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A noção de dificuldade da escolha

Parte II A Natureza e a Relevância da Dificuldade

Capítulo 5 O Conceito de Dificuldade

5.2. A noção de dificuldade da escolha

Uma vez identificadas as condições da dificuldade é possível estabelecer que a

dificuldade da escolha se refere ao esforço envolvido no processo de deliberação sempre que o agente é confrontado com um conjunto de alternativas cujas consequências são avaliadas num espaço multidimensional de valores incomensuráveis e conflituantes.

Esta definição não dispensa alguns comentários. Em primeiro lugar, é importante notar que todas as condições da dificuldade, identificadas no ponto anterior, são aqui consideradas numa perspectiva substantiva da escolha. Esta visão substantiva pressupõe que os valores ou as dimensões de valor que orientam a escolha não são interpretados como meras instâncias de um valor abstracto susceptível de maximização. Nesta perspectiva, a “ comensurabilidade não é simplesmente uma questão que dependa do estabelecimento de trade-offs numéricos entre diferentes itens” (Richardson, 1997, p. 105), como o é para a racionalidade económica neoclássica3. A comensurabilidade é ela própria uma questão substantiva dependente das considerações valorativas do sujeito da escolha na situação concreta em que ela ocorre: “ os elementos conflituantes de uma situação” não existem a priori, eles estão presentes quando “ são percepcionados e sentidos como tal” (Stocker, 1990, p. 5) pelo próprio sujeito da escolha.

2 Para Raz (1986: 322) “ A e B são incomensuráveis se não é verdade que um seja melhor do que o

outro nem é verdade que tenham valor igual” . Ele refere assim que utiliza os termos incomensurabilidade e incomparabilidade como tratando-se de sinónimos. Contrariamente a Raz (1986), a perspectiva aqui defendida é próxima das abordagens de Stocker (1990), Chang (1997), Richardson (1997) e Nussbaum (2000), que distinguem entre incomensurabilidade e incomparabilidade.

3 Como já foi discutido anteriormente, este é o entendimento que a teoria das preferências

reveladas e a formulação axiomática da escolha têm sobre o pressuposto da comensurabilidade de valor, constituindo uma condição matemática que garante a existência de uma função de utilidade única.

Em segundo lugar, a dificuldade não é uma condição excepcional. A presença de múltiplas dimensões de valor incomensuráveis e conflituantes corresponde de facto a uma situação muito frequente e comum na escolha que ocorre, tanto em escolhas correntes em que estão em causa bens com múltiplos atributos, como em escolhas que fazem apelo a considerações morais.

Em terceiro lugar, o conflito entre valores de que se fala não é o mero conflito resultante da escassez, tido em conta pela ‘escolha racional’ neoclássica. Não se trata apenas da impossibilidade de maximizar em simultâneo todos os objectivos, em consequência de restrições situacionais. Trata-se sobretudo da dificuldade de expressar ou de efectivar em simultâneo todos os valores em presença, ou dito de outra forma, da impossibilidade de compensar a supressão total ou parcial de um valor com acréscimos na efectivação de outro(s). Na realidade, assumir a comensurabilidade de valor implica que não se reconheça a possibilidade de conflito entre as diferentes dimensões de valor. Se o sujeito é capaz de estabelecer

trade-offs entre todas as dimensões de valor, ou é pelo menos capaz de as ordenar numa escala de importância, o conflito é simplesmente anulado. Mais ainda, o estabelecimento a priori da comensurabilidade de valor implica o esvaziamento da própria noção de conflito. No decurso do processo de deliberação o indivíduo pode acabar por considerar apropriado o estabelecimento de trade-offs entre as diferentes dimensões de valor que estão em causa. No entanto, isso significaria apenas que, após reflexão, o indivíduo havia concluído que não existia sequer conflito ou havia simplesmente adiado o assunto, o que não equivale à superação do conflito.

Por último, cabe aqui uma referência a Eliaz et al. (2006) – um trabalho que reconhece e procura criar espaço no quadro da ‘escolha racional’ para a incomparabilidade entre alternativas, por via da redução da exigência do Axioma Fraco das Preferências Reveladas. No artigo intitulado Indifference or

Indecisiveness? Choice-Theoretic Foundations of Incomplete Preferences, os autores procuram mostrar que a partir das escolhas realizadas pelo agente, ou do seu comportamento, é possível distinguir entre situações de indiferença e situações de indecisão ou de incomparabilidade. Os autores propõem que dadas duas alternativas ai e al, relativamente às quais o agente não revelou uma

preferência estrita, se existir uma alternativa ak: ai ak, para que aial é

preciso que al ak. Caso isto não se verifique, o máximo que se pode dizer

relativamente a aie alé que são alternativas incomparáveis e não que são indiferentes4. Isto significa então que a escolha pode ser reveladora de uma relação de preferências incompleta. Com a inclusão deste caso no Axioma Fraco das Preferências Reveladas, o critério de escolha que passa a ser considerado, tal como no caso (a) aqui discutido, é o da dominância. As soluções não dominadas do conjunto solução são as soluções incomparáveis para o agente. O conjunto destas soluções caracteriza-se pelo facto de algumas delas serem superiores em determinadas dimensões de valor, enquanto que outras o são noutras dimensões. A questão, no entanto, não é merecedora de mais nenhum tipo de elaboração pelos autores, que acabam por concluir pela indeterminação da escolha nestas situações.

O presente capítulo estabeleceu as condições da dificuldade da escolha e apresentou uma noção de dificuldade. A dificuldade da escolha refere-se assim ao esforço envolvido no processo de deliberação nas situações em que se verificam as condições de dificuldade, isto é, a multiplicidade, a incomensurabilidade e a conflitualidade das dimensões de valor.

A noção de dificuldade da escolha que é aqui considerada baseia-se na existência de conflito entre múltiplas dimensões de valor incomensuráveis. Este conflito está contido na tensão a que Dewey atribuía a origem da reflexão e da deliberação. De facto, para Dewey (1922), como foi apresentado e discutido no capítulo anterior, a deliberação envolve sempre conflito, sendo concebida por ele como “ um ensaio dramático (imaginativo) de várias linhas de acção concorrenciais” (Dewey, 1922, p. 190) – um processo que culmina na escolha, mas que necessariamente envolve

4 Note-se que Raz (1986) já tinha reconhecido este critério como um teste de incomparabilidade,

esforço. De resto, a noção de dificuldade aqui apresentada é em tudo convergente com a abordagem sobre a escolha e a acção humanas desenvolvida na tradição pragmatista-institucionalista, em particular com a de Dewey em Human Nature

and Conduct.

Recorde-se ainda que segundo Dewey (1922), a deliberação, tendo como finalidade a escolha, não requer a redução do conflito a um mero cálculo de quantidades, o que decorre da forma como o próprio conflito é conceptualizado, isto é, da noção de dificuldade. Nesta perspectiva do conflito entre dimensões de valor, o indivíduo é colocado perante tendências contraditórias que o impelem em direcções opostas e que lhe oferecem diferentes razões para agir. A deliberação é então um processo de superação do conflito que opera a partir do exame das razões para agir e não simplesmente da consideração dos meios de acção.

É assim possível a partir da tradição pragmatista da escolha procurar articular uma interpretação da escolha e da acção humanas, alternativa à da teoria da escolha neoclássica.5 Essa articulação é facilitada pela exploração das implicações da dificuldade da escolha e pela abertura dos fins, ou das razões para agir, à reflexão racional.

O objectivo é compreender melhor o modo como os agentes superam a dificuldade, isto é, o modo como efectivamente escolhem, e retirar as implicações que daí decorrem, nomeadamente, em termos de conservação e mudança institucional. No entanto, até lá chegar, há questões que ainda permanecem em aberto e devem ser abordadas. Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que dentro do conjunto de situações que verificam as condições da dificuldade é possível distinguir diferentes graus, como porventura também será possível distinguir diferentes tipos de dificuldade.6

5 Mais difícil senão impossível será reduzir a escolha e a acção humanas à forma algorítmica. Isto

não significa, no entanto, que este outro entendimento da escolha seja necessariamente inferior ao entendimento algorítmico que actualmente prevalece. De resto, como escrevia Dewey (1992, p. 50): “ Uma teoria modestamente honesta limitar-se-á à probabilidade da tendência, não importando a matemática para a moral” .

6 Sen (2004, p. 45) defendeu já que, para melhor compreender as razões da incompletude da

escolha, era necessário “ investigar se é difícil – ou fácil – pesar os diferentes tipos de valores envolvidos e resolver os seus conflitos” .

Em segundo lugar, é preciso averiguar até que ponto a dificuldade é ou não relevante para a Economia, isto é, em que medida se manifesta nos fenómenos que a Economia estuda e que importância têm as suas implicações. Em terceiro lugar, falta ainda analisar, nem que seja de forma hipotética, os procedimentos de deliberação a que os indivíduos recorrem em caso de dificuldade.

O próximo capítulo, dedicado à procura da evidência empírica da dificuldade da escolha proveniente de investigação realizada no âmbito da Psicologia e das Neurociências, cumpre a primeira das etapas que ainda faltam percorrer. Como se verá, da análise destes resultados resulta uma melhor caracterização da própria noção de dificuldade.