamental e que ele deve atuar “como in- termediário na transmissão de informações” (1988:13). Em pu- blicação recente da SEESP/MEC, também citada anteriormente, os requisitos como confiabilidade, imparcialidade, discrição, distanciamento profissional e fidelidade estão colocados como preceitos éticos que devem ser observados durante a interpre- tação da língua falada para a língua sinalizada e vice-versa. (cf. MEC/SEESP, 2002:28). Essa mesma publicação apresenta o Có- digo de Ética dos intérpretes de LIBRAS no Brasil, o qual enfatiza em sua introdução que “[o] intérprete tem a responsa- bilidade pela veracidade e fidelidade das informações.” Dessa maneira, é possível observar que as literaturas oficiais apresen- tadas – MEC e FENEIS – estabelecem e validam, para o Bra- sil, um saber que permanece no imaginário das pessoas, sendo tomado como regras a serem seguidas pelos intérpretes duran- te as interações em que mediam conversas face-a-face entre participantes surdos e ouvintes.

Isto pode ser constatado nas palavras de Ricardo Sander que, na qualidade de intérprete de LIBRAS, com muitos anos de exercício profissional, registra sua própria experiência em artigo, recentemente publicado, onde diz o seguinte:

Um profissional intérprete (embora, não exista uma neu- tralidade total em sua função e por isso o uso de aspas) deverá sempre usar de “neutralidade” em suas atuações, ati- tudes corporais e entonações de voz (DA MANEIRA MAIS NEUTRA POSSÍVEL), para que o discurso do apresenta- dor não seja deturpado, mal interpretado, ou pior, seja o contrário daquilo que é da intenção do apresentador 29

(2003: 131).

No presente relato fica clara a consciência do autor com relação às suas responsabilidades durante o ato de interpretar, mas, também, parece demonstrar um conflito entre aquilo que acredita ser a ato interpretativo, dentro dos princípios éticos da neutralidade, e o que, realmente, acontece em sua prática. Esse conflito evidencia-se pela necessidade de usar aspas para a palavra neutralidade, mais a expressão em letras maiúsculas apresentada entre parênteses que parecem revelar sua necessi- dade de justificar a que tipo de neutralidade está se referindo. Sander parece contraditório ao dizer que, “[e]mbora não exista neutralidade total”, ela deve estar presente “[e]m suas atua- ções, atitudes corporais e entonação de voz do intérprete”. É Roy (2000) quem esclarece muito bem essa visão do intérpre- te, dizendo existir uma tendência, da parte deles, em criar me- táforas para idealizar um comportamento conversacional, mes- mo quando suas práticas violam as noções que eles mesmos têm sobre esse comportamento e suas expectativas referentes à condução de uma conversa durante a transmissão de mensa- gens. (cf. 2000:103). Wadensjö (1998), ao tratar desse tema,

diz que a “[n]eutralidade é uma noção relacionada a um deter- minado relato da fala de outros, e pode destacar-se como par- cial ou não, dependendo de como a fala é entendida” (cf.1998:284). Wadensjö (1998) e Metzger (1999a) discutem a questão de que nem sempre as crenças dos intérpretes sobre seu trabalho, correspondem à realidade da interpretação.

Em conversas informais, nas discussões em palestras, se- minários, ou durantes aulas em cursos realizados pelo Brasil, esta pesquisadora tem observado, através dos diversos discur- sos de pessoas que têm desempenhado a função de intérprete de Libras, que elas, de acordo com suas crenças, demostram entender como sendo características próprias de sua função, ser: um elemento neutro na interação, invisível e imparcial quando interpreta; e que para ser fiel ao texto original, deve funcionar como máquina (transferir o produto de uma língua para outra), deve ser um mediador, facilitador e condutor da comunicação.

Esse confronto entre as crenças e a realidade, pode ser comprovado no discurso de Sander (2003), apresentado ante- riormente, pois segundo Metzger (1999a), existe um paradoxo em relação às metas de neutralidade traçadas pelo profissional intérprete, e, aquilo que, verdadeiramente, acontece no ato da interpretação. (cf. 1999a:24). Sander parece ter consciência da impossibilidade em ser neutro, “[e]mbora, não exista uma neu- tralidade total” são sua palavras, ao mesmo tempo em que afir- ma que o intérprete “[d]everá sempre usar de “neutralidade”. Segundo a autora, os quatro modelos de papéis do intérprete, à seguir, surgem e resultam nesse paradoxo: 1) ajudador; 2) condutor; 3) facilitador da comunicação; e 4) especialista bilingüe e bicultural. Este último é um modelo mais recente entre os papéis do intérprete, e, que Metzger considera como

relevante para o desempenho da tarefa de interpretar. A autora esclarece que o modelo de ajudador tem relação com o tempo em que a profissão de intérprete encontrava-se em fase de or- ganização, nos Estados Unidos, quando a maioria das pessoas (amigos ou familiares de surdos), que tinham alguma fluência nas duas línguas, desempenhavam essa função. O modelo de condutor projeta o intérprete como se fosse máquina e aparece ao longo dos últimos estágios de profissionalização. Na tenta- tiva dos intérpretes em cumprir o modelo de condutor, como se fossem máquinas, surge o problema da qualidade e da res- ponsabilidade pela interpretação realizada, diz Metzger. Dessa problemática anterior é que surge o modelo de facilitador da comunicação, modelo este, muito semelhante ao de condutor. O modelo de especialista bilíngüe e bicultural é o modelo que leva em consideração os fatores situacional e cultural como sen- do relevantes para o desempenho da tarefa de interpretar. (cf. Metzger, 1999a:21-22).

Até aqui levantei algumas considerações, apresentadas por alguns autores, acerca das crenças dos intérpretes sobre a sua atuação durante uma interpretação. Entretanto, se faz necessá- rio, considerar, também, a questão por parte do usuário da interpretação. Mason (1999) chama atenção para: a) o desencontro que existe, de um lado, entre o entendimento que o público usuário do serviço de interpretação sustenta sobre o intérprete de diálogos, considerando-os como sendo espécies de “máquinas de interpretar”, que transferem simplesmente o produto de uma língua para outra; b) e, por outro lado, a ob- servação da realidade de uma situação em que o significado é subjetivo, estando o intérprete em processo de constante ne- gociação, e onde uma tradução literal levaria a constantes mal entendidos, contrariando a tentativa dos intérpretes em trans-

mitir o sentido desejado, colocando-os, freqüentemente, em situações difíceis. (1999:149-150). Refletindo sobre as crenças dos intérpretes sobre o seu trabalho, e nas considerações de Mason (1999) sobre o pensamento dos usuários da interpreta- ção, parece que os intépretes enfrentam uma pressão constante em relação ao desempenho da tarefa de interpretar.

Retornando ao registro de Sander (2003), o autor demons- tra a sua preocupação com uma interpretação que zele pela imparcialidade, mesmo que para ele não exista neutralidade total. Entretanto, não deseja que o produto de sua interpreta- ção sofra interferências pessoais. Sander deixa claro em suas palavras, “[p]ara que o discurso do apresentador não seja de- turpado, mal interpretado, ou pior, seja o contrário daquilo que é da intenção do apresentador”, ele precisa ser o mais “neu- tro” possível. (2003:131). Mas, como pode o intérprete regu- lar sua neutralidade no momento em que interpreta? Como pode, sendo humano, tornar sua participação isenta de inter- ferências pessoais? Questões como essas e outras não são novas para a interpretação de uma forma geral, mas ainda continuam a influenciar o pensamento e a prática das pessoas que, tam- bém, atuam na área da interpretação em língua de sinais, é o que estudiosos têm constatado. Essa realidade parece não estar sendo diferente, aqui no Brasil, sendo necessárias pesquisas que mostrem aquilo que realmente acontece, entre todos os parti- cipantes, durante uma interpretação, como enfatiza Wadensjö (1998).

Para Roy (2000), a interpretação é um “[a]to comunicati- vo, lingüístico e social e o papel do intérprete nesse processo está no engajar-se, inteiramente, no conhecimento e compre- ensão do todo dessa situação comunicativa, inclusive em rela- ção à fluência nas línguas, competência e uso apropriado de

cada língua e o manejo do fluxo cultural que atravessa a fala.” (cf. 2000:3). Essa afirmativa de Roy é resultado de novos estu- dos baseados em aspectos sociais e culturais, introduzidos pri- meiro no estudo da tradução e, posteriormente, no da inter- pretação. Esse assunto será tratado, posteriormente, na seção 3.3. Na seção a seguir tratarei sobre algumas questões relacio- nadas às diferenças entre a interpretação em língua oral e a interpretação em língua de sinais.

No documento E MELI MARQUES COSTA LEITE (páginas 47-52)