• Nenhum resultado encontrado

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-FILOSÓFICA: PIERRE BOURDIEU, UM

3.1 Concepções bourdiesianas acerca de campo, habitus e capital e sua aplicação no

3.1.3 A noção de habitus e sua relação com a Enfermagem

Habitus e campo são dialeticamente relacionados, pois “o habitus, que é o princípio gerador de respostas mais ou menos adaptadas às exigências de um campo, é produto de toda a história individual [...]” (BOURDIEU, 1990, p. 131).

É fundamentalmente a historicidade que distingue o hábito do habitus. Enquanto o hábito é tido por algo espontâneo, repetitivo, mecânico e automático, podendo ser considerado um costume que se adquiriu pela repetição de certos atos, o habitus é incorporado ao longo da trajetória de vida do indivíduo, constituindo “[...] aquilo que se adquiriu, mas que se encarnou no corpo de forma durável [mas não imutável] sob a forma de disposições permanentes”; o habitus é ainda algo que se inscreve quase geneticamente, assumindo a aparência de algo inato ou mesmo natural (BOURDIEU, 1983, p. 105).

Em entrevista versando sobre a doxa e a vida cotidiana, realizada no Instituto de Artes Contemporâneas de Londres em 1991, Eagleton pergunta a Bourdieu: “Será que as pessoas não podem de algum modo ser mais críticas, ou até mais céticas em relação [aos] valores e crenças e mesmo assim continuar a se pautar neles?” Bourdieu

responde com um exemplo extraído do dia-a-dia, que nos possibilita avaliar a influência do habitus na vida e na esperança de vida d@s agentes:

Quando se pergunta a uma amostra de indivíduos quais são os fatores de bom desempenho na escola, quanto mais se desce na escala social, mais eles acreditam em talentos ou dons naturais, mais acreditam que os que alcançam êxito são dotados de capacidades intelectuais inatas. Quanto mais aceitam sua própria exclusão, mais acreditam que são burros, mais dizem: ‘É, eu não era bom em inglês, eu não era bom em francês, eu não era bom em matemática’ (BOURDIEU; EAGLETON, 1996, p. 268-269).

Com a noção de habitus, Bourdieu valoriza a dimensão de um aprendizado passado. Segundo ele, a ação de estruturas sociais tais como a família, com seus valores e crenças, incidindo sobre o comportamento de crianças, desde a primeira infância, leva, por meio de um aprendizado quase natural, à incorporação dos habitus primários. Assim, no convívio familiar, com aprovações, censuras, lições de moral, elogios, prêmios, entre outras influências, as crianças vão construindo seus gostos mais íntimos, seus trejeitos, suas aspirações, sua auto-imagem, sua auto-estima, enfim, vão incorporando os habitus primários que estarão no princípio das experiências escolares. Resumindo, os habitus primários servirão de base à recepção e inculcação da mensagem pedagógica institucional ou escolar. Esta, se incorporada, mesmo que parcialmente, constituirá os habitus secundários. Da mesma forma, os habitus secundários, inculcados pela ação da escola, estarão no princípio da percepção e da apreciação das demais experiências do indivíduo, incluindo a capacitação e o desempenho profissionais. São, portanto, as disposições adquiridas pela experiência de cada agente social, ao longo de sua trajetória de vida, que servem de base para suas percepções, apreciações e ações (BOURDIEU, 1994).

Considerando que, para integralizar o capital científico no campo da Enfermagem, são indispensáveis tanto conhecimentos teóricos quanto práticos, considero oportuno tecer alguns comentários a respeito do conhecimento praxiológico. Enfocando, mais uma vez, a posição de Bourdieu (1994), esse conhecimento tem como objeto não somente as relações objetivas do mundo social, entendidas como estrutura, mas também, e talvez principalmente, as relações dialéticas entre tais estruturas e as disposições adquiridas nas quais elas se atualizam e tendem a se

reproduzir, efetivando assim o processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade. Em outras palavras, é por meio da relação dialética entre o habitus d@s agentes e as estruturas, que se tornam possíveis as transformações no habitus, entendido como a interioridade; nas estruturas, entendidas como a exterioridade; ou em ambos.

Seguindo esse raciocínio, o cuidado humano, que constitui a essência da Enfermagem, deve resultar da relação dialética entre as instituições nas quais @s profissionais atuam, os habitus d@s profissionais e os habitus d@s clientes. Com referência às instituições, é necessário considerar toda a hierarquia administrativa, implementação de plano de cargos e salários, implantação de rotinas, estabelecimento de convênios, entre outros, enfim toda a estrutura estruturada que predetermina o comportamento d@s profissionais. Com referência aos habitus, tanto d@s clientes quanto d@s enfermeir@s, é preciso lembrar que eles são incorporados desde a infância, sendo influenciados pela cultura, raça, credo, situação social e econômica entre outros fatores. No que se refere @s enfermeir@s, tais habitus são mantidos ou transformados pela profissionalização. Considerando que não existem duas biografias iguais, não pode haver dois habitus idênticos, há sim, classes de experiências semelhantes às quais o autor chama de habitus de classe (BOURDIEU, 1983). Cabe salientar que historicamente os cursos de capacitação em Enfermagem se desenvolvem mantendo uma posição predominantemente tecnicista e uma rígida disciplina. Provavelmente, em decorrência disso, a capacidade de organização, o rigor técnico, a presteza para seguir normas e rotinas, a fixação em prescrições, bem como a constante necessidade de higienização tanto do ambiente quanto do corpo d@s clientes constituam algumas das ações que caracterizam os habitus de classe manifestos no campo da Enfermagem.

Resumindo, @s profissionais, ao interiorizarem a exterioridade, estão assimilando a estrutura mantida nos cursos que freqüentam ou instituições nas quais trabalham; ao exteriorizarem sua interioridade, estão manifestando, através de apreciações e ações, seus próprios habitus. É por meio da relação dialética entre o

habitus e a estrutura que a realidade pode ser transformada; caso contrário, por serem os habitus produto daquela estrutura, apenas a conservariam ou a reproduziriam. Fica assim evidente que os habitus são estruturas estruturadas e estruturantes.

Na tentativa de explicar a homologia que se estabelece entre os habitus d@s agentes de um mesmo grupo, Bourdieu (1994, p. 79-80) os considera como

[...] sistema subjetivo mas não individual de estruturas interiorizadas, esquemas de percepção, de concepção e de ação, que são comuns a todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe e constituem a condição de toda objetivação e de toda a percepção, fundamos então a concertação objetiva das práticas e a unicidade da visão do mundo sobre a impessoalidade e a substituibilidade perfeita das práticas e das visões singulares.

Com essa perspectiva, o autor explica que entre os membros de um grupo ou classe instaura-se um ajuste ou uma combinação de práticas e visões coletivas. No entanto, mesmo sendo culturalmente inculcados, os habitus e as estruturas não são imutáveis. Para Bourdieu, romper com esses sistemas requer a retomada de sua história social, é necessário pensar “[...] em todas essas coisas que se tornaram tão comuns, logo, tão evidentes que ninguém lhes presta atenção” (BOURDIEU, 2000, p. 37).