• Nenhum resultado encontrado

O INTÉRPRETE DE LIBRAS NO B RASIL

No documento E MELI MARQUES COSTA LEITE (páginas 37-44)

A presença de intérprete, na mediação entre surdos e ou- vintes, deve ser tão antiga quanto a existência das pessoas sur- das pelo mundo. Aqui, no Brasil, temos notícia da convocação oficial de intérprete, por órgão judicial, ao então Instituto Nacional de Surdos-Mudos, ainda no final do século XIX, con- forme documentos existentes na biblioteca do INES 25.

Na década de 80, quando ingressei no quadro de profissi- onais dessa instituição, havia um funcionário técnico-admi- nistrativo (inspetor de aluno), chamado Francisco Esteves, que era reconhecido e respeitado pela comunidade escolar como sendo o único profissional com domínio da língua de sinais, denominada, na época, de mímica. O sr. Esteves, como era conhecido, sinalizava livremente com os alunos surdos nos vá- rios ambientes do INES (corredores, pátio, refeitório e dormi- tórios), mas não tão livremente em eventos no auditório da instituição, onde, oficialmente, não era permitido. Utilizava a língua de sinais na comunicação com os alunos desempenhan- do o papel de intérprete, de maneira informal, pois a língua de sinais não era reconhecida como tal, não sendo tolerada por sucessivas direções dessa instituição e pela maioria dos profes- sores, por longas décadas. Essa informação foi validada pelo professor Geraldo Cavalcanti, já citado anteriormente, em co- mentários realizados nos cursos que ministrava, através de de- clarações de ex-alunos do INES, e por mim própria, pois sou testemunha do fato quando do meu ingresso na instituição no ano de 1984.

Por ocasião da constituinte que preparou a Constituição Brasileira de 1988 surgiram as comissões 26 de luta das pessoas portadoras de deficiência. No Rio de Janeiro, a representação dos surdos foi constituída por Ana Regina e Souza Campello e João Carlos Carreira Alves, que tinham como intérprete nos eventos a jovem pernambucana, Denise Coutinho, que se en- contrava nessa cidade para estudar. Era ela já conhecedora da língua de sinais e, portanto, assumia, corajosamente, a tarefa de interpretar em público em uma época que nenhum incenti- vo existia para o exercício dessa função, muito pelo contrário, era uma atuação considerada por profissionais da área, como sendo um retrocesso à imagem social dos surdos e das pessoas que assim, por ventura procedecem, sendo, severamente. criticadas e desprestigiadas. A estudante Denise Coutinho foi a primeira pessoa a assumir a interpretação da LIBRAS publi- camente, em evento coletivo, podendo ser considerada a pri- meira intérprete de LIBRAS no Rio de Janeiro, quiçá no Bra- sil. Outro profissional que se destacou, nesse início de trabalho de interpretação, foi Ricardo Sander, sendo o primeiro a apre- sentar o Hino Nacional em LIBRAS, em eventos oficiais da FENEIS, no final da década de 80. Vale registrar que João Carlos Carreira Alves 27, já citado, foi o primeiro intérprete de LIBRAS

26 Movimento da comissão de luta dos direitos das pessoas surdas fortaleceu e influenciou

politicamente um grupo de surdos no Rio de Janeiro que liderou a fundação da FENEIS.

27 João Carlos Carreira Alves é um professor surdo licenciado em Geografia e que, na ocasião

da implantação da turma de alunos surdos na referida escola estadual, era professor do estado do Rio de Janeiro. Foi designado para apoiar técnicamente o trabalho junto aos pro- fessores ouvintes do noturno interpretando as aulas na escola citada. O prof. João Carlos ficou surdo no decorrrer de sua primeira infância, mas se integrou à comunidade surda quando adulto freqüentando as associações de surdos onde adquiriu a LIBRAS com fluência. Foi também o pioneiro como intérprete surdo no principal jornal da TV Bandeirantes do Rio de Janeiro, em 1986. O professor João Carlos liderou, entre outros, a luta pela conquista de

atuando em sala de aula no Rio de Janeiro. Em 1988, a Secre- taria de Educação do Estado28 do Rio de Janeiro organizou a primeira experiência com turma de alunos surdos no Ensino Médio com a presença de intérprete. Essa experiência se deu na Escola Estadual “Alceu Amoroso Lima”, em Laranjeiras, próximo ao INES.

No INES, a interpretação voltou a ser realizada, publica- mente, no início dos anos 90, por iniciativa pessoal desta pes- quisadora, em eventos diversos no auditório do INES e, poste- riormente, fora em reuniões do movimento de greve dos servidores públicos federais e posteriormente por ocasião do movimento movimento estudantil do “Fora Collor”, marcan- do com isso a inclusão dos alunos do INES nesse cenário de luta que se tornou nacional. Nessa ocasião os alunos surdos se conscientizam da necessidade de se organizarem politicamen- te e fundam o Grêmio Estudantil do INES, quando passam a reivindicar, através de movimentos internos e externos (movi- mento estudantil junto a AMES – Associação Municipal de Estudantes), o uso da LIBRAS; outro profissional do INES

28 Essa proposta de inserção de alunos surdos na rede estadual de ensino, através de turmas só

com surdos e com a presença de intérprete de LIBRAS, foi da professora Marilene Nogueira, então Coordenadora da Educação Especial do estado do Rio e professora do INES. Vários intérpretes trabalharam nessa escola (contratados pela FENEIS) e militaram junto aos alunos surdos e ouvintes, professores e direção para a manutenção desse trabalho sob a responsabi- lidade do estado, mas não lograram êxito e as turmas foram extintas.

legenda na televisão. Como desdobramento desse movimento se deu a conquista do Jornal Visual da TV Educativa do Rio de Janeiro em funcionamento até hoje. Outra bandeira de luta desse professor na área da interpretação foi o CAS – Centro Atendimento aos Surdos na então TELERJ e que expandiu para outros estados brasileiros. É importante registrar que a luta pela legenda na televisão no Rio de Janeiro, e quiçá no Brasil, foi iniciada pelo surdo Carlos Laviola desde o final da década de 70, através de documentos por ele encaminhados à parlamentares e divulgadas em jornais, conforme arquivo pessoal.

que também se interessou pela aprendizagem da LIBRAS e sua interpretação foi o professor de desenho José Maria Domingues, o qual interpretava as missas realizadas nessa instituição.

Sabemos que a interpretação sempre existiu com a atua- ção, principalmente, de pessoas que tinham surdos na família, que, pela necessidade, assim procediam (cf. Quadros, 2002:30). Mesmo que a família não considerasse os sinais como uma for- ma de comunicação prestigiada socialmente, viam-se obriga- das a traduzir, diante da premente necessidade de comunica- ção da parte desses surdos, fora do ambiente familiar, como em consultas médicas, compras em geral, em delegacias de polícia, bem como em ligações telefônicas e outros. Historica- mente, assim surgiram os primeiros intérpretes, filhos ouvin- tes de pais surdos ou parentes de pessoas surdas (cf. Cokely, 1980). Algumas das informações que aqui registro não estão em documentos, mas as recupero de relatos de profissionais, aposentados, e, também, de minha experiência pessoal.

É com a organização da FENEIS, portanto, que a atuação profissional de intérpretes de língua de sinais tem seu início e se estabelece no Brasil. São os próprios surdos, que não mais suportando o bloqueio da comunicação, a falta total de acesso às informações, e, por total omissão dos órgãos governamen- tais, deflagram não só um movimento reivindicando o reco- nhecimento dessa atividade profissional, como também pro- move o início desse trabalho em todo o Brasil.

Atualmente, a FENEIS possui, em seu quadro funcional, profissionais intérpretes capacitados em cursos livres de curta duração, organizados e promovidos por ela mesma, em todos os estados em que já implantou sua representação, contando, no momento, com uma dezena de regionais. Possui uma tabe- la básica com valores a serem cobrados pelo trabalho de inter-

pretação. Essa, é uma tabela de referência, respeitada pela co- munidade ouvinte, que passou a valorizar e a solicitar esse tra- balho remunerado à FENEIS. Tal fato muda, totalmente, o antigo cenário de atuação do intérprete, de caráter filantrópico até então, muito forte, no imaginário da sociedade em geral, dos usuários surdos, bem como da própria pessoa que se pro- punha a desempenhar essa função.

O próprio INES passa a utilizar dos serviços de intérpre- tes capacitados pela FENEIS, a partir do final da década de 90. Entretanto, os intérpretes que continuam a surgir não dispõem de um curso de formação, nem em nível médio, nem em nível superior, em todo o Brasil, contando apenas com cursos livres de curta duração que a FENEIS se empenha em manter reali- zando.

Em 1988, a FENEIS realiza, no Rio de Janeiro, o I En- contro Nacional dos Intérpretes em Língua de Sinais. Nesse mesmo ano, publica uma espécie de manual com o título “A Importância dos Intérpretes da Linguagem de Sinais”, note-se que nesse tempo, a comunidade surda não utilizava, ainda, uma denominação própria para a língua de sinais. Havia, sim, uma denominação utilizada pelas lingüístas Lucinda Ferreira Brito e Tanya Amara Felipe que se referiam, em seus artigos, no final da década de 80, como Língua de Sinais dos Centros Urbanos Brasileiros – LSCB.

O documento da FENEIS, mencionado anteriormente, registra em sua apresentação, o pensamento da época sobre o que era esperado do intérprete de língua de sinais: “Trata-se de um tradutor que se coloca entre os que ouvem e se expressam de viva voz e os que se comunicam por meio de gestos, de sinais e do alfabeto manual. Esse intérprete facilita em muito a comunicação, a informação e a compreensão dos surdos” (1988:

07). No ponto dedicado às atribuições do intérprete, o docu- mento esclarece que o “intérprete desempenha um número incontável de ações, na rua, no lar, em ocasiões imprevisíveis”. Essa publicação, que possui características de um manual, tem como preocupação destacar os lugares onde se considera neces- sária a presença do profissional intérprete de língua de sinais:

(...) nos meios de comunicação de massa sonoros (rádio, cinema, televisão); em palestras, conferências, seminários, simpósios e outras formas de reunião; atuando como inter- mediário na transmissão de informações em hospitais, re- partições públicas, portos, aeroportos, estações ferroviárias e rodoviárias; em igrejas, escolas, atendimento telefônico e em situações de emergência e de lazer (FENEIS 1988:13).

Em 1992 é realizado o II Encontro Nacional de Intérpre- tes, também no Rio de Janeiro, ocasião em que foi aprovado o código de ética, em vigor até a presente data. Outro documen- to que trata das questões relacionadas ao trabalho profissional dos intérpretes de LIBRAS foi “O Surdo e a Língua de Sinais”, produzido por uma Câmara Técnica, organizada pela CORDE – Coordenadoria Nacional de Apoio à Pessoa Portadora de Deficiência – em 1996. Nesse documento, o intérprete é ca- racterizado da seguinte maneira: “O intérprete é um profissio- nal bilíngüe, que efetua a comunicação entre: surdo x ouvinte; surdo x surdo; surdo x surdo - cego; surdo - cego x ouvinte.” Mais adiante, no item relativo aos requisitos para o exercício da função, o mesmo documento, diz:

O intérprete deve ser um profissional bilíngüe; reconheci- do pelas associações e/ou órgãos responsáveis; intérprete e não explicador; habilitado na interpretação da língua oral, da língua de sinais, da língua escrita para a língua de sinais, e da língua de sinais para a língua oral (cf. CORDE 1996:08).

É com a realização do Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos que o MEC publica, através da SEESP, no ano de 2002, “O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa”, autoria de Ronice Müller de Quadros, intérprete e pesquisadora da LIBRAS. Essa publica- ção trata a confiabilidade, imparcialidade, discrição, distância profissional e fidelidade como papéis reservados ao intérprete ao realizar a interpretação da língua falada para a língua sinali- zada e vice-versa (cf. 2002: 28). É nesse emaranhado de descri- ções, perfis e requisitos que o intérprete de LIBRAS entra em cena no contexto da sala de aula, aqui no Brasil.

Diante do exposto, julgo ser necessário compreender, na realidade da interpretação, isto é, em um encontro real inter- pretado, quais os papéis assumidos pelo intérprete de LIBRAS, principalmente, quando atua em um cenário diferente e com- plexo como é a interação em uma sala de aula onde convivem alunos surdos e ouvintes, falando diferentes línguas. É necessá- rio, portanto, verificar os caminhos percorridos pelo saber teó- rico no campo da tradução/interpretação, revendo, discutindo e selecionando a base teórica que me permitirá alcançar os ob- jetivos traçados para esta pesquisa, conforme mencionado no parágrafo anterior.

No documento E MELI MARQUES COSTA LEITE (páginas 37-44)