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2.2 Narrativas Secundárias: diversas histórias interpoladas no enredo principal

2.2.3 A novela hispânica: o Curioso impertinente

Embora o maior sucesso da carreira literária de Cervantes tenha sido um romance, o gênero que ele teve mais desenvoltura, inclusive sendo chamado de "Boccaccio espanhol" (CANAVAGGIO, 2005, p. 84), foi o novelesco. Cervantes se aprimora nesse gênero, como afirma Almeida, a partir de seu contato com a literatura italiana: "[...] além de praticar gêneros narrativos correntes na arte renascentista, Cervantes introduz na Espanha uma forma narrativa curta, herdada da tradição italiana como os novellieri, que intitula Novelas Ejemplares" (ALMEIDA, 2016, p. 44). Como se pode perceber, ele introduz uma escrita inovadora na Espanha ao escrever um gênero curto de literatura, diferentemente dos extensos romances da época.

Talvez fosse mais propício dizer que foi ele o primeiro espanhol a criar novelas em seu país, já que ele próprio faz essa afirmação em seu prólogo para as Novelas Ejemplares (1613).

[...] sou o primeiro que escreveu novelas em língua castelhana, porque as muitas que andam impressas nela são todas traduzidas de línguas estrangeiras, e se estas são de minha autoria, não imitadas nem furtadas; meu talento as criou e minha pena as pariu, e vão crescendo nos braços da imprensa. Depois delas, se a vida não me deixar, te ofereço os Trabalhos de Persiles, livro que se atreve a competir com

82 Heliodoro, se por atrevido não meter os pés pelas mãos; mas primeiro verás ampliadas, e brevemente, as façanhas de dom Quixote e as graças de Sancho Pança, e a seguir as Semanas do jardim.117

A afirmativa de Cervantes, então, não seria propriamente de que ele introduz o gênero na Espanha, pois ele mesmo informa que já circulavam por lá novelas traduzidas de outras línguas, mas é ele o responsável por ser o primeiro a criar novelas na língua castelhana.

Nessa mesma passagem é interessante perceber que, ao publicar suas novelas, Cervantes já trabalhava na segunda parte de Dom Quixote, no Persiles e em outra obra denominada Semanas do jardim. O fato de escrever mais de uma obra ao mesmo tempo o faz pensar que uma obra influenciava a escrita da outra e essas narrativas criaram interfaces tanto em La Galatea quanto em Dom Quixote. Em meio ao Dom Quixote, Cervantes insere uma novela escrita por ele denominada de Curioso impertinente. Essa novela encontra-se na passagem em que o estalajadeiro, de acordo com a narrativa, busca algumas histórias que possui guardadas para que o padre pudesse ler:"Entrou em seu quarto e trouxe uma maleta velha, fechada com uma correntinha. Abrindo-a, viram-se nela três livros grandes e uns papéis, escritos à mão, com muito boa letra" (CERVANTES, v. 1, cap. XXXII, 2012, p. 393). Entre os referidos papéis mencionados encontrava-se essa novela que o padre resolveu ler para todos que estavam hospedados lá, menos para dom Quixote que estava repousando no momento.

A novela ocupa três capítulos da obra e serve apenas como um momento de entretenimento para as personagens, não se relacionando em nada com a narrativa principal do Cavaleiro da Triste Figura; porém, Cervantes encontra um meio de inserir dom Quixote de uma outra maneira logo no início do último capítulo da novela.

Pouco mais restava para ler a história, quando Sancho Pança saiu todo alvoroçado do sótão onde repousava dom Quixote, dizendo aos gritos:  Vinde depressa, senhores! Socorrei meu senhor, que está metido na mais renhida e cruenta batalha que meus olhos viram ser travada. Por Deus, ele deu uma cutilada no gigante inimigo da senhora princesa Micomicona, que lhe cortou a cabeça pela raiz, como se fosse um nabo!

[...] Entrai logo para apartar a contenda ou para ajudar meu amo, mesmo que não seja mais preciso, porque nessas alturas sem dúvida o gigante já está morto e prestando contas a Deus de sua vida pregressa de maldade, pois vi correr sangue pelo chão, e a cabeça cortada caída de um lado, do tamanho de um grande odre de vinho.

 Raios me partam  disse o estalajadeiro nesse ponto  se dom Quixote ou dom diabo não atacou algum de meus odres de vinho tinto que estavam à

83 cabeceira de sua cama! Deve ser o vinho derramado que este bom homem achou que era sangue.118

Dessa forma, Cervantes interrompe a narrativa secundária para narrar o que se passara na narrativa principal, ou seja, um episódio com dom Quixote. Há, então, uma inversão na ordem do tempo, uma vez que o leitor é transportado de uma cena para outra. Cria-se aí uma polissemia de forma que as personagens esclarecem o que acontecera e resolvem dar continuação à narrativa da novela. Cervantes, então, mais uma vez, desloca o leitor da narrativa principal para a secundária: "[...] serenados os ânimos, o padre quis terminar a história do curioso, porque viu que faltava pouco" (CERVANTES, v. 1, cap. XXXV, 2012, p. 446).

Para criar a novela do Curioso Impertinente, Cervantes se utiliza bem dos moldes italianos como mostra Rozenblat:

O Curioso Impertinente é uma novela italianizante: os dois protagonistas masculinos, membros ociosos de uma sociedade burguesa indicada por um lugar tópico (Florença, Toscana), têm uma atividade também tópica  caça ou amores  e são idealmente amigos: ‘os dois amigos’ [...] Camila, por sua parte, também é, idealmente, espelho de beleza e virtude. O problema (o tema da novela)  o da fidelidade da esposa que se deve provar utilizando de cúmplice aquele mesmo cuja fidelidade haveria de impedir que levasse a bom termo a empresa, sumo refinamento que torna ainda mais inverossímil o sucesso  também resulta ser de uma elaboração muito pouco ‘realista’.119

Rozenblat afirma que a novela é pouco realista pela trama que ela aborda, em que o marido resolve fazer um teste de fidelidade com sua esposa  que nunca dera motivo algum para que se desconfiasse dela  utilizando exatamente o seu melhor amigo para saber se ela seria capaz de traição.

Percebe-se que o tema da novela é totalmente distinto da narrativa principal das aventuras de dom Quixote. No momento em que ela é lida pelo padre, acaba por servir de entretenimento tanto para as personagens presentes na estalagem como também para os

118 CERVANTES. Dom Quixote, v. 1, cap. XXXV, 2012, p. 442-443.

119 ROZENBLAT. Estructura y función de las novelas interpoladas en el Quijote, 1991, p. 110, tradução minha. "El Curioso Impertinente es una novela italianizante: los dos protagonistas masculinos, miembros ociosos de una sociedad burguesa señalada por un lugar tópico (Florencia, Toscana), tienen una actividad también tópica -caza o amoríos- y son idealmente amigos: "los dos amigos"[...] Camila, por su parte, también es, idealmente, espejo de belleza y virtud. El problema (el tema de la novela) -el de la fidelidad de la esposa que se ha de probar utilizando de cómplice a aquel mismo cuya fidelidad habría de impedir que llevara a bien la empresa, sumo refinamiento que hace aún más inverosímil el éxito - también resulta ser de una elaboración muy poco "realista"."

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leitores. É como se todos nesse momento  personagens e leitores  compartilhassem o mesmo espaço; em um dos planos a narrativa do padre, interrompida, pela ação de dom Quixote, em outro plano.